A Encruzilhada de Haddad

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Por ADALMIR ANTÔNIO MARQUETTI* e ANDRÉ LUÍS FORTI SCHERER**

O novo pacote fiscal divulgado pelo ministro Haddad tem por objetivo cumprir o “arcabouço fiscal” que entrou em vigor em agosto de 2023 e substituiu, com vantagem, o teto de gastos constitucional instituído no governo Temer. O arcabouço fiscal limitou o crescimento dos gastos públicos a 70% do crescimento das receitas, estabeleceu pisos e tetos para o aumento das despesas entre 0,6% e 2,5% ao ano acima da inflação. Se as metas fiscais não forem cumpridas vários mecanismos de contenção podem ser acionados. Em abril, o próprio governo propôs zerar o déficit primário em 2025 e alcançar superávit de 0,25% do PIB em 2026, com intervalo de 0,25%.

Dada a situação política e os compromissos assumidos pelo presidente Lula em sua campanha, essas são metas desafiadoras, as quais o Ministério da Fazenda assumiu compromisso em cumprir. Esse desafio se torna ainda maior com a necessidade de aprovação das iniciativas governamentais em um Congresso predominantemente hostil, o que aguça o ímpeto do mercado financeiro em clamar por “cortes profundos e estruturais” nas despesas públicas que atinjam, em especial, aquelas políticas voltadas à população mais carente do nosso país. Assim, estamos revivendo um filme antigo e tosco, no qual a Faria Lima, representando o mercado financeiro, quer sempre mais sangue.

Na busca por atender esse frágil equilíbrio, o pacote trazido a público pelo Ministro Haddad, surpreendeu negativamente os anseios mercadistas, ao abranger, além das despesas, as receitas públicas.

No que tange às despesas, está previsto um ajuste gradual ao longo dos próximos anos, com uma redução estimada nos gastos de R$ 30 bilhões em 2025 e R$ 40 bilhões em 2026, em relação ao cenário sem o pacote. Entre os principais pontos estão: o teto de 2,5% de reajuste real para o crescimento do salário mínimo; a limitação no crescimento dos gastos com o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o abono salarial; mudanças na aposentadoria militar, incluindo a instituição de uma idade mínima e restrições à transferência de pensões; medidas para coibir supersalários no serviço público; a repartição do custo do ajuste fiscal por meio da regulação de emendas parlamentares; e a contenção de diversas outras despesas.

É possível notar que o governo, tendo por alvo as metas fiscais futuras, busca fugir de medidas de corte estrutural e extinção de políticas públicas exigidas pelo mercado financeiro e vocalizadas pela mídia tradicional. O ajuste gradual das contas públicas, com base em limitações futuras de acréscimos nas despesas, não serve aos anseios do mercado, que deseja “muito mais e agora”, já no próximo ano.

No entanto, está nas medidas que contemplam as receitas públicas o principal ponto de reprovação da Faria Lima. Ao isentar do imposto de renda os rendimentos até cinco mil reais o governo busca cumprir uma promessa de campanha e sinalizar para sua base política o compromisso com uma política fiscal mais equitativa. Esse custo seria suportado pelo aumento da tributação da parcela mais abastada, com ingressos acima de R$ 600 mil reais ao ano, e que possuem contribuição efetiva menor do que 10% de seus rendimentos. As dificuldades políticas para a implementação dessas mudanças são evidentes e apenas saberemos como o governo conseguirá “amarrar” a aprovação conjunta das duas medidas no próximo ano, o que as torna ainda menos palatáveis ao mercado financeiro. Trazendo ainda mais incerteza ao cenário conturbado, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, sinalizou que os cortes de gastos terão a boa vontade da Casa, enquanto a renúncia de receitas será discutida pelos parlamentares no próximo ano. Aparentemente, apesar do tempo de preparação do pacote fiscal, a negociação sobre as mudanças no imposto de renda não foram previamente combinadas com o Congresso Nacional, o qual sofre a pressão da mídia e dos diversos lobbies, financeiros e empresariais.

É importante lembrar que parte da camisa de força em que se encontram a política fiscal e monetária foram autoimpostas pela área econômica do governo. Na definição do arcabouço fiscal e das metas de inflação, o governo preferiu não enfrentar o mercado, colocando claros limites para a atuação das políticas fiscal e monetária.  No primeiro semestre de 2023, o Conselho Monetário Nacional manteve a meta de inflação em 3% (nível raramente atingido em todos o período do real), desconsiderando a pressão que as tensões geopolíticas e a consequente desorganização das cadeias produtivas têm trazido, periodicamente, aos preços internacionais nessa década. Ao definir metas fiscais muito apertadas quando do anúncio do arcabouço em 2023, o governo viu-se na obrigação de abrandá-las em abril desse ano, instigando a ira do mercado financeiro. No presente pacote, já com menor capital político, optou, após longa discussão, por enfrentar parcialmente o mercado, que reagiu jogando o dólar nas alturas. Dada a meta draconiana de inflação, o COPOM continuará a aumentar a Selic nas próximas reuniões, com efeitos perversos sobre a dívida pública e a distribuição de renda.

Não é de estranhar que a reação imediata ao anúncio do pacote tenha sido negativa, acelerando a corrida contra o real que já vem se desenrolando a pelo menos um semestre. A taxa de câmbio ultrapassou os seis reais (com a complacência do Banco Central), o que pressiona a inflação e eleva as próprias despesas públicas, dada a expectativa que cria para taxas de juros mais elevadas ao longo dos próximos anos.  Além disso, o aumento da renda disponível das famílias, ainda que postergado para 2026, estimulará a demanda já aquecida. Os efeitos inflacionários da desvalorização cambial e da demanda elevada que começam a aparecer na economia brasileira podem se intensificar nos próximos meses. O PIB cresce em nível superior aos 3% e a taxa de desemprego atingiu 6,2% em outubro, a menor desde 2012.

Com mais acertos que erros, tem sido louvável a persistência com a qual o Ministro Haddad tem buscado mitigar, nas condições adversas já citadas, a sanha fiscalista dos mercados de modo a causar o menor dano possível à população de menor renda. É importante a preservação do crescimento econômico e a manutenção da busca de alguma distribuição de renda. No entanto, a inflação também não pode fugir ao controle, pois isso feriria profundamente a popularidade do presidente Lula. Como pano de fundo de toda a disputa se encontra, desde já, a aprovação do governo e como o desempenho da economia influenciará (ou não) nas próximas eleições. Essa é a encruzilhada de Haddad.

*Adalmir Antônio Marquetti é Professor PUCRS e **André Luís Forti Scherer é Economista

Foto da capa: O ministro da Fazenda, Fernando Haddad | Crédito: Divulgação/PT

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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