Destaque
O Torturador Le Pen
RED
Por LENEIDE DUARTE-PLON*, de Paris
Na guerra da Argélia, o tenente torturava a domicílio
Jean-Marie Le Pen, falecido dia 7 de janeiro, foi o responsável pela organização da extrema-direita francesa em um partido, o Front National (Frente Nacional), fundado em 1972 por personagens de passado tenebroso, como ele próprio. Com seu desaparecimento, a França perde um supremacista branco, islamofóbico, antissemita, homofóbico e ex-torturador na Guerra da Argélia.
Em 21 de abril de 2002, os franceses descobriram com estupefação que Le Pen disputaria o segundo turno das eleições presidenciais com Jacques Chirac, com a exclusão, totalmente inesperada, do socialista e primeiro-ministro Lionel Jospin. O resultado do primeiro turno caiu como um raio, causando um dos maiores traumas da história recente do país. No segundo turno, graças a uma frente republicana formada para combater o fascismo, Chirac venceu com 82,21% dos votos.
Contei a participação ostensiva do ex-tenente neofascista em atos de tortura a domicílio durante a Guerra da Argélia, no meu livro “A tortura como arma de Guerra-da Argélia ao Brasil”, finalista dos Prêmios Jabuti e Biblioteca Nacional, de 2017.
Punhal providencial denunciou o torturador
Entre os dois turnos da eleição de 2002, a jornalista Florence Beaugé voltou a fazer novas revelações no jornal Le Monde sobre a Guerra da Argélia, desta vez envolvendo um tenente que tinha o apelido de Borniol e era o chefe de seção de uma das companhias de combate. Alguns anos antes, ele tinha pertencido, assim como o general Paul Aussaresses – chefe dos esquadrões da morte na Guerra da Argélia – à Juventude Universitária Católica (juc). Esse tenente, não era outro senão Jean-Marie Le Pen, que posteriormente fez carreira política e fundou o Front National. Descrito por Paul Aussaresses em seu livro Services Spéciaux - Algérie 1954-1957 como “bastante turbulento”, o tenente Le Pen “gostava de extravasar sua energia procurando brigas em locais chiques de Argel”.
Pelo Le Monde, a França tomou conhecimento de que o então tenente Jean-Marie Le Pen, engajado voluntariamente na Guerra da Argélia, era um torturador notório, tendo mesmo inaugurado uma espécie de tortura a domicílio durante a Batalha de Argel, em 1957.
Na véspera do segundo turno, em 4 de maio de 2002, o jornal revelou como os paraquedistas franceses invadiram a casa do independentista Ahmed Moulay, situada na casbá (casbah em francês), no centro de Argel. Era dia 3 de março de 1957 e os militares queriam nomes de pessoas ligadas à Frente de Libertação Nacional (FLN). Moulay foi torturado diante de sua mulher e dos seis filhos do casal. Os militares franceses eram dirigidos por um homem alto, louro, a quem chamavam de tenente. O chefe de família foi morto a bala, mas um comunicado dos militares anunciou que ele fora abatido ao tentar fugir.
Aconteceu que durante a invasão da casa do independentista, um dos paraquedistas deixara cair seu punhal. Mohamed, um menino de 12 anos, filho de Ahmed Moulay, guardou a arma. Nela estava inscrito o nome do proprietário: jm le pen, 1er rep. Mohamed teve a sagacidade de esconder o punhal no quadro de luz e quando os paraquedistas voltaram no dia seguinte para procurá-lo, revistaram a casa toda mas não o encontraram. O garoto ficou em silêncio e escondeu posteriormente o punhal em local mais seguro.
Algumas semanas mais tarde, a família Moulay viu na primeira página dos jornais argelinos a foto do tenente louro sendo condecorado pelo general Massu. Seu nome: Jean-Marie Le Pen. Na reportagem do Le Monde de 2002, que reconstituiu a passagem de Le Pen pela Argélia, outros combatentes argelinos deram testemunho de sessões de tortura dirigidas por ele, em 1957.
Jacques Chirac, que tivera apenas 19,88% dos votos no primeiro turno, foi reeleito no segundo turno, em 5 de maio, (com 82,21% dos votos) graças à mobilização dos franceses de todas as tendências contra o torturador Le Pen, que obteve apenas 17,79%.
O punhal de Jean-Marie Le Pen foi usado como prova no processo que este fez contra o jornal Le Monde, que revelara sua implicação como torturador na Argélia. A arma em aço temperado mede 25 centímetros e foi fabricada por uma cutelaria alemã, da região de Ruhr. É o mesmo modelo usado pela Juventude Hitlerista e hoje está exposta num museu argelino.
Mohamed, o menino de 12 anos que assistiu à tortura do pai pela equipe do tenente Le Pen, morreu em 2012, aos 67 anos.
Quando, em 2005, no final do processo contra o general Paul Aussaresses feito por associações de defesa de direitos humanos, o presidente Jacques Chirac retirou do militar a Légion d’Honneur, dizendo-se chocado com as revelações do livro “Services Spéciaux-Algérie 1954-1957” no qual o militar assumira a tortura e as execuções sumárias, o general disse: “Eles me puniram pelo que eu disse e não pelo que fiz.”
Chefe do esquadrão da morte em Brasília
Em 2008, o general Aussaresses lançou seu segundo livro, Je n’ai pas Tout dit, no qual conta sua experiência de militar e de agente secreto, na Segunda Guerra Mundial, na Indochina e na Argélia. O livro é uma entrevista pingue-pongue ao jornalista Jean-Charles Deniau. No capítulo “Professeur Aussaresses – Le camp d’entraînement des dictateurs” (Professor Aussaresses – O campo de treinamento dos ditadores), ele relata sua ação como adido militar em Brasília, de novembro de 1973 a novembro de 1975. Revela sua amizade com o general João Batista Figueiredo e sua experiência como instrutor de técnicas de interrogatório vindas da Guerra da Argélia, no Centro de Instrução de Guerra na Selva (cigs), em Manaus.
Aussaresses escreveu como epígrafe do livro: “Acreditávamos que a Segunda Guerra mundial tinha acabado e que começara a terceira. Chamaram-na Guerra Fria, mas era verdadeiramente uma terceira guerra mundial.”
Ao reconhecer mais tarde os militares como ex-combatentes de uma guerra, a França se colocou fora da lei, pois se os “acontecimentos” da Argélia (les événements de l’Algérie) – como era chamada a intervenção militar – fora uma guerra, a tortura e as execuções sumárias são violações flagrantes e inaceitáveis da Convenção de Genebra.
E como a tortura é considerada “crime contra a humanidade”, ela é imprescritível, apesar de os militares franceses terem sido anistiados de todos os fatos relativos à Argélia, inclusive a tentativa de golpe da oas contra o general De Gaulle.
No Brasil, a anistia também serviu para anistiar militares responsáveis por tortura e desaparecimentos forçados, ambos considerados crimes contra a humanidade e, como tal, imprescritíveis.
*LENEIDE Duarte-Plon é Jornalista internacional. Co-autora, com Clarisse Meireles, de Um homem torturado – nos passos de frei Tito de Alencar (Editora Civilização Brasileira, 2014). Em 2016, pela mesma editora, lançou A tortura como arma de guerra – Da Argélia ao Brasil: Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado. Ambos foram finalistas do Prêmio Jabuti. O segundo foi também finalista do Prêmio Biblioteca Nacional.
Foto: Capa do Le Humanité: O ÓDIO ERA SEU TRABALHO - O fundador da Frente nacional está morto. Racista, anti-semita, anticomunista, ele se dedicou sua vida para a reabilitação de uma extrema direita desqualificada por seu passado colaboracionista.
Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.