De LENEIDE DUARTE-PLON*, de Paris
Era janeiro de 2019. O Brasil acabava de passar por uma eleição que levou ao poder um militar saudoso da ditadura e de torturadores como Brilhante Ustra.
Ao reler o texto abaixo, que escrevi e foi publicado na Carta Capital em janeiro de 2019, achei importante compartilhar com os leitores o que ouvi de Fernando Henrique Cardoso num encontro na Maison de l’Amérique Latine cujo título era “L’ordre contre la démocratie ? Dialogue entre le président Fernando Henrique Cardoso et Alain Touraine”. Na mesma semana, fui ouvir Vladimir Safatle, entre outros intelectuais, no encontro “Solidarité Brésil : Intellectuels, artistes, militants – comment agir ?”
Na Maison de l’Amérique Latine, FHC disse coisas tão absurdas – sobre o Brasil que emergia de uma eleição
em que Lula fora impedido de concorrer pela prisão decretada por um juiz depois declarado “parcial” pelo STF – que me perguntava o que o motivava. Acho que Freud explica.
Abaixo, o relato de dois encontros separados por poucos dias:
DOIS BRASIS EM PARIS
Na mesma semana, com poucos dias de intervalo, testemunhei duas narrativas diametralmente diferentes sobre o Brasil. Em dois encontros em Paris, um representante da oligarquia paulista vendeu a normalidade democrática brasileira. Em outro, franceses e brasileiros lançaram uma rede de solidariedade para enfrentar as medidas liberticidas do novo governo.
O país que Fernando Henrique Cardoso apresentou dia 14 de janeiro na Maison de L’Amérique Latine se chamava “Brasil”. Mas, surpreendentemente, na palestra, lida em francês, quem ganhou a eleição foi a “direita”, as instituições do país funcionam normalmente e não houve golpe de Estado. A eleição de Bolsonaro foi “a expressão da rejeição da corrupção e da violência”.
Sergio Moro – braço direito do atual presidente e responsável pela sua vitória ao mandar prender o principal opositor, preferido nas pesquisas – não definiria de outra forma o que se passou no país.
No meio da tribuna, entre seu ex-professor, o sociólogo Alain Touraine, e o presidente da Maison de l’Amérique Latine, Alain Rouquié, ex-embaixador da França no Brasil, FHC parecia muito à vontade, incensado pelos dois amigos.
O título do encontro anunciava algo mais sólido que a gelatina intelectual que nos serviram os três octogenários (Touraine tem 94 anos): “L’ordre contre la démocratie ? Dialogue entre le président Fernando Henrique Cardoso et Alain Touraine”. Ao apresentar seu hóspede, Rouquié frisou que FHC foi eleito e reeleito presidente do Brasil no primeiro turno. FHC voltou a esse dado um pouco depois, para se vangloriar. O embaixador declarou ler as obras de FHC como se fossem “romances policiais”. Era um elogio.
Vacuidade
Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente em dois mandatos (dos quais o segundo foi viabilizado por uma emenda, que demandou compra de deputados para mudar a Constituição) tem certeza de que foi eleito duas vezes “porque representava a esperança de reconstrução do país”.
Fazendo em francês uma leitura titubeante, FHC se mostrou em seu esplendor: oco, impreciso, apresentando um panorama do Brasil que não corresponde à realidade vista e analisada por juristas, professores universitários e correspondentes dos maiores jornais do mundo, além dos observadores honestos da imprensa brasileira e de jornalistas independentes.
“O que se passa no Brasil é um fenômeno de decomposição”, resumiu FHC num dos raros momentos em que se aproximou da realidade do país, sem contudo aprofundar a análise. Criticou os partidos políticos e contradisse seu diagnóstico de que as pessoas votaram contra a corrupção e a violência ao dizer: “As pessoas não veem com bons olhos a melhor distribuição das riquezas”.
Foi Touraine, como professor, quem abriu os olhos do ex-presidente para o papel do Estado e da política, disse o aluno reconhecido, não sem antes garantir que lera “O Capital” e “A crítica da mais valia”.
“Não foi uma ideologia que ganhou a eleição no Brasil. Enganam-se os que dizem que é um fascismo. Assim como se enganam os que dizem que havia um comunismo antes. As instituições funcionam no Brasil. Não há uma ideologia no poder”.
Se não é uma ideologia, o que seria ?
Para FHC “a sociedade brasileira tem forças capazes de barrar qualquer ataque que ameace a democracia”. Essa fé na democracia tupiniquim foi desmentida minutos depois quando citou o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda para quem “a democracia é frágil, como uma planta que precisa ser regada todo dia”.
O cinismo de FHC ficou evidente quando declarou que espera a emergência “de um novo polo democrático fundado em uma dupla rejeição: a da ordem contra a democracia e a do populismo da velha esquerda contra a democracia”. Era nada mais nada menos do que a justificativa de sua posição de neutralidade diante de uma eleição em que o candidato da esquerda não representava nenhuma ameaça à democracia.
Talvez sem saber que o próprio FHC mandara esquecerem seu livro “Dependência e desenvolvimento na América Latina”, Touraine citou-o como obra célebre, co-escrita com Enzo Faletto.
“Não é preciso ser muito esperto para saber que na América Latina há sempre a mão dos Estados Unidos em alguns momentos históricos”, afirmou Alain Touraine. E vaticinou: “No século 21 as mulheres serão os principais atores na vida social e política do mundo ocidental. As mulheres americanas é que vão destruir Trump. Primeiramente lutamos pela cidadania, depois pelos direitos dos trabalhadores, agora é o momento de apagar a dominação masculina”.
No único momento em que criticou o atual presidente, FHC disse que ele não é capaz de inspirar a construção de um futuro político que motive a nação. Como contraponto, a eterna rivalidade com Lula veio à tona: “Monsieur Lula, na época em que o conheci, era bastante ignorante mas era capaz de dizer o que sentia e fazer o outro sentir a mesma coisa”.
Ninguém, contudo, se compara a ele. Cidadão parisiense, morador de um belo apartamento na Avenue Foch, oficialmente de propriedade do grande parceiro e sócio de seu filho, Jovelino Mineiro, cuja mulher, Maria do Carmo, esteve na plateia do evento.
O Brasil visto de Paris pela esquerda
Poucos dias após, em 18 de janeiro, professores universitários, artistas, intelectuais se reuniram no Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine num encontro intitulado “Solidarité Brésil : Intellectuels, artistes, militants – comment agir ?” Obviamente, o tom era outro. Havia muita preocupação com o que se passa no Brasil: ameaça à democracia, às liberdades individuais, à liberdade de expressão, incitação ao ódio e à violência contra minorias e inimigos designados como tal, além de ameaça ao meio ambiente.
Do encontro organizado pelas brasilianistas Maud Chirio e Juliette Dumont participaram o filósofo Vladimir Safatle, o historiador Luiz Felipe de Alencastro, o ex-correspondente do Le Monde no Brasil, Nicolas Bourcier, a jurista Marie Rota, entre outros.
O historiador Luiz Felipe de Alencastro relembrou que o que está na origem do que se passa no Brasil é a prisão arbitrária do ex-presidente Lula. Ele anunciou a criação da Comissão de Direitos Humanos Evaristo Arns , a ser lançada dia 12 de fevereiro. A presidente de honra é Margarida Genevois e o presidente, Paulo Sérgio Pinheiro. Alencastro e Safatle integram a Comissão.
Para Safatle, o Brasil falhou na tentativa de construir uma democracia. O país não foi capaz de absorver a maior parte da população num processo de constituição de subjetividades políticas. E falhou em garantir que o Estado não seria o elemento fundamental de violência da sociedade.
“A violência do Estado contra as populações mais vulneráveis nunca mudou, sob nenhum governo. As pessoas da periferia vivem sempre em situação de risco e de exceção. A situação brasileira é terminal. Somos o único país das Américas que elegeu um governo de extrema-direita militarista. Isso nunca tinha acontecido. A situação brasileira é clara: o capitalismo não tem mais necessidade da democracia formal”, declarou Safatle.
Finalizando sua brilhante análise, ele apontou um caminho para combater a extrema-direita global, que emergiu também na Europa. “Contra esta extrema-direita global, temos necessidade , como em outros momentos da História, de formar uma nova Internacional”.
*Jornalista internacional. Co-autora, com Clarisse Meireles, de Um homem torturado – nos passos de frei Tito de Alencar (Editora Civilização Brasileira, 2014). Em 2016, pela mesma editora, lançou A tortura como arma de guerra – Da Argélia ao Brasil: Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado. Ambos foram finalistas do Prêmio Jabuti. O segundo foi também finalista do Prêmio Biblioteca Nacional.
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