Por LINCOLN PENNA*
“Uma vida sem desafios não vale a pena ser vivida”. (Sócrates).
Essa sentença atribuída a Sócrates merece ser avaliada tendo em vista os crescentes desafios que temos pela frente. A luta por dias melhores, essa é a essência da vida, e este é o objetivo dessa reflexão.
Vive-se neste final de primeiro quarto de século uma perda existencial. Trata-se do que estou a designar de uma progressiva e perigosa, sob vários aspectos, perda da essência do viver. Ela consiste na ausência cada vez mais rarefeita do prazer de se sentir integrado a uma confraria universal. Em outras palavras, temos assistido a precarização do sentimento de um destino comum compartilhado, salvo raros momentos em que nos reencontramos com os mais singelos afetos de nossas diletas amizades.
Esse mal-estar não decorre apenas da insegurança que assola a existência do ser humano em suas diversas dimensões, quase sempre provocada pelos conflitos entre nações que têm sido recorrentes, como na dimensão mais comezinha de comunidades assoladas pela violência diária. Há quem possa dizer que tais situações, mesmo em níveis mais reduzidos, sempre ocorreram. Contudo, a coexistência entre esses eventos e o prazer desfrutado nas relações sociais, parece ter se rompido de modo a dar absoluta prevalência a atitudes reativas a um panorama que tem criado o medo coletivo, cuja principal resultante é perda gradativa do exercício da cidadania, isto, é do fluir de uma irmandade coletiva.
Essa situação além de quebrar a boa convivência entre os seres provoca a competição, a desconfiança e com isso o individualismo, comportamentos que não acontecem por acaso, pois ao contrário, são estimulados por um modo de vida que se encontra coadunado com o ritmo frenético de um sistema maior que comanda esses impulsos. Atribuir essas manifestações ao capitalismo irracional e devastador que oprime a humanidade não é uma mera narrativa ideológica, embora não se deva negar que existe essa leitura para que compreendamos que nada ocorre naturalmente.
Ao insistir em fazer do capitalismo a razão maior de nossos grandes problemas econômicos, sociais e políticos, frequentemente mencionados nas reflexões que tenho feito nas redes sociais, o faço em virtude de uma convicção segundo a qual temos absorvido valores e desenvolvido comportamentos que em geral derivam desse modo de produção. Refutar essa hipótese significaria acolher a ideia de que as coisas fogem completamente ao nosso controle, ou por vontades que derivam de forças diante das quais não temos como evitar.
As tradições se fazem pela permanência de fazeres que acabam condicionando práticas que são repassadas de geração a geração, de maneira a constituir legados que nem sempre temos muito interesse em saber quanto à suas origens. Elas simplesmente se reproduzem. No entanto, vale a pena conhecer essa história aparentemente distante dos nossos afazeres cotidianos, porque nos ajudam a compreender um processo do qual somos parte integrante dele.
Assim, desde as trocas mais longevas, os escambos, até os fluxos comerciais mais complexos entre economias a envolver os estados nacionais daí resultando um comércio de larga e longa escala, o interesse mercadológico sempre esteve presente, seja sob a forma de ganho ou de influência política. Claro que essa evolução não foi construída harmoniosamente. Ao longo do tempo, houve guerras, espoliações de diversos tipos, saques indevidos e criminosos, e o saldo para a humanidade se materialmente foi gigantesco, por outro lado as injustiças sociais e políticas se sucederam também em larga escala. Tempos das sociedades de classes sociais antagonizadas que se mantêm sob tênue equilíbrio até os nossos dias com implicações imprevisíveis.
Sem precisar acrescentar tantos outros fatores, o que importa é que temos perdido um dos fundamentos caros de nossa essência, a solidariedade fraternal. Ela pode ser traduzida e acrescida de outros adjetivos, porém o que vale ressaltar é esse sentimento de ternura que está cada vez mais distante entre nós, de modo a atravessar até mesmo fronteiras tidas como impenetráveis, haja vista as famílias consanguíneas ou forjada pela amizade cultivada por anos e anos. Essa ausência de afetividade pode parecer algo secundário em uma análise conjuntural, no entanto, desprezá-la e focar tão-somente nas questões “maiores” de nosso universo humano é, creio, pelo menos discutível. Vale dizer que mesmo nas organizações fraternais e nos organismos que congregam indivíduos que se identificam com crenças das mais variadas manifestações do ser humano o progressivo afastamento de seus membros é visível.
Assim, partidos políticos, igrejas e templos, associações clubísticas ou de categorias socioprofissionais, como os sindicatos, dentre outros exemplos, padecem desse fenômeno que individualiza as pessoas levando-as à praticar um comportamento centrado em si mesma, egoisticamente representado pelo desprezo do outro, diariamente percebido pelo abandono de gente vulnerável nas sarjetas de nossas cidades. E as saídas para essa situação de marginalidade tende a levar muitos desses cidadãos e cidadãs ao encontro com os atos de contravenção quando não da criminalidade, que ao contrário do senso comum não é necessariamente uma escolha, mas a representação da podridão de nossas instituições políticas.
Para agravar essa tendência que pode nos conduzir para a barbárie, os estados nacionais caminham celeremente para a oligarquização, isto é, são apropriados exclusivamente pelas mais tênues fatias de sociedades marcadas pela crescente exclusão social, cujos programas assistenciais só minimizam esse quadro dantesco. Agir politicamente como cidadãos indignados e conscientes para que a vida tenha uma existência digna e que valha a pena por isso mesmo viver é o que deve orientar nosso caminho antes que ele tenha fim.
*Lincoln Penna É Doutor em História Social; Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos).
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