?>

Opinião

Um tema tão impositivo quanto delicado

Um tema tão impositivo quanto delicado

Artigo por RED
04/11/2023 05:30 • Atualizado em 06/11/2023 19:12
Um tema tão impositivo quanto delicado

De CARLOS ÁGUEDO PAIVA*

O drama não é escolher entre o bem e o mal, mas entre o bem e o bem.

G.W.F. Hegel. Filosofia do Direito

  • Um debate quase impossível 

Karl Popper está muito longe de ser um dos meus filósofos prediletos. Mas não há como negar que ele deu algumas contribuições importantes à filosofia. A maior delas, do meu ponto de vista, é a ideia de “Conhecimento Objetivo”, o conhecimento representado pela produção técnico-científica e literária em geral. A ideia é tão simples quando amplamente reproduzida em filmes de ficção científica: se a humanidade fosse destruída por uma guerra atômica e os poucos sobreviventes voltassem “à Idade da Pedra”, o processo de recuperação dos conhecimentos perdidos seria amplamente facilitado se também restassem artefatos e textos do passado. E isso porque o conhecimento não é algo puramente “mental”: ele se consubstancia em objetos externos aos homens que os produzem. De uma certa forma, Popper está repetindo a famosa frase de Marx: o homem é um toolmaking animal. 

A segunda grande contribuição de Popper é sua crítica ao incriticável. Sempre que alguém esgrime uma frase que desautoriza qualquer crítica a princípio o debate teórico é inviabilizado. Popper errou ao pretender que as teorias de Marx e Freud coubessem neste critério. Para ele, qualquer crítica ao marxismo era respondida com “você está impregnado da ideologia dominante”. E qualquer crítica a Freud era respondida com “você está em negação dos teus desejos, sintomas e complexos”. Basta ler a vasta bibliografia marxista e freudiana para ver que o que não falta entre os seguidores dos dois grandes mestres é polêmica e divergência. Definitivamente, Popper errou de alvo. Mas, do meu ponto de vista, sua crítica serve perfeitamente para caracterizar o não-debate entre defensores e críticos do Estado de Israel. A resposta de 20 a cada 10 defensores de Israel é: você é antissemita, você tem preconceitos contra os judeus, você é racista e etnicista, você não respeita nossa religião e nossas crenças. Esta resposta, por mais impermeável que seja ao diálogo é, ela mesma, extremamente expressiva. Nos termos de Freud, ela é um sintoma. Nos termos de Marx ela desvela toda a ideologia que a acompanha. Senão vejamos. 

  • A questão do “antisemitismo” 

No sentido do Velho Testamento (a Torá judaica), semitas são todos os filhos de Sem, um dos três filhos de Noé que embarcou com ele na Arca. A prole de Sem é vastíssima e teria ocupado a maior parte da terra. Aqueles que levam a genealogia bíblica a sério, defendem a tese de que até mesmo os chineses seriam “semitas”. Numa perspectiva um pouco menos abrangente – mas, ainda, de caráter religioso – seriam semitas apenas os descendentes de Abraão. Ora, Abraão teve vários filhos, mas os dois primogênitos são Ismael e Isaac. O primeiro nasceu de Agar, serva de Abraão no período em que sua esposa, Sara, que era infértil. Mas Deus teria abençoado Sara e ela veio gerar Isaac. Nesse momento Ismael e sua mãe, Agar, são expulsos da comunidade de Abraão e vão para o deserto. Mais tarde, Ismael casa-se com uma egípcia, dando origem às comunidades árabes e, posteriormente, muçulmanas. No sentido bíblico, os árabes muçulmanos – a começar pelos palestinos – são tão semitas quanto os judeus. E, nesse sentido, afirmar que aqueles que têm simpatia pela causa palestina é “antissemita” é uma contradição em termos. 

 Isaac, por sua vez, teve dois filhos – Essaú e Jacó. A despeito de Essaú ser o primogênito, Jacó era o preferido de sua mãe Rebeca. E ambos iludem Isaac, já cego, para que Jacó obtivesse o direito à primogenitura. Vale dizer: os netos de Isaac, filhos de Jacó, que, segundo a Bíblia, vão constituir as tribos de Israel, advém de um logro. Abraão renegou seu primogênito. Isaac garantiu a primogenitura a Jacó por um logro. Jacó teve 13 filhos. O mais amado, José, foi vendido pelos irmãos a mercadores que, por sua vez, o venderão como escravo ao faraó do Egito. A mim parece que os judeus que levam a sério a genealogia bíblica não deveriam ser tão orgulhosos dos seus patriarcas. 

Felizmente, porém, a Bíblia não é mais do que um livro mitológico. A arqueologia moderna não encontrou qualquer traço da peregrinação do Egito para Canaã. Aliás, a região de Canaã, à época, entrava-se sob controle do Egito. Nas palavras de Sand 

No século XIII a.C., época da suposta “saída do Egito”, Canaã estava sob o controle dos faraós, ainda todo-poderosos. Moisés teria então conduzido os escravos libertos do Egito ao… Egito. Se nos basearmos na Bíblia, ele teria guiado no deserto 600 mil combatentes, que devem ter viajado com mulher e filhos, dando no total quase 3 milhões de pessoas! Além de ser impossível que uma população dessa grandeza pudesse deixar seu local de residência e errar no deserto durante tanto tempo, tal acontecimento deveria ter deixado alguns rastros epigráficos ou arqueológicos. No reino do Egito, era costume mencionar cada fato com grande precisão, e possuímos inúmeros documentos sobre a vida política e militar no império. Conhecemos inclusive as incursões de grupos de pastores nômades nas terras do reino. O problema é que não se encontrou nenhuma referência ou alusão a “filhos de Israel” que ali teriam vivido, se revoltado e saído em alguma época. A cidade de Pitom citada na Bíblia surge em uma fonte externa precoce, mas ela só se torna uma localidade importante no final do século VII a.C. Até hoje não se encontraram no deserto do Sinai vestígios testemunhando a passagem de qualquer população grande no período suposto, e a localização do famoso monte “Sinai” ainda não foi “descoberta”. Etzion Geber e Arad, evocados no relato da expedição nômade, ainda não existiam de fato naquele período e só surgiram como localidades permanentes e florescentes muito mais tarde. (Shlomo Sand, A invenção do Povo Judeu; pp. 124/5)

O autor das palavras acima é Shlomo Sand, um dos historiadores mais afamados de Israel. Mas ele não é um arqueólogo. Ele trabalha a partir dos registros da arqueologia Israelense, que recebeu recursos incomensuráveis para demonstrar a pertinência das alegações bíblicas. Para o Estado de Israel, a confirmação dos episódios relatados na Bíblia a partir do (pretenso) Êxodo do Egito era essencial para a sustentação de suas pretensões à “legítima apropriação da Palestina”. Mas a arqueologia israelense só conquistou fracassos. E a maior expressão destes fracassos é o “atordoante silêncio” em torno de qualquer descoberta. 

Ainda mais desconcertantes são os resultados acerca do período de David e Salomão. 

As escavações realizadas em Jerusalém nos anos 1970, ou seja, depois que ela foi “unificada para a eternidade” pelo governo israelense, eram incômodas para a gloriosa representação do passado. Foi evidentemente impossível escavar sob a esplanada da mesquita de Al-Aqsa, mas, de qualquer forma, não foram encontrados vestígios da existência de um reino importante no século X a.C., suposta época de Davi e Salomão, em nenhum dos canteiros abertos nas proximidades: nenhum testemunho de uma construção monumental, nem muralha, nem palácios magníficos, e havia, de maneira surpreendente, poucas cerâmicas, e as encontradas eram de um estilo extremamente despojado. Os arqueólogos inicialmente levantaram a hipótese de que os vestígios desse período teriam sido apagados pelas épocas posteriores, assim como pelas inúmeras construções do período de Herodes, mas, infelizmente, descobriram-se em Jerusalém vestígios impressionantes de séculos anteriores. Uma infeliz conclusão então se impõe: se uma entidade política existiu em Judá do século X a.C., só poderia ser uma microrrealeza tribal, e Jerusalém não passava de uma pequena cidade fortificada. É possível que tenha se desenvolvido nesse pequeno reino uma dinastia chamada Casa de Davi (uma inscrição descoberta em Tel Dan em 1933 sustenta essa hipótese), mas esse reino de Judá era muito menos importante que o de Israel ao norte, que surgiu, com muita probabilidade, anteriormente. (Shlomo Sand, A invenção do Povo Judeu; pp. 126/7)

Parece que a Bíblia não contribui para a restrição do termo “semita” aos judeus. E a arqueologia moderna não contribuiu em nada para corroborar a tese de que a Bíblia é uma fonte minimamente confiável da História do Povo Judeu. Talvez o melhor seja deixa-la para os religiosos e para aqueles que preferem os mitos à ciência. Mas não se trata de desistir. Vejamos se há alguma alternativa, pela via da linguística ou da genética. Comecemos pela primeira via. Segundo a Wikipedia

O termo semita tem como principal conjunto linguístico composto por uma família de vários povos, entre os quais se destacam os árabes e hebreus, que compartilham as mesmas origens culturais. Semítico é um adjectivo que se refere aos povos que tradicionalmente falaram línguas semíticas ou a coisas que lhes pertencem. A análise genética sugere que os povos semíticos partilham uma significativa ancestralidade comum, apesar de diferenças importantes e de contribuições de outros grupos. Esta comunidade genética, no entanto, é menos verdadeira no Corno de África, onde populações nativas sem ligações com as do Médio Oriente podem ter adaptado ao longo dos anos língua(s) semítica(s) devido à influência cultural de imigrantes provenientes do Iémen.

Opa! Aparentemente este novo canal também não dá qualquer apoio à tese de que existe uma cultura, um tronco linguístico e/ou uma genética especificamente judia. Alguém poderia alegar que a Wikipedia não é uma fonte “científica”. É válido. Recomendamos, então a leitura detalhada do livro de Shlomo Sand nos capítulos que ele dedica às pesquisas genéticas da Universidade Hebraica. Cito apenas uma passagem: 

No mês de novembro de 2000, foi publicado no importante jornal israelense Haaretz um relatório esclarecendo o estudo realizado pela professora Ariela Oppenheim, em colaboração com um grupo de colegas da Universidade Hebraica de Jerusalém. Os resultados desse trabalho foram publicados no mesmo mês em um número da revista científica Human Genetics, pelas edições alemãs Springer. A razão do interesse midiático particular atribuído a esse estudo era que a equipe de pesquisadores havia descoberto um parentesco surpreendente entre os tipos de mutação do cromossomo Y em israelenses judeus, “asquenazes” e “sefarditas” e em “árabes israelenses” e palestinos. A conclusão era que dois terços dos palestinos e quase a mesma proporção de judeus possuíam três ancestrais que viveram havia 8 mil anos.  O quadro que se destacava do conjunto do artigo científico era, na verdade, um pouco mais “complexo” e muito mais desconcertante: as mutações do cromossomo Y mostravam também que os “judeus” se pareciam mais com os “árabes libaneses” do que com os “tchecoslovacos”, mas que alguns “asquenazes”, contrariamente aos “sefarditas”, eram mais próximos dos “gauleses” do que dos “árabes” (Shlomo Sand, A invenção do Povo Judeu; pp. 279)

Em súmula: é dudu brimo! Ou quase tudo. Os judeus asquenazes, oriundos da Europa do Leste, não se “distanciaram” apenas das línguas semíticas quando adotaram o ídiche: também “perderam” características genéticas tipicamente semitas. O que nos leva a duas questões: ou a endogamia não era uma regra muito respeitada entre os judeus europeus, ou – o que parece ainda mais lógico – parcela expressiva dos judeus europeus não descendem das 12 tribos de Israel. Esta é exatamente a tese defendida pelo historiador e jornalista judeu Arthur Koestler. Em um livro de 1976, publicado pouco antes de sua morte, Koestler afirma

a grande maioria dos judeus sobreviventes vem da Europa oriental e em consequência ela pode ser principalmente de origem khazar. Isso queria dizer que os ancestrais desses judeus não vinham das margens do Jordão, mas das planícies do Volga, não de Canaã, mas do Cáucaso, onde se viu o berço da raça ariana. E, geneticamente, eles seriam mais próximos aos hunos, aos uigures, aos magiares, do que à semente de Abraão, Isaac e Jacó. Se assim fosse, a palavra “antissemitismo” não teria sentido algum: seria testemunho de um mal entendido igualmente partilhado pelos carrascos e pelas vítimas. (Arthur Koestler, The Thirteen Tribe, p.17)

A Khazária foi um reino situado no sudoeste asiático (com alguma penetração no extremo leste da Europa, em especial, na Crimeia) que adotou o judaísmo como religião oficial. Este reino existiu entre os séculos IX e XII D.C. e, aparentemente, a opção pelo judaísmo estaria associada com a necessidade de constituir e fortalecer a identidade “nacional”, dado que: 1) os Khazares haviam conquistado e dominado um grande território onde viviam populações marcadamente distintas em termos de cultura, religião e linguagem: o judaísmo era uma força cultura homogeneizante; 2) a Khazária era cercada por reinos poderosos, envolvendo a Pérsia (muçulmana, a sudeste), o Império Romano do Oriente (cristão ortodoxo, a sudoeste), o Principado de Kiev (inicialmente politeísta, e, depois cristão ortodoxo, a noroeste) e o Império Mongol (parcialmente muçulmano, parcialmente budista e parcialmente animista, ao Leste e Nordeste). 

Shlomo Sand relata em detalhes as críticas acerbas e raivosas que o livro de Koestler recebeu em Israel. Elas se encontram na página 245 e seguintes do livro já citado de Sand. Vale muito a pena lê-las. E não só porque elas revelam o apego dos intelectuais de Israel em sustentar a tese da “raça pura”. Muitas das críticas são hilárias. Este é o caso, por exemplo, da crítica do Embaixador de Israel no Reino-Unido: segundo ele, o livro de Koestler teria sido financiado pelo (desde sempre, miserável) Movimento Palestino. Após a publicação do trabalho de Koestler, vieram à tona vários outros trabalhos sobre o “Reino Judeu do Sudoeste da Ásia”. Pesquisas solenemente ignoradas, seja pelas Universidades Israelenses, seja pelo Governo de Israel. Que jamais enviou uma única equipe de arqueólogos para visitar a região e levantar informações sobre a Khazária. O motivo parece evidente: o elevado número de túmulos extremamente modestos (talvez, de escravos) com palavras em hebraico e a estrela de David parece indicar que a conversão ao judaísmo de “não semitas” foi muito ampla. E, se isto for verdade, é “melhor não saber”, não é mesmo? 

Mas o ponto mais importante é ainda outro: Koestler  escreveu The Thirteen Tribe para denunciar o absurdo, a total inconsistência lógica, da aversão aos judeus por parte dos nazistas. Para Koestler, o racismo de Hitler se baseava numa falácia empírica, histórica, factual. Ele pretendia demonstrar que os judeus europeus (os asquenazes) não conformavam uma raça. Sequer uma etnia. Parcela não desprezível desses judeus emergiram na Khazária de tribos arianas, eslavas, magiares, persas e de hunos (as principais comunidades e culturas sob gestão dos khazares). O que ele não imaginava é que as lideranças intelectuais de Israel se colocariam ao lado de Hitler para defender que os judeus são, sim, uma raça à parte. Mais: são uma raça pura, oriunda de Isaac. Mais, ainda: de acordo com não poucos, são de uma raça superior… 

Não há como deixar de lembrar da tese hegeliana acerca do senhor e do servo, do opressor e do oprimido: um mimetiza o outro. Tal como no Rei da Vela, do grande Oswald de Andrade, o segundo Abelardo é a cópia do primeiro. Tal como em O Arquiteto e o Imperador da Assíria, de Fernando Arrabal, os personagens podem trocar de posição, mas a relação continua a mesma. Exagero? … Vejamos. 

  • É possível negociar com terroristas?

Eu tenho inúmeros amigos judeus. E nem poderia ser diferente. A despeito de ter vivido quase 20 anos naquele país chamado Brasil, passei meus primeiros 20 no Bom Fim, para onde voltei no meu retorno à República do Piratini. Eu e minhas irmãs fizemos o Fundamental (antigo Primário) no Anne Frank. Minhas irmãs cursaram o restante do Primeiro Grau (já não se chamava mais Ginásio!) no Colégio Israelita. Eu fui para o Aplicação, onde me apaixonei por uma judia com quem quase me casei. Vivia em sua casa e sempre fui apaixonado por seus pais, pela cultura que eles esbanjavam e pelo amor e carinho que me dedicavam. A mera suposição de que eu possa ter qualquer preconceito contra judeus me parece tão despropositada que eu (que escrevo e falo tanto!) fico completamente sem palavras. Por quê? Porque isto é um devaneio, uma loucura, uma sandice crônica e aguda. E aprendi a não argumentar com pessoas que entram nesse estado. Logo, só me cabe o silêncio. 

Mas não ter qualquer preconceito implica que eles sejam pessoas como quaisquer outras, não um povo superior, com direitos diferenciados dos demais mortais. Eu não tenho preconceito justamente porque os considero absolutamente iguais, em tudo, a mim e àqueles que eu amo. E como em todos os povos, nações e culturas, há pessoas melhores e outras piores. Eu não amo a todos os brasileiros. Não amo nazistas, não amo fascistas, não amo bolsonaristas, lava-jatistas ou golpistas. Da mesma forma que não amo os eleitores de Bibi em Israel. Isto não tem nada a ver com ter preconceito contra alemães, italianos, brasileiros ou judeus. O que me assusta – isto sim – é ver tantos judeus cultos, inteligentes, amorosos, portadores de um coração maior que o seu próprio peito, pessoas de esquerda, pessoas iluminadas, defendendo a política de apartheid de Israel. Tal como o grande cientista político judeu, Norman Finkelstein (por favor, clique nesse link e assista o que este corajoso homem tem a dizer), o que eu não entendo é como que o drama palestino possa ser secundarizado justamente por um povo que viveu a tragédia do Holocausto.

Como regra geral, quando faço essa pergunta recebo respostas agressivas ou evasivas. Na melhor das hipóteses recebo a resposta de que é impossível dialogar com terroristas e com pessoas que querem destruir o Estado de Israel. O problema da “melhor resposta” me parece tão evidente que eu também fico sem palavras: por trás da mesma há uma identidade: Palestino = Terrorista. PT, Saudações. Um passo a mais e entramos no terreno da jornalista Deborah Srour, demitida da Rádio e TV Bandeirantes após afirmar, no programa “Hora Israelita”, que “os palestinos são ‘animais’, que não há civis inocentes na Faixa de Gaza e que o ataque do exército de Israel contra essa população deveria ser ‘mortífero’” E essa postura não é totalmente sem sentido: se acreditamos que todo o palestino é um terrorista, então  as crianças são projeto de terrorista, as mulheres são matrizes de terroristas e os velhos são (na melhor das hipóteses) ex-terroristas. Do meu ponto de vista, a Deborah externou o que, no fundo, está na cabeça de muita gente por aí. E isto é simplesmente aterrador. Pois é levar ao limite a tese de que existem algumas pessoas (e raças) que são superiores. E há outras que são inferiores. 

O que falta a 100% daqueles que defendem a impossibilidade de negociar com “terroristas” é um pouco de História. Uma história que foi narrada com maestria por Ilan Pappé em seu magnífico e tenebroso livro intitulado A limpeza étnica na Palestina. 

Meu estômago não é bom. É excelente. Eu costumo dizer que, se três pessoas comeram algo, apenas um morreu, e os outros dois disseram que nunca tinham comido algo tão bom, eu me atiro dentro da panela e como tudo, sem pestanejar. Não obstante, a leitura do livro de Pappé me deu náuseas. Mesmo. Digo por aí que cheguei a vomitar. Confesso agora: não é verdade. Vomitar, para mim, é quase tão difícil quanto escrever um artigo de duas páginas. Mas só não vomitei porque eu me dava ao direito de pausar a leitura a cada vez que sentia o estômago revirar. 

O livro de Pappé tem dois lados. De um lado, ele mostra (com detalhes nauseabundos) o que foi o processo de expulsão dos palestinos da área que a ONU havia reservado para Israel. De outro, ele apresenta a versão oficial e amplamente difundida na mídia sionista sobre o que de fato teria ocorrido. Pappé demonstra empiricamente a tese de Goebbels: uma mentira repetida mil vezes torna-se uma verdade!

De acordo com a versão do “Estado dos Judeus”, em 1948 os palestinos teriam se retirado espontaneamente do território que a ONU havia reservado a Israel para “facilitar o ingresso e operação dos Exércitos dos países árabes, avessos à criação do Novo Estado”. E o exército israelense – constituído apenas em 1948 – teria conseguido enfrentar e vencer os exércitos inimigos. A história real, contudo, é muito outra. 

A base primeira do livro de Pappé são os arquivos das Forças Armadas de Israel. Esse trabalho de pesquisa havia sido coordenado por Benny Morris, à época professor veterano da Universidade de Haifa. Pappé ingressou no mesmo como auxiliar de pesquisa. Mas acompanhou com atenção todo o seu desenvolvimento e percebeu, com clareza, a enorme distância entre a “versão oficial” e o que havia efetivamente transcorrido. Enquanto coordenador da pesquisa, Morris se recusou a acessar qualquer outra fonte para além das fontes oficiais do Estado de Israel. Pappé decidiu ir além, e pesquisou em fontes internacionais (em especial nos arquivos das Forças Armadas e da representação política do Reino-Unido, que manteve a autoridade sobre o território até 1948), em fontes documentais palestinas e em fontes orais de judeus israelis e palestinos israelis. Com vistas a articular fontes tão distintas, Pappé operou com o critério da consistência: informações obtidas de apenas uma fonte não teriam a confiabilidade necessária para serem tomadas como “fato”: seria preciso mais de uma fonte. Ainda que elas divergissem nos “detalhes” (em geral, bastante expressivos), a evidência se encontraria no reconhecimento de que o evento – pintado em cores mais brandas e rosáceas, ou em vermelho sangue misturado com o negro-luto – havia transcorrido. E o texto de Pappé é um soco na boca do estômago. 

Sua primeira conclusão – algo evidente, por sinal – é que as ações de limpeza étnica tiveram início bem antes da retirada das forças armadas britânicas. Já em seu prefácio Pappé trata das reuniões e deliberações da milícia sionista clandestina, a Haganá, que viria a ser a base do Exército de Israel. E narra a reunião de 10 de março de 1948, quando os 11 líderes da Haganá na Casa Vermelha de Tel Aviv aprovaram o Plano Dalet (Dalet é D em hebraico). Nas palavras de Pappé, esta reunião

Deu os toques finais ao plano de limpeza étnica da Palestina. Nessa mesma tarde, foram enviadas ordens militares às unidades de cada território para preparar a expulsão sistemática dos palestinos de vastas áreas do país. As ordens estavam acompanhadas de uma descrição detalhada dos métodos que havia de se empregar para desalojar pela força aos moradores: intimidação em grande escala; assédio e bombardeio das aldeias e centros populacionais; incêndio de casas, propriedades e bens; expulsão, demolição; e, finalmente, colocação de minas entre os escombros para impedir o regresso de qualquer dos expulsos. Cada unidade recebeu a lista de aldeias e bairros selecionados como alvo do grande plano, (Ilan Pappé, A limpeza étnica da Palestina. pp. 10/11.) 

Logo adiante, Pappé comenta:

Depois do Holocausto, ocultar crimes contra a humanidade em grande escala tornou-se quase impossível. … Não obstante, um crime semelhante foi apagado praticamente por completo da memória pública global; a expropriação dos palestinos em 1948 por parte de Israel. Este crime …. vem sendo negado sistematicamente e ainda hoje segue sem ser reconhecido como um fato histórico …. que deve ser enfrentado tanto de um ponto de vista político como moral. (Ilan Pappé, A limpeza étnica da Palestina. p.12.) 

Os relatos das ações do Plano Dalet são assustadores. Desde a contaminação de poços e fontes de água em Acre com a bactéria Rickettsia Prowazekki (causadora de tifo) até o derramamento de piche e óleo em ladeiras de municípios com costas íngremes, a colocação de fogo nesta mistura, e o lançamento de barris com explosivos e pregos: com a explosão dos barris, os pregos atingiam os transeuntes civis de todas as idades, causando lesões graves, quando não sua morte. Mas há três relatos que são particularmente horripilantes: o ataque a Deir Yassim, a Limpeza de Haifa e o  Massacre de Tantura . Nas palavras de Pappé: 

A natureza sistemática do Plano Dalet fica patente no caso de Deir Yassin, uma aldeia pastoril cordial que havia chegado a um pacto de não agressão com a milícia Haganá de Jerusalém, mas que estava condenada a desaparecer por encontrar-se dentro da área que o Plano Dalet ordenava limpar. Em vista do acordo que havia firmado com a aldeia, a Haganá decidiu enviar para lá tropas de Irgun e da banda de Stern, livrando-se assim de toda a responsabilidade oficial do ocorrido. Em operações posteriores de limpeza de aldeias “amigas” já não se consideraria necessário empregar este ardil.  Em 9 de abril de 1948, tropas judias ocuparam a aldeia de Deir Yassin. Esta se encontrava em uma colina a oeste de Jerusalém, a oitocentos metros de Jerusalém e a oitocentos metros acima do nível do mar. (… ) Ao irromper na aldeia, os soldados judeus atacaram as casas com fogo e metralhadora, matando a muitos de seus habitantes. Despois disso, foram reunidos os aldeões sobreviventes, que foram assassinados a sangue frio. Os cadáveres foram maltratados e certo número de mulheres foram violadas antes de serem assassinadas. (Ilan Pappé, A limpeza étnica da Palestina. p.130.) 

Fac Símile da Cobertura do New York Times ao
Massacre de Deir Yassin.

Sobre Haifa, Pappé escreve: 

Como principal porto do país, Haifa foi eleita com última estação para a retirada britânica. A retirada dos britânicos estava prevista para agosto, mas em fevereiro de 1948 foi decidido antecipar a partida para maio. Por conseguinte, havia um grande número de tropas na cidade, sobre a qual continuavam a ter autoridade legal. Mas o manejo da situação, como muitos políticos britânicos admitiram mais tarde, constitui um dos capítulos mais vergonhosos da História do Império Britânico no Oriente Médio. … Em 18 de abril …. o general de divisão Hugh Stockwell … convocou as autoridades judias da cidade em seu escritório e os informou que em dois dias as forças britânicas se retirariam de suas posições, que serviam como zona de contenção entre as duas comunidades. … As portas se abriram em par para a desabirização de Haifa.  A tarefa foi encomendada à Brigada Carmeli, uma das melhores do Exército judeu. Havia outras brigadas de “menor qualidade”, como a Qiryati, composta por judeus árabes [sefardi]. A essas se enviava apenas para a realização de saques e outras missões menos atrativas (a descrição de Qiryati como uma unidade de “menor qualidade humana” se encontra em documentos oficiais das Forças Armadas de Israel). (….) Quem comandava a Brigada Carmeli era Modechai Maklef. As ordens que deu às suas tropas foram claras e simples: Mata a qualquer árabe que encontrais, queima todos os objetos inflamáveis e força as portas com explosivos. Mais tarde, Maklef se converteria no chefe do Estado Maior do Exército de Israel. (Ilan Pappé, A limpeza étnica da Palestina. p.133.)

O relato da fuga de Haifa é tenebroso. Os palestinos abandonaram suas casas e se dirigiram ao porto sem ter tempo sequer para pegar seus pertences mais valiosos. Ao chegarem no porto, abrigaram-se no mercado da cidade, situado ao lado daquele primeiro. As tropas israelenses começaram a bombardear o mercado. Em pânico, os palestinos dirigiram-se aos barcos. O caos se impôs. Um dos sobreviventes do morticínio relata: 

Os homens pisoteavam a seus amigos e as mulheres a seus próprios filhos. Os botes que havia no porto logo ficaram lotados de seres humanos. A superlotação era horrível. Muitos adernaram e afundaram com todos os seus passageiros.  (Walid Khalid, A Queda de Haifa, Apud, Ilan Pappé, Op. cit. p. 138) 

Abaixo, uma foto da fuga de Haifa.

Sobre o Massacre de Tantura, Ilan Pappé relata: 

Tantura era uma antiga aldeia palestina na costa do Mediterrâneo. Com 1.500 habitantes que obtinham seu sustento da agricultura, da pesca e da realização de trabalhos de pouca importância nas cercanias de Haifa. …. No dia 15 de maio de 1948, um pequeno número de notáveis locais …. se reuniu com oficiais do serviço de inteligência judeu, que lhes ofereceu um pacto de capitulação. Os aldeões, contudo, suspeitaram que sua rendição se traduziria em sua expulsão e rechaçaram o oferecimento. Uma semana mais tarde, no dia 22 de maio de 1948, a aldeia foi atacada durante a noite. … A ofensiva foi empreendida pelos quatro lados. …. [Como não havia alternativa para a fuga], as tropas judias se encontraram com um grande número de aldeões em suas mãos. … Os aldeões foram levados para a praia. Ali, os soldados judeus separaram homens das mulheres e crianças e expulsaram o segundo grupo para uma região próxima. …. E ordenaram a centenas de homens … que se sentassem e esperasse a chegada do oficial da inteligência israelense Shimshon Mashvitz …. [o qual] chegou acompanhado por um colaborador local encapuçado … e selecionou a alguns homens (de novo cabe relembrar: aos olhos do exército israelense “homens” eram todos os varões entre dez e cinquenta anos de idade), aos quais levou em pequenos grupos a um lugar apartado e os executou.   (Ilan Pappé, A limpeza étnica da Palestina. p.186.)

Tal como nos demais casos, o relato do Massacre de Tantura (apagado dos registros das Forças Armadas de Israel) não está baseado apenas em informações de fontes palestinas. Soldados israelenses que participaram do massacre relataram os eventos vergonhosos para seus colegas. Mas a fonte de informação mais relevante foram os moradores do assentamento judeu de Zikhron Yaacov, localizado nas proximidades de Tantura que, avisados do morticínio em curso pelos poucos palestinos que haviam conseguido fugir, chegaram em grupo e impediram o massacre de todos os homens da aldeia, vale dizer, de todos os varões com dez anos ou mais.

E, então, meus amigos, faço minha vossa pergunta: É POSSÍVEL NEGOCIAR COM TERRORISTAS?

Ouso responder à minha própria pergunta. Não se trata de “possibilidade”, mas de necessidade. Há terrorismo dos dois lados. E é melhor não tentar medir o “tamanho” do terrorismo de cada lado. Pois é muito provável que os “mocinhos” da Rede Globo e da RBS venham a se revelar os maiores bandido. …. 

Deixa assim, pliss. É melhor para todos que se comece do zero, apagando as trágicas memórias do passado. Tal como publicou um amigo meu, judeu, recentemente, em seu feissibuqui: é preciso esquecer o que ocorreu. … Verdade. Não há paz sem perdão. Não há perdão sem apagamento, sem esquecimento, do passado. Mas é preciso esquecer TUDO. Não apenas o que interessa. Do massacre de Deir Yassin ao ataque do Hamas à rave de 7 de outubro de 2023. …. E, se possível, é preciso esquecer até mesmo o genocídio que Gaza está vivendo hoje, a cada minuto. Apenas para que Bibi possa se manter no poder.  

  • O que é o Estado de Israel?

O Estado de Israel se autodefine como “o Estado do povo Judeu”, pretendendo que essa qualificação – Judeu – seja uma qualificação étnica. Felizmente, para eles mesmos, isso não é verdade. Ou o Estado de Israel seria um Estado racista e supremacista, tal como a República Alemã nos tempos de Hitler. A moderna genética já demonstrou à exaustão que os judeus sefardis, os árabes e os palestinos contam com alguns poucos ancestrais em comum. Estes são, genuinamente, primos. O mesmo não é verdadeiro para os asquenazes. Então o que significa ser um “Estado do povo Judeu”. Significa que Israel é um Estado teocrático. E o é de uma forma muito mais radical que o Irã. A população não muçulmana do Irã tem direito a voto e participa das estruturas do Estado da mesma forma que os seguidores do Corão. Inclusive, servem ao exército. Em Israel, os palestinos são proibidos de servir nas Forças Armadas, pois não se pode ensinar princípios de guerra a um inimigo interno.

Eu visitei Israel e a (falta de qualquer) Autoridade Palestina. Em Hebron fui proibido de entrar na Mesquita ao lado do (pretenso) túmulo de Abraão por soldados judeu-israelenses que controlam o cotidiano da cidade na ponta de seus fuzis e miras laser. A maior parte do mercado de Hebron está fechada, pois as lojas ficavam em frente ao assentamento de judeus ortodoxos da cidade e havia o temor de que os palestinos “bombardeassem” o assentamento a partir de suas oficinas. Na parte a céu aberto do Mercado, há uma tela colocada pelos palestinos para impedir de serem alvejados por pedras e pelo lixo jogado pelos judeus que habitam o assentamento construído como um edifício que, além de tudo, retira a luz do sol do Mercado. Diversas casas em Hebron tiveram suas portas cimentadas pelo mesmo motivo: davam de frente para o assentamento judeu. Os moradores dessas casas tiveram que instalar escadas para acessá-las através das janelas. Tentei visitar Gaza, mas é absolutamente impossível se você não conta com uma identificação da ONU ou dos Médicos sem Fronteiras. O presídio chamado Gaza é inviolável. Seja por terra, seja por mar. Mas é possível conhecer algo de Gaza através de filmes. Vejam, por exemplo, o documentário Nascido em Gaza. Ele está na Netflix. E, depois de assisti-lo, por favor me respondam: quem são os terroristas nessa história?

Em Hebron, tomei contato com uma piada corrente entre os palestinos. A piada relata um diálogo entre dois soldados israelenses. Um deles, com remorso pelas suas ações, pergunta ao outro se os judeus não estariam repetindo, com os palestinos, o que os nazistas fizeram com eles próprios. No que o outro responde: de forma alguma. O Terceiro Reich não durou 65 anos. 

Estive em Hebron há dez anos atrás. ….. Aparentemente, a “piada” se atualizou.


*Doutor em economia e professor do mestrado em desenvolvimento da Faccat (Faculdades Integradas de Taquara).

Imagem em Pixabay.

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

Toque novamente para sair.