Por SANDRA BITENCOURT GENRO*
Foi uma decepção. O pessoal estava preparando a pipoca para assistir o Fantástico, na TV Globo, do último domingo. No programa, estava prometida a exibição de reportagem produzida pela emissora afiliada local, que contaria pormenores do esquema criminoso que vem fraudando licitações especialmente na Prefeitura de Porto Alegre. As chamadas prometiam revelações. E a expectativa era de que com uma investigação a fundo, gravações de diálogos, registro de negociações, o país todo ficaria sabendo detalhes do maior escândalo da educação municipal, que levou pela primeira vez uma secretária da pasta para a cadeia.
Mas não foi o que se viu. Depois da exibição da matéria, quem está sob investigação é o próprio jornalismo, que ao invés de revelar, ocultou fatos e personagens importantes. O que se viu e me permitam utilizar minha experiência de 25 anos como editora de telejornalismo, foi uma matéria mal costurada, editada de modo a suprimir trechos e nomes, misturando temas e mais ocultando do que revelando responsáveis.
Apenas o jornalismo atento poderia dar conta de acompanhar o que aconteceu na administração da cidade. Mas assistimos o resultado de um produto pretensamente mais elaborado, a partir de um núcleo de jornalismo investigativo. Qual a diferença? O jornalismo investigativo é apenas o bom e velho jornalismo bem realizado? O que se espera é mais profundidade e cuidado. Partilho e reproduzo, de modo bem ligeiro, alguns condicionantes teóricos e práticos do jornalismo investigativo, disciplina que ministrei na Universidade.
Ambas as formas de jornalismo focalizam os elementos de quem, o que, onde e quando. Mas o quinto elemento da cobertura convencional, o “por que”, torna-se o “como” na investigação. Aqui precisam comparecer pormenores e provas.
Os outros elementos são desenvolvidos não apenas em termos de quantidade, mas também em termos de qualidade. O “quem” não é apenas um nome ou um título, e sim uma personalidade, com traços de caráter e um estilo. Vocês repararam que faltou um personagem central nessa investigação? O prefeito da cidade! E já volto em seguida ao homem do chapéu. O “quando” não está presente nas notícias e é um continuum histórico – uma narrativa. E esse continuum tem a ver com toda uma administração. O “que” não é meramente um evento, e sim um fenômeno com causas e consequências. Esse fenômeno se desenha em Porto Alegre com vários elementos que comprovam o domínio do privado sobre o público, seja no ordenamento urbano, seja nas políticas ambientais, sociais e educacionais. O “onde” não é apenas um endereço, e sim uma ambientação, na qual certas coisas se tornam mais ou menos possíveis.
Esses elementos e detalhes dão ao jornalismo investigativo, em sua melhor forma, uma poderosa qualidade estética que reforça o seu impacto emocional. É por isso que o jornalismo investigativo se distingue das rotinas profissionais tradicionais. Para os autores Robert W. Greene e Gerardo Reyes, o jornalismo investigativo é a reportagem realizada através da iniciativa e do trabalho do jornalista para revelar questões que algumas pessoas ou organizações querem manter em segredo. Isso requer focar em seleção de determinados temas, maior profundidade no tratamento do objeto ou assunto que é abordado, uso combinado de métodos e técnicas rigorosos de inquérito na busca dos dados, consumo de tempo e outros recursos superiores à média do relatório convencional. Não se trata de apenas obter flagrante de uma câmera escondida ou relatório de investigação de alguma promotoria. A questão da câmera escondida inclusive pode ser uma arapuca e encerra questões éticas que precisam ser enfrentadas.
A investigação precisa ser o trabalho livre do repórter, não um relatório sobre uma investigação feita por outra pessoa. E sobre essa investigação não podem pairar pressões ou ajustes a fim de ocultar responsabilidades. É o contrário: a investigação faz sentido quando existem pessoas ou organizações contrariadas, dispostas a ocultar tais questões do público, que o jornalismo com técnica e ética, acaba por revelar.
As pessoas procuram informações para satisfazer uma ampla variedade de necessidades. Uma delas é conhecer as ações ou omissões de seus governantes, legisladores, juízes, militares, empresários. Esse conhecimento permite a tomada de decisões. Incluindo aí a decisão do voto!
Pois, me permitam afirmar que a tal matéria chegou tarde, requentada e falha. O pior, é que o núcleo ou o repórter investigativo nem precisaria de maior esforço. Poderia ter lido a reportagem do Jornal Matinal, publicada no dia 02 de dezembro do ano passado. A manchete é a seguinte: “Eu quero amanhã esse processo na minha mesa”: áudios indicam que Sebastião Melo intercedeu em favor de empresa que venceu licitação conduzida pela Smed. No texto, o repórter Gregório Mascarenhas revela que teve acesso a mensagens de áudio enviadas por WhatsApp nas quais o prefeito cita nominalmente, três meses antes do processo de licitação, o sistema desenvolvido pela empresa que venceria a concorrência pública. Eis um trecho que é extremamente revelador:
“Em 2020, ainda no governo de Nelson Marchezan Júnior (PSDB), a plataforma educacional Córtex foi doada à prefeitura de Porto Alegre, sem custos, pelos empresários Jorge Gerdau Johannpeter e Klaus Gerdau Johannpeter. Dois anos depois, a prefeitura abriu um processo licitatório para contratar um software de gestão escolar que desempenharia esse mesmo papel. Áudios aos quais a Matinal teve acesso indicam que o prefeito Sebastião Melo (MDB) interveio diretamente na relação da empresa com o município. Nas mensagens, ele cita a plataforma nominalmente, assim como o diretor da empresa que desenvolveu o sistema e o empresário que teria sido “padrinho” do processo”.
O resto da história a gente conhece. A empresa venceria o edital, em um processo conduzido pela então secretária municipal de Educação, Sônia da Rosa. O contrato custou mais de R$ 3 milhões aos cofres municipais, outros áudios deram conta que o prefeito afirmou que teria a palavra final sobre as decisões da SMED e um monte de gente acabou em cana e investigada. Entre os investigados, inclusive, por tráfico de influência e um curioso PIX para uma casa de apostas está o filho do prefeito, ex-vereador Pablo Melo.
Como vemos, uma investigação bem detalhada já havia sido publicada.
É claro que há limites que colocam a ética, os interesses do país, a privacidade das pessoas e outros fatores de política editorial, que não podem ser ignorados, e que a curto ou longo prazo podem arruinar as possibilidades de uma matéria investigativa. É importante supor a existência de interesses antagônicos com as fontes como condição de toda pesquisa jornalística.
Não é simples observar e registrar complexidades de certos sistemas e sujeitos sociais. Talvez o grande mérito da matéria exibida seja justamente a ciência de que há interferência, proteções, ocultamentos nessa fórmula midiático-empresarial que controla a cidade e precisa proteger seu zelador de estimação.
*Sandra Bitencourt Genro é Doutora em comunicação e informação, jornalista, pesquisadora e professora universitária.
Foto de capa: Reprodução
Respostas de 2
Sandra alfineta a trama e a linguagem do meio de comunicação que manipula ao seus interesses.
Ressalta a técnica e a liberdade do jornalismo investigativo, como uma liberdade de atuação profissional.
E por fim chama a atenção, da distância dos fatos e atos, na diluição com temas acerca da corrupção local, transparência ignorada para novos procedimentos atuais em relação ao uso e desuso do recurso público, não distribuído ao objeto da licitação, desprezando ao apreço da iniciativa da Gerdau, por exemplo.
E agora José?
O mais curioso foi o pessoal ter tido esperança de ver revelado tudo que já se sabia, antes mesmo da tal licitação, achando que o “chinelo do chapéu” sequer seria citado.
Achar que a rbs/maiojama entregaria sua galinha dos ovos de ouro no Fantástico? Nacionalmente mostrar a corrupção que graça na terra da enchente que sonha privatizar o órgão municipal tão tenazmente destroçado, 1,3 bilhão em caixa, prontinho pra ser entregue aos seis “amigos” repassados das propinas todas que já levou? A rbs/maiojama, que junto com suas outras empreiteiras melnick/zaffari, entre outras tantas, que estão concretando o verde da cidade, denunciaram as maracutaias melada do melo chinelo?
Pela santa ingenuidade, Batman! Eu até diria, vão ser burros lá na prefeitura e votar no corrupto pra ficar na espera de um novo escândalo e nova enchente.