Bebês reborns e o capitalismo emotivo: quando o cuidado vira produto

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Por JANETE SCHUBERT*

Janete Schubert – Doutora em Sociologia, mestre em Psicologia, socióloga, pesquisadora e professora

No mundo contemporâneo, nada escapa à lógica do mercado. As emoções, os vínculos, o cuidado e até a dor tornaram-se passíveis de compra, venda e produção em série. Nesse cenário, os bebês reborns — bonecos hiper-realistas que imitam recém-nascidos com impressionante fidelidade — emergem como um símbolo inquietante do nosso tempo.

Embora possam parecer apenas objetos de colecionadores ou alternativas terapêuticas para algumas pessoas, os bebês reborns representam algo muito mais profundo: a captura do afeto pelo capitalismo. A necessidade humana de cuidar, de maternar, de criar vínculos afetivos — todas essas dimensões subjetivas e sensíveis da existência — são reorganizadas como nichos de consumo.

O capitalismo não quer apenas nosso tempo — quer nosso afeto

A lógica capitalista, como analisam pensadores como Eva Illouz, Byung-Chul Han e Luc Boltanski, penetrou as esferas mais íntimas da vida. O que antes era da ordem do privado, do simbólico ou do relacional, hoje é convertido em produto, serviço ou experiência monetizável. Chama-se isso de capitalismo emocional ou capitalismo afetivo: um estágio do sistema em que as emoções se tornam capital cultural, valor de mercado e vetor de produtividade.

A demanda por reborns não é apenas estética ou lúdica. Muitas vezes, está vinculada a perdas gestacionais, solidão, luto ou vazio emocional. E é aí que o mercado age com precisão cirúrgica: localiza uma dor, um desejo ou uma ausência — e oferece uma solução comprável.

Reborns como simulacro: o real substituído pela aparência

Sob a lente de Jean Baudrillard, os reborns podem ser compreendidos como simulacros de terceira ordem: representações que já não remetem a nenhum real original, mas que funcionam como realidade substituta. Eles não apenas imitam o bebê — eles são o bebê dentro do circuito simbólico do afeto mediado pelo consumo.

Esse é o ponto central: o capitalismo não apenas vende bonecos, vende experiências emocionais encapsuladas em objetos. A relação com o reborn pode simular a maternidade, mas sem o imprevisível, sem a exigência real do cuidado. É um afeto controlável, higienizado, formatado — embalado em silicone e entregue com certificado de autenticidade.

O afeto domesticado pelo consumo

Não se trata de julgar quem compra reborns — as motivações são complexas, legítimas e humanas. A crítica precisa ser direcionada ao sistema que transforma qualquer necessidade humana em oportunidade de lucro, inclusive aquelas mais profundas e frágeis, como a necessidade de amar e ser amado.

A expansão do mercado sobre as emoções cria um paradoxo cruel: quanto mais solitários e fragmentados nos tornamos, mais dependentes ficamos de produtos que prometem nos reconectar com o que perdemos — o vínculo, o toque, a intimidade, o tempo.

O que os bebês reborns nos dizem sobre nós?

Eles falam sobre uma sociedade onde o real é insuportável, onde o cuidado foi externalizado, e onde até o vazio pode ser capitalizado. Eles revelam como o capitalismo já não precisa apenas dos nossos corpos — precisa também do nosso choro, da nossa saudade, do nosso colo vazio.

Talvez o mais perturbador seja perceber que não estamos mais apenas comprando coisas — estamos comprando versões editadas da experiência humana. Em um tempo de afetos precarizados, os reborns são um espelho: não da infância, mas da nossa dificuldade coletiva de lidar com o real, com o outro e com a ausência.

Conclusão

O capitalismo emotivo não criou a dor, a perda ou o desejo de vínculo. Mas ele soube, como nenhum outro sistema histórico, transformar esses elementos em mercadoria. Nos bebês reborns, não compramos apenas um boneco — compramos uma narrativa, uma ilusão de presença, um simulacro de afeto.

E se quisermos resistir a esse tempo, talvez o caminho seja justamente o contrário: reumanizar o cuidado, resgatar os vínculos reais, recuperar a experiência viva — aquela que não cabe em embalagem, nem em vitrine.


*Janete Schubert – Doutora em Sociologia pela UFRGS e pesquisadora associada a Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais.

http://lattes.cnpq.br/6526295561623149

E-mail: janete.schubert.js@gmail.com

Foto de capa: (Magazine Luiza/Reprodução)

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Respostas de 8

  1. Vi um comentário essa semana que fez sentido pra mim. “Deixa esse povo criar e cuidar bebes reborns. Se eles desses crias humanas poderia ser muito pior.” Enfim…

    1. Concordo totalmente. Esse modo de brincar a ponto de confundir uma brincadeira com o mundo real expressa sofrimento, mal estar, doença do indivíduo que assim se expressa. É bom que sintamos compaixão. Mas não vamos colocar isso na conta de uma versão tão abrangente do termo “capitalismo” a ponto de explicar qualquer mazela de cabo a rabo.

  2. Quando se trata de falar de uma questão do feminino vira uma celeuma, doença quase que inaceitável, no entanto homens marmanjos há décadas colecionam e brincam com carrinhos, jogos, bonecos de filmes e séries, se unem para jogar botão, vão a parques simular guerrilhas.. e não vi passarem por um julgamento social tão severo, sequer foram taxados como precursores do adoecimento social…

    1. Alic muito obrigada por seu comentário, achei muito interessante o que você trouxe. O texto buscou refletir sobre o mercado que tem se criado em em relação a necessidade de cuidar, de forma alguma, reflete uma crítica as mulheres. Até porque a maternidade tem um custo altíssimo para as mulheres uma vez que não existe uma divisão igualitária das tarefas de cuidado da casa e dos filhos.

  3. Acho que tem uma questão séria também, a queda brusca da natalidade nos países centrais do capitalismo. SIM, a forma Como as novas geraçoes simplesmente não têm mais filhos, por causa do capitalismo e suas consequências climáticas e ecológicas, é algo serio também. Inclusive no Brasil.

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