Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
O mercado de dívida pública tal como o conhecemos hoje — com emissão de títulos negociáveis, taxas de juros definidas, investidores múltiplos e intermediação bancária — surgiu de forma institucionalizada nos Países Baixos no século XVII, alcançou sofisticação na Inglaterra após a Revolução Gloriosa (1688) e passou a se espraiar como pilar do Estado fiscal-militar moderno na Europa. Essa transformação marca o nascimento do capitalismo financeiro de Estado, no qual o crédito público se torna um instrumento regular de financiamento e acumulação.
Em suas origens, a dívida pública aparece como uma forma rudimentar de financiamento de Cidades-Estado como Veneza, Gênova e Florença na Itália (séculos XIII–XVI). Criaram formas precoces de dívida pública, por exemplo, Luoghi (Veneza), Monte (Florença): eram títulos perpétuos (ou vitalícios) emitidos pelo Estado, com rendas fixas.
Eram compulsórios: os cidadãos ricos eram obrigados a emprestar ao Estado ou o faziam como forma de obter prestígio político. Não havia mercados secundários de títulos de dívida pública plenamente desenvolvidos, mas os títulos podiam circular de forma limitada entre credores.
A Espanha, no século XVI, esteve sob a dinastia Habsburgo. Surgida no condado de Habsburgo na Suíça, no século XIII, logo se tornou a família mais poderosa da Europa, controlando territórios desde a Áustria e Hungria até a Espanha e as colônias nas Américas. O Estado espanhol contratava empréstimos de grandes banqueiros privados (Fugger, Welser), garantidos por receitas futuras de impostos ou prata colonial.
Havia papéis de dívida negociáveis (como os asientos), mas seu mercado era restrito. Não raramente era desorganizado por moratórias e falências estatais, por exemplo, as quatro bancarrotas de Filipe II.
O primeiro mercado moderno de títulos de dívida pública surge nos Países Baixos (República Holandesa) no Século XVII. Amsterdã era o centro financeiro global
Tinha um sistema fiscal estável, com capacidade de arrecadação municipal e nacional. Havia a emissão regular de títulos públicos negociáveis, com garantias institucionais sólidas. A bolsa de valores de Amsterdã, fundada em 1602, negociava ações da Companhia das Índias, mas também títulos de dívida pública emitidos pelas províncias. A dívida era adquirida por investidores privados, incluindo burgueses, comerciantes, viúvas, igrejas e corporações de ofício. Os bancos (como o Banco de Amsterdã) atuavam como facilitadores e custodiavam as transações, embora ainda não fossem intermediários de mercado no sentido moderno.
Houve a consolidaçãodo capitalismo financeiro de Estado na Inglaterra com a fusão entre Estado e mercado financeiro. Após 1688, após a Revolução Gloriosa, o nascimento do Estado Fiscal-Militar Inglês é estabelecido quando o Bank of England (1694) é fundado como banco privado autorizado a emprestar ao Estado — em troca de carta patente e privilégios monetários. Tornou-se o Banco Central.
O governo emitia consols (títulos perpétuos), com liquidez e confiança jurídica. Os títulos passaram a ser amplamente negociados em mercados secundários, sobretudo na City de Londres. O modelo britânico permitia ao Estado financiar guerras com crédito, estabilizar a arrecadação sem aumentos tributários disruptivos e envolver investidores privados, especialmente banqueiros e a burguesia comercial, na sustentação do aparato estatal.
Quanto à relação entre os bancos privados e a dívida pública, eles assumiam uma dupla função emergente. Primeiro era a distribuição de títulos: bancos atuavam como underwriters (garantidores e distribuidores) das emissões públicas e conectavam o Estado a redes privadas de investidores, domésticos e estrangeiros.
Mas eles tinham também carteiras próprias. Bancos também compravam títulos para si, como reserva de liquidez e garantia patrimonial. A dívida pública se tornava colateral bancário, e posteriormente base para emissão de moeda fiduciária.
Em uma síntese sistêmica, a IA apresentou o quadro abaixo.
Elemento | Características |
Onde surgiu? | Itália medieval (formas iniciais), Holanda (modelo moderno), Inglaterra (consolidação institucional) |
Quando? | Séculos XIII–XVII, com maturação após 1688 |
Como? | Emissão de títulos, apoio de bancos, garantia por receitas fiscais estáveis |
Papel dos bancos? | Distribuição de títulos, custódia, compra em carteira, financiamento do Estado |
Quem comprava? | Banqueiros, comerciantes, nobreza endinheirada, igrejas, corporações e famílias abastadas |
Essa história mostra o capitalismo financeiro moderno ter nascido da simbiose entre o Estado e o mercado. A dívida pública servindo como âncora de confiança, instrumento de política e ativo rentista.
Só a partir do século XVII surgiram elementos típicos do capitalismo segundo uma leitura institucionalista ou weberiana. A partir de então houve a consolidação de certas infraestruturas financeiras e jurídicas como condição para o capitalismo moderno: mercados organizados, instrumentos financeiros (ações, títulos), e a monetização mais ampla da economia europeia. No entanto, é importante reconhecer esses elementos terem origens anteriores, embora difusas e intermitentes.
A abundância de metais preciosos — ouro e sobretudo prata — extraídos da América (como em Potosí) foi central para a ampliação do meio circulante na Europa. Até então enfrentava escassez de moeda metálica.
Propiciou o desenvolvimento do comércio internacional e da interligação entre mercados distantes (Europa, América, Ásia). A inflação europeia do século XVI (“revolução dos preços”) teve o papel de alterar as relações sociais e fortalecer os grupos mercantis. Contudo, a monetização não foi homogênea e coexistiu com amplas zonas de trocas baseadas no escambo, crédito pessoal ou em moedas locais.
A constituição de bolsas de valores (como a de Amsterdã em 1602), o desenvolvimento de companhias por ações (como a Companhia das Índias Orientais) e a emergência de títulos públicos negociáveis marcaram o amadurecimento das finanças capitalistas. Mas a prática de crédito mercantil, letras de câmbio e antecipações sobre receitas públicas remonta à Baixa Idade Média.
As Grandes Navegações dos séculos XV e XVI (Portugal e Espanha) foram financiadas principalmente por formas híbridas. Combinavam recursos estatais com interesses privados. Em Portugal, o Estado português teve um papel protagonista, sobretudo sob o reinado de D. Manuel e D. João III.
Os lucros esperados do comércio de especiarias (Índia, Malaca) eram utilizados como garantia para empréstimos futuros. Havia capitanias hereditárias e concessões privadas capazes de transferir riscos e encargos a nobres ou investidores.
Na Espanha, as expedições de Colombo e Cortés foram patrocinadas parcialmente pela Coroa espanhola, mas com complementação de investimento privado. O financiamento se dava por meio de contratos de exploração (capitulaciones), nos quais os navegadores recebiam direitos comerciais em troca de arcar com parte dos custos.
No século XVI, ainda não havia mercados de dívida pública desenvolvidos como os do século XVII (Holanda, depois Inglaterra). Cidades italianas como Gênova e Florença já operavam com bancos privados e com “montes” (títulos da dívida pública local). No caso ibérico, o financiamento estatal se dava via empréstimos forçados ou antecipações fiscais, muitas vezes obtidas junto a banqueiros genoveses e alemães, por exemplo, os Fugger e Welser.
As Grandes Navegações expressam um momento proto-capitalista, no qual a lógica da acumulação e da expansão mercantil já estava presente, mas sem ainda as instituições plenamente desenvolvidas do capitalismo moderno. O financiamento mesclava soberania régia, expectativas de lucro, concessões comerciais. Seus elementos financeiros seriam, mais tarde, racionalizados sob o mercado de dívida pública e mercado de capitais.
*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.
Foto de capa: Reprodução
Respostas de 3
Não sou versada no assunto.
Não sei se meu comentário está à altura do articulista mas se puder me esclarecer, ficaria grata.
Qual o perfil do BANCO CENTRAL DO BRASIL?
Como se encaixa nessas conceituacoes históricas?
Eveline, veja a resposta do autor.
Banco da Inglaterra age como Banco Central do Reino Unido, criado em 1694 como um banco privado com objetivo de financiar a Guerra do Rei Guilherme. Controlado por muito tempo pela família Rothschild, até ser estatizado em 1946. Curiosamente, o Banco Central do Brasil (BCB) só foi fundado em 1964. Então, troca-se as posições dos números de suas datas…
O banco central do Reino Unido é o modelo no qual os bancos centrais mais modernos se baseiam. Estabelecido para atuar como banco do governo inglês, é o oitavo banco mais antigo do mundo. Tornou-se uma organização pública independente em 1998, com independência na manutenção da estabilidade de preços. De bancos do governo para bancos independentes do governo, tal como o BCB, aparentemente só se dedica à fixação da taxa de juros. Porém, todos foram criados para supervisão e amparo do sistema bancário em situações de “corrida bancária”.