Opinião
Vergonha histórica
Vergonha histórica
De NUBIA SILVEIRA*
A política e o futebol dominam as reuniões semanais que tenho com três queridos amigos – Carlos Bastos, Jorge Seadi e Sérgio Araújo. As discussões sempre foram acaloradas. Dificilmente havia unanimidade. Encerrávamos o papo enriquecidos pelas ideias alheias, sem, no entanto, mudar de posição. Houve até briga e mediação para que tudo voltasse ao normal.
Desde 2020, o cenário mudou. Convergimos todos para uma mesma ideia: pacificamente, usando o voto como a grande arma da cidadania, brasileiras e brasileiros temos o dever de derrotar o “mito” nestas eleições. O Brasil não resistirá em pé, se ele seguir no Planalto por mais quatro anos. Isto é certo.
Na conversa da sexta-feira, 16, lembrei que poucos políticos brasileiros tornaram-se maiores do que os seus partidos. Citei Getúlio Vargas e o Getulismo, Leonel Brizola e o brizolismo, Luiz Inácio Lula da Silva e o Lulismo e, inexplicavelmente, para mim, Jair Messias Bolsonaro e o bolsonarismo.
Bastos, o Bastinhos, que acompanha a política estadual e brasileira, desde os anos 1950, como repórter, editor e articulista, nos lembra, entre outros nomes, os de Ulysses Guimarães e Juscelino Kubitschek que, certamente, seria o vencedor das eleições de 1965, se não fosse o golpe civil-militar-midiático, que sofremos um ano antes. Mas eu estava fixada nos ismos. Sem qualquer estudo ou tese acadêmica é fácil entender porque sugiram os três primeiros. Para o quarto e – até agora – último não consigo encontrar uma só razão positiva que explique a explosão de ultradireitistas no país.
Recordemos por alto, sem entrar em minúcias, como nasceram os getulistas, brizolistas e lulistas.
Direitos trabalhistas e voto feminino
Getúlio chegou ao Catete (o Planalto de então), no Rio de Janeiro, liderando uma revolução armada. Assumiu o poder, em 1930, com a promessa que todo golpista faz de ser um governo de passagem e logo realizar eleições. Deu um golpe incruento, em 1937, com o apoio das Forças Armadas, e as eleições só voltaram a ser realizadas em 1946.
Getúlio foi um ditador popular. Sabia falar para as massas. Tinha contato direto com o povo. Focou nos trabalhadores, aos quais deu direitos que não tinham: jornada de oito horas, pensões, aposentadorias. Regulamentou as atividades insalubres, o trabalho das mulheres e dos menores. Criou o Ministério do Trabalho, o
TST – Tribunal Superior do Trabalho, a Justiça Eleitoral, implementou o voto feminino. Deu início à industrialização
brasileira. Construiu a Usina de Volta Redonda, no Rio de Janeiro, e a Companhia Vale do Rio Doce, em Minas Gerais. Paremos por aqui. Entendo que com estas medidas tenha conquistado seguidores fervorosos, como as minhas tias paternas. Professoras cultas, informadas, não admitiam que se falasse mal de Getúlio.
Campanha da Legalidade
O engenheiro Leonel Brizola cresceu além do PTB, que o levou ao Palácio Piratini, desde o início de seu governo, em 1959. Jovem, ótimo orador, preocupado em investir na educação e em expulsar do Brasil as empresas estrangeiras, que via como verdadeiras sanguessugas. Ricardo Chaves, Kadão, informa na edição de Zero Hora, de 5 de fevereiro de 2019, que Brizola chegou a empregar 36% do orçamento estadual em educação. “Foram feitas 4,8 mil escolas e 526 mil novas matrículas. O número de professores, que, em 1959, era de 8.785, passou, em 1962, para mais de 22 mil. O esforço pela educação se baseava no slogan Nenhuma Criança Sem Escola no Rio Grande do Sul e na premissa de que sem educação não há desenvolvimento.”
O ex-governador gaúcho enfrentou a furia do governo norte- americano ao encampar, em maio de 1959, a Companhia de Energia Elétrica Rio-grandense, subsidiária da Amforp – American & Foreign Power Co. Três anos depois, em 16 de fevereiro de 1962, voltou a atacar: desapropriou outra empresa dos Estados Unidos: a ITT-International Telephone & Telegraph, que operava em Porto Alegre por meio da subsidiária Companhia Telefônica Nacional. Pagou aos proprietários um cruzeiro, moeda da época.
Seu nome cresceu nacionalmente, em 1961, logo após a renúncia de Jânio Quadros à presidência, ao impedir o golpe preparado pelas Forças Armadas contra o vice-presidente João Goulart. Os ministros das três Armas eram contrários à posse de Jango, eleito com mais de 4,5 milhões de votos (naquela época os vices eram escolhidos pelo voto direto). O golpe só não se concretizou porque Brizola levantou a voz e uniu os gaúchos na campanha da Legalidade. Requisitou a Rádio Guaíba, que passou a operar nos porões do Piratini, emitindo boletins em vários idiomas e os discursos inflamados do ex-governador. Brizola conquistou a simpatia dos comandantes do Exército no Estado e com isto o apoio do III Exército (Comando Militar do Sul).
Parece-me que estas rápidas informações são suficientes para justificar o nascimento do brizolismo.
Do Sindicato ao Planalto
Emigrante nordestino, Luiz Inácio Lula da Silva, se tornou conhecido nacionalmente como líder sindical na região do ABC paulista, onde nasceu – durante a ditadura militar – o novo sindicalismo. Foi um dos líderes das greves dos metalúrgicos realizadas em São Bernardo do Campo (1978), Osasco e Guarulhos (1979) e de novo em São Bernardo do Campo (1980), que durou 41 dias. Lula aprendeu a dominar grandes plateias, a se comunicar diretamente com os companheiros de luta por melhores salários e a negociar com representantes das indústrias e do governo. Destes movimentos surgiram a CUT – Central Única dos Trabalhadores e a CGT – Confederação Geral dos Trabalhadores.
Lula tornou-se conhecidíssimo, apoiado, elogiado e visto por políticos, intelectuais e imprensa como a grande novidade da política brasileira. A passagem do sindicalismo para um novo partido, que sempre pode chamar de seu, foi rápida: o PT – Partido dos Trabalhadores nasceu em São Paulo, em 10 de fevereiro de 1980. Carismático, grande orador e conciliador, como Getúlio, enfrentou/enfrenta, como Brizola, a aversão das elites brasileiras.
Foi eleito deputado federal constituinte, em 1988, consolidando a sua caminhada política. Em 1989, chegou ao segundo turno das eleições presidenciais. Foi derrotado por Fernando Collor e, mais tarde, por Fernando Henrique Cardoso, em 1994 e 1998. O PT não parou de crescer. As derrotas eram o fermento que fazia crescer o desejo de vitória. Em 2002, enfrentou pela quarta vez a campanha ao Planalto. Venceu José Serra, do PSDB, no segundo turno. Em 2006, reelegeu-se, ao derrotar, no segundo turno, Geraldo Alckmin, do PSDB.
Carlos Bastos afirma que Lula superou o PT no seu primeiro governo. Ele cumpriu o prometido, quando falava em esperança e mudança. Criou os programas Fome Zero e Bolsa Família. O Brasil quitou, antecipadamente, em 2005, a dívida de 15,5 bilhões de dólares com o FMI – Fundo Monetário Internacional. Se não por outras razões, pela perseverança demonstrada em toda sua carreira política e pelos programas sociais criados em seu primeiro governo, naturalmente, Lula entraria para o grupo de Getúlio e Brizola.
Imbrochável, a vergonha dos ismos
A pergunta a seguir é como o falso messias, o mito fake (ou deep fake?) atrai tantos adoradores? Como surgiu, com força nunca antes imaginada, uma extrema direita, que aceita e defende as mentiras do capitão? Volto a me socorrer dos conhecimentos políticos do Bastinhos. Ele aponta o dedo para a classe média. Daí vem este apoio vestido de verde e amarelo, dando a entender que o Brasil é um só: o deles.
Quer dizer, então, que aquela classe média que conspirou a favor do golpe de 1964, apoiou os militares, viu seus filhos serem torturados, mortos e exilados, por não aceitarem a ditadura, não aprendeu nada? Ficou encolhida, não por medo, mas por vergonha de seus próprios filhos, de 1985 a 2018? Foram 33 anos de espera pelo surgimento de alguém que, sem qualquer constrangimento, se revelasse totalitário, homofóbico, racista, misógino, aporófobo, necrófilo, negacionista, sádico e mentiroso. Em 2018, este perfil de líder, desejado pela extrema direita, surgiu vindo do Exército, de onde foi expulso, e do baixo clero da Câmara dos Deputados.
A tese de alguns estudiosos é de que os brasileiros foram vítimas de uma guerra híbrida, como aconteceu com os britânicos na votação do Brexit. Eleitores e eleitoras foram bombardeados nas redes sociais com informações mentirosas, conduzidos a votar no inominável, a segui-lo de olhos fechados e a viver num mundo paralelo, onde são inatingíveis. Não conseguem ouvir os que vivem fora da sua bolha.
Em quatro anos de governo o que o capitão fez? Armou a sociedade, permitiu que mineradores ilegais destruam a Floresta Amazônica, cortou recursos para ciência, educação e saúde, gritou palavrões, ofendeu mulheres e negros, meteu os pés pelas mãos na política internacional, debochou dos que sofreram e morreram na pandemia do novo coronavírus, incitou seus adoradores a atacar o STF – Supremo Tribunal Federal, aprovou o Orçamento secreto, decretou sigilo de 100 anos em informações, que possam se virar contra ele, desfrutou da praia paga com o nosso dinheiro, circulou de moto por onde pode e anunciou aos gritos que é imbrochável. Como diz o jornalista William Waack, esperemos que a irrigação sanguínea que atinge o seu pênis chegue também ao seu cérebro.
Agora mente para seus muares, dizendo que vai ganhar em primeiro turno, com 60% dos votos. Informação que nenhuma pesquisa eleitoral confirma. Ele prepara, se não um golpe, um ataque ao TSE – Tribunal Superior Eleitoral e uma guerra jurídica contra o resultado das eleições. Com estas ameaças espalha o medo e permite que seus eleitores e eleitoras ataquem, inclusive fisicamente, os adversários, vistos como inimigos.
A única razão que vejo para o presidente ter se tornado maior do que qualquer partido é justamente a sua personalidade agressiva, machista e inculta. Infelizmente. O futuro mostrará que ele envergonhou o Brasil. Tornou-se uma vergonha histórica.
*Jornalista, trabalhou em jornal, TV e assessoria de imprensa, em Porto Alegre, Brasília e Florianópolis. Foi repórter, editora e secretária de redação. É coordenadora do programa Espaço Plural da RED – Rede Estação Democracia.
Foto reprodução.
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
Toque novamente para sair.