?>

Opinião

Taxa Selic – Uma outra perspectiva

Taxa Selic – Uma outra perspectiva

Artigo por RED
03/04/2023 05:30 • Atualizado em 04/04/2023 12:31
Taxa Selic – Uma outra perspectiva

De JOÃO BATISTA MEZZOMO*

A Taxa Selic tornou-se o assunto do momento, uma vez que o presidente Lula afirmou, tendo recentemente conquistado o apoio de um Nobel de economia, que com esse valor de nossos juros básicos não é possível a economia crescer. Parece que ele está acompanhado pela imensa maioria das pessoas, ao menos de esquerda, bem como pela esmagadora maioria dos economistas de qualquer viés ideológico. Tanto é assim que, quando a “mídia corporativa” anuncia a elevação dos juros básicos em algum país do mundo, invariavelmente algum economista é chamado para explicar aos leigos que isso vai provocar alguma recessão, mas seria o preço salgado para evitar a inflação. Quero nadar contra a corrente e defender aqui que isso, na maioria das vezes, não se aplica mais para a economia dos dias atuais, antes, ocorre o contrário.

A economia pretende ser uma ciência, e de fato ela é. Neste caso, deve saber que ciência não traz resultados absolutos e suas leis costumam ser datadas, ou seja, elas mudam no decorrer dos anos. No caso das ciências exatas, isso se deve a um aprofundamento cada vez maior em seus objetos, de modo a revelar outros aspectos. No caso das ciências sociais, como a economia, não deixa de ser o mesmo, com a diferença que o seu objeto muda pelo fluxo da história e – como explicamos em “Hegel e Marx” – não podemos afirmar que tais mudanças ocorram pela decisão das pessoas, pois elas parecem possuir vontade própria. Independentemente disso, se o seu objeto muda, é razoável supor que as leis econômicas mudem junto, de modo que elas valem para um determinado momento histórico, com determinado desenvolvimento das forças produtivas, e perdem parte de seu valor preditivo e explicativo em outro, no futuro.

Ao mesmo tempo, temos de saber que ciência não se baseia em argumentos morais, nem em “argumentos de autoridade” ou “de maioria”. Por exemplo, para a ciência, o sol não nasce todo o dia por ser bom, não deixa de chover por um castigo, nem a verdade pode ser obtida pelo número de curtidas no Face Book. O planeta terra não está parado no centro do universo, mesmo que o sábio Aristóteles assim pensasse. A esmagadora maioria das pessoas há alguns séculos atrás acreditava que a terra era plana, nem por isso ela o é. Ou seja, não podemos julgar uma teoria em função das pessoas ou mesmo dos especialistas concordarem ou não com ela, pois eles podem estar todos errados. E se tomamos algo preliminarmente como certo, ou errado, perdemos a oportunidade de olhar em que este algo consiste de fato e quais as possibilidades que pode oferecer. Neste caso, não fazemos ciência, mas uma espécie de religião do tipo dogmático.

A ciência deve partir do empírico e a partir dele tentar imaginar leis gerais de recorrência que o explique e ao mesmo tempo preveja os acontecimentos futuros. Então, quando uma ciência apresenta problemas preditivos e/ou explicativos, ela costuma atravessar períodos de crise dos quais sai somente quando consegue obter novas leis, que expliquem os acontecimentos com mais precisão e permitam previsões mais certeiras. Esse processo foi descrito no livro “A estrutura das revoluções científicas” de Thomas Kuhn. Neste caso, quando há uma mudança de paradigma na ciência, é interessante (ainda que não necessário) que se explique também por que a lei anterior já funcionou, mas não funciona mais. Ou seja, o que foi que mudou para que uma determinada lei tenha se tornado anacrônica e por que a nova é eficaz.

Então, se eu pretendo defender que não é verdade que “Selic alta prejudica o crescimento econômico”, devo começar apontando as discrepâncias entre a teoria e a prática observada no momento presente. Vou citar apenas alguns exemplos. Primeiramente, os dois governos Lula ocorreram com Selic superior à atual em quase todos os oito anos, e o crescimento da economia saltou aos olhos e foi disparado o melhor depois da redemocratização. Quando a Presidente Dilma assumiu, implementou um pacote de medidas que visavam impulsionar ainda mais a economia, favorecendo setores internos, como a indústria, sendo que uma das medidas adotadas foi a redução da Selic de 12% para 7% do segundo semestre de 2011 até a metade de 2012, aproximadamente. Mas o que se viu foi desaceleração da economia, ao invés de crescimento. Com a Selic tendo se aproximado da meta de inflação, houve uma saída de dólares, o que causou depreciação do real e, consequentemente, perda do poder aquisitivo do assalariado, num momento em que as expectativas gerais eram extremamente otimistas. Para conter a subida do dólar e evitar a inflação decorrente disso, sem o uso das reservas, o governo optou por emitir swaps cambiais em dólar, mas isso não provocou os efeitos desejados. O dólar continuou a subir, de modo que, no resgate das Swaps, com o dólar mais alto, a dívida pública brasileira, que vinha caindo, quase dobrou de valor. Ou seja, a redução da Selic não causou aceleração, pelo contrário, de modo que o governo optou por subi-la novamente, elevando-a a algo em torno de 14%, valor superior ao que estava inicialmente. Ocorre que tal subida não conseguiu levar a economia de volta ao que era antes, pois as situações econômica e política haviam se modificado.

Após a saída de Dilma Roussef, pelo golpe, a Selic baixou e manteve-se em torno de 6%, sendo que no governo Bolsonaro ela baixou mais ainda, mantendo-se abaixo de 5% de 10/2019 a 06/21, sendo que de 08/2020 a 01/21 foi interior a 2%. Mas, ao invés da economia reagir, ela apresentou um crescimento em torno de 1% ao ano, o que é um crescimento nulo em termos de PIB per capita. Já desde o início de 2021, em função do aumento dos preços que levara o povo a “comer osso”, o BC passou a aumentar a Selic, chegando aos 13,65% atuais. A esmagadora maioria dos economistas previu que o crescimento diminuiria ainda mais, mas ocorreu o contrário. O PIB subiu 5% em 2021 e 2,9% em 2022. Obviamente, a recuperação de 2021 é em parte justificada pela queda de 4% de 2020, ocasionada pela pandemia, mas o valor de 2021 superou as expectativas, assim como o de 2020, com Selic baixa, foi mais negativo do que a média dos países.

Vejamos agora exemplos de fora do país. Quando da campanha que o elegeu a Presidente dos EUA, Donald Trump prometeu desvalorizar o dólar para devolver competitividade à indústria americana, trazendo de volta os bons tempos do american way of life. Mas uma vez tendo sido eleito, o FED não agiu nesse sentido, os juros básicos foram majorados, o dólar apreciou e a economia, ao contrário do que preconiza o mainstream, foi para o pleno emprego. Trump não se reelegeu mais em função de uma má administração da pandemia do que por questões econômicas. No momento presente, repete-se o caso. Em função da ameaça de inflação, o FED subiu os juros e a previsão é que que haja recessão. Ocorre que o que está acontecendo é uma retomada das atividades nos EUA e – faço uma previsão – não haverá recessão nos EUA, antes haverá nos países que não puderem ou não quiserem tomar as medidas adequadas ao caso, a fim de manterem o poder aquisitivo de suas populações.

A economia é uma ciência complexa, de modo que sempre é possível justificar as discrepâncias entre teoria e realidade culpando a realidade. Como se diz jocosamente entre economistas, “torturando os dados eles confessam” e, se desejamos, acabamos encontrando um culpado. No entanto, eu acredito que podemos explicar de forma bem mais adequada o comportamento da economia dos dias atuais, bem como explicar por que as suas leis se tornaram enrijecidas se olharmos a realidade e suas mudanças ao longo de um século. Vamos à tentativa de explicação, iniciando pelo modo como funciona a economia dos dias atuais, na opinião do autor. Depois tentaremos explicar por que no passado funcionava diferente e as leis eram eficazes, mas hoje não são mais.

Quando os juros básicos são aumentados numa economia plenamente inserida no mercado global, que tenham ativos que interessem a esse mercado, ocorrem no mínimo dois movimentos opostos no que tange à inflação e queda da atividade econômica. O primeiro é o que tradicionalmente é dito, que, com juros altos, diminui a demanda agregada, formada por investimentos e gastos das famílias, provocando desaceleração e queda dos preços em função da queda da demanda, diminuição do emprego e redução dos salários. Por isso, normalmente entende-se que subir Selic é indicado para combater uma inflação de demanda, mas que o preço a ser pago para obter sucesso é provocar alguma recessão. O segundo é que o aumento dos juros básicos pode provocar um fluxo de recursos para o país, apreciando a sua moeda. Como o preço de grande parte dos produtos é dolarizado, a queda do dólar tende a frear a inflação. Mas neste segundo caso, ao invés do aumento da Selic provocar queda da atividade econômica, ele geraria aumento, pelo aumento do poder de compra dos assalariados, em função da apreciação cambial.

Dizer que a valorização da moeda gera expansão da economia pode parecer uma espécie de crença na magia, mas pensemos um pouco mais. Ocorre que o produto (PIB) não está dado, ele vai depender da demanda agregada (consumo mais investimentos). Ocorre que a grande maioria das famílias gasta boa parte de sua renda com alimentação. E ocorre que a alimentação (em todo o mundo) é a última despesa que as famílias cortam, preferindo cortá-las nos bens duráveis como automóveis, fogão, geladeira, televisão, smartphone, reforma da casa e com serviços como cabeleireiro, tele entrega, etc. Então, quando o dólar sobe, sobe o preço do feijão, do arroz, da carne e do frango. Como as famílias não reduzem muito o seu consumo com esses itens alimentares, sobra menos para os outros, que acabam “vendendo menos”. Se o total de dinheiro se mantém, mas o total de produtos e serviços diminui temos o que? Inflação com estagnação: estagflação, um fenômeno bem real e recorrente que não cabe no esquema de “juros altos = recessão” ou, “escolha entre inflação e desemprego” do mainstream.

Repetindo para tornar mais claro, a diminuição da Selic tende a provocar aumento do dólar, o que aumenta o preço dos alimentos e provoca uma transferência de renda entre os assalariados e os produtores rurais (sejam pequenos ou grandes), cujos produtos são essenciais e dolarizados. Com menos renda, em vista da inflação dos alimentos, a maioria gasta menos e o produto (PIB), que não é antecipadamente dado, tende a ser menor que o que poderia ser se os assalariados “sobrassem mais dinheiro” depois de comprar os alimentos. Pensando desse modo, concluiremos facilmente que um aumento do dólar não ajuda a indústria, a qual atende ao mercado interno, mas sim aos setores produtores de commodities, sendo que um dos motivos do empoderamento do setor agrário nos últimos tempos tem sua origem no crescimento da parcela da renda nacional que absorvem, em detrimento do resto. Pois quando os alimentos sobem, por que o dólar subiu, não mudam tanto os percentuais que o setor agrícola nacional vende internamente e externamente (aproximadamente 2/3 e 1/3, respectivamente), muda apenas o quanto da renda nacional vai para os alimentos e quanto sobra para o resto (incluído a indústria). De modo que, reduzir a Selic tende a beneficiar o setor agrário e prejudicar o assalariado e a própria indústria, que atende prioritariamente o mercado interno. Se queremos ajudar a “indústria brasileira”, que já existe, mas trabalha com grande capacidade ociosa, temos de procurar aumentar o poder aquisitivo do brasileiro antes de pensar em disputar o mercado global. E o maior inimigo do poder aquisitivo geral é a inflação. O que os planos de congelamento nos mostraram é que a contenção de preços tem o condão de aumentar o poder de compra, a demanda e a produção, quando a oferta a pode atender. E nos dias atuais ela pode e é mesmo o sonho de todo o prestador de serviço, todo o industrial e todo o lojista: que as pessoas queiram gastar mais!

Mas, se se acredita que juros altos são recessivos é por que já o foram. O que então teria mudado no mundo para que não sejam mais da mesma forma que eram? Bem, a questão é bem complexa pois envolve diversos aspectos e não funciona exatamente igual em todos os países. Mas, em linhas gerais, a primeira coisa a se considerar é que a um século atrás o estado interferia muito pouco na economia, havia pouco dinheiro disponível, as pessoas tinham poucas possibilidades de financiar seus gastos e as empresas dependiam dos bancos. Naquele sistema do laissez faire, normalmente, quando os juros subiam os investimentos diminuíam. Além do mais, a economia trabalhava no pleno emprego, a maioria das pessoas trabalhava em atividades braçais, como a agricultura e a indústria e era muito difícil aumentar a oferta para atender a um aumento da demanda. Por isso, muitas vezes a inflação ocorria por excesso de demanda, ou escassez de oferta, o que dá no mesmo. A maior parte da renda gerada era consumida e apenas uma pequena parte era acumulada. Naquelas condições, aumentar a taxa de juros equivalia a encarecer o investimento e destinar uma parcela maior da escassa produção aos que viviam de rendas, em detrimento de quem trabalhava e produzia tudo. Depois da Segunda Guerra Mundial a situação se alterou pelo aumento da riqueza e a possibilidade de crédito ao consumidor. Nesta nova situação os juros altos efetivamente eram e ainda são em alguma medida recessivos, pois diminuem a possibilidade de financiamento do consumo e do investimento. Porém, o aumento constante da riqueza acumulada e fora do controle de qualquer país, notadamente a partir dos anos 70 do século passado, trouxe uma segunda influência dos juros básicos, que foi se tornando a cada dia mais determinante: a influência dessa “bolha de riqueza” sobre a cotação das moedas e, consequentemente, sobre a divisão da produção global entre os países. Foi também essa influência que permitiu ao Brasil ancorar a sua moeda na riqueza global e estabilizar os preços, interrompendo uma depreciação de décadas de sua moeda, aumentando o poder aquisitivo do brasileiro e a própria parcela que o país absorve da produção global.

Ao contrário de o aumento dos juros provocarem uma destinação maior da produção aos rentistas, prejudicando quem trabalha, no momento atual a produção pode atender a todos que tenham dinheiro. Apesar de grande parte das pessoas consumirem sem produzir nada, não é isso que impede de os mais pobres consumirem, pois a produção poderia ser maior, bastaria que os pobres tivessem mais recursos. Em escala global, a maioria dos que são atraídos pelos juros da dívida pública não são os muito ricos – que já consomem o que desejam, acumulam a maior parte de sua renda e não desejam vender os seus ativos – mas fundos de pensão de assalariados de categorias em certo sentido privilegiadas, que não são ricos, mas também já consomem o que gostariam e estão em busca de segurança para o futuro. Ou seja, grande parte da riqueza acumulada e que se forma ao longo do tempo não vem da produção material, mas da simples valoração¹, e não se destina ao consumo imediato, mas à acumulação. Os juros altos geram mais riqueza, mas ela não interfere na economia real. Se eles diminuem, os rentistas vão para a bolsa e ganham muito mais, não pela produção, mas pela valoração. Por isso, nos dias atuais está errado dizer que a riqueza dos ricos é consequência da pobreza dos pobres, mas até pouco tempo atrás era verdade. Ocorre que o sistema está diante de um impasse: as empresas gostariam de vender mais, mas elas só atendem a quem tem dinheiro. No raciocínio tradicional, de que o valor vem do trabalho ou da utilidade, “não se deve dar o peixe, mas ensinar a pescar”. Ocorre que nos dias atuais, quando se dá o peixe, muitos outros peixes brotam do sexto, como por milagre. Um “milagre” que se tornou possível graças ao imenso desenvolvimento das forças produtivas ao longo de um século. De tal modo que, atendidas certas condições que variam de país para país, subir a taxa básica de juros gera renda, mesmo que fique acumulada, aprecia a moeda que remunera os assalariados e aumenta a demanda, a qual encontra do outro lado empresas ávidas por produzir e vender. Todos ganham, mas existem riscos. Existem riscos?

Quais os riscos teóricos que haveria, nos dias atuais, numa subida da taxa básica de juros? Basicamente dois, e o seu grau varia de país para país. O primeiro risco seria a ocorrência de desaceleração, conforme exposto no primeiro efeito da subida de juros descrito acima. Ou seja, geraria contração nos investimentos e consumo. O segundo seria o possível crescimento da dívida pública, tornando-a insolúvel e levando ao calote dos credores, com enorme perda da credibilidade do país.

Quanto a uma possível desaceleração da economia, se isso ainda é em alguma medida válido para os EUA e para os países ricos em geral, é muito pouco válido para o Brasil, e isso se deve a condições objetivas das respectivas economias. Enquanto nos EUA a diferença entre juros básicos e juros de mercado (o chamado spread bancário) é pequena, no Brasil ela é muito grande. Para saber o porquê dessa diferença, não convém recorrermos a considerações morais, como a “ganância dos bancos nacionais”, pois isso não é ciência, como dissemos. Se queremos comparar a lucratividade dos bancos brasileiros com os de fora, o melhor indicador é o lucro sobre o capital próprio, uma vez que nenhum banco, nenhuma empresa, nenhum fundo de aposentadoria de trabalhadores e nem mesmo nenhuma pessoa (aqui ou lá fora) investe seus recursos por benemerência. E no quesito “lucro sobre o capital próprio” os lucros dos bancos brasileiros não destoam dos do resto do mundo e são inferiores à média da América Latina. Para ter uma evidência disso, basta ver que a maioria dos bancos de fora que vieram com a promessa de baixar os juros e quebrar os nacionais, acabaram desistindo. Hoje o maior dos que resistiram, o Santander, opera com os maiores juros de mercado entre os bancos brasileiros. Seria o caso de sua moral ter mudado pela travessia do Oceano Atlântico? Penso que temos uma explicação bem melhor, se nos dispormos a olhar a realidade.

Ocorre que o juro que o banco cobra é composto por vários componentes além do valor que ele paga por tomar emprestado dinheiro do “rentista” que investe em seus CDBs (aproximadamente a Selic), acrescido de seu lucro. Ou seja, nem todo o spread bancário é lucro, dentro dele tem inúmeros outros custos, como os salários dos funcionários, custos de aluguéis (que também pagam salários), energia (que também pagam salários), informática (que também pagam salários), e, principalmente, a inadimplência, que no Brasil é uma das maiores do mundo², representando uma parcela significativa dos juros cobrados pelos bancos no Brasil. Com base nisso podemos entender, se quisermos, por que se o BC reduz a Selic, provocando alta do dólar e, possivelmente, aumento do pessimismo e expectativa de inadimplência, os bancos (inclusive BB e CEF) não se sintam animados a reduzir os seus juros. Seria bom que todos soubessem – principalmente quem se propõe a administrar o país, composto também pelo sistema financeiro – que quando um credor não paga o banco, o banco repassa os custos àquele que paga, via juros, aqui e em qualquer lugar do mundo conhecido. Ocorre que normalmente o brasileiro odeia olhar a realidade e, neste caso, ele já sabe que a culpa da inadimplência alta é dos bancos. No entanto, olhando para os números, talvez possamos concluir que essa “peninha” ou mesmo simpatia que o brasileiro nutre em relação aos que não pagam o banco, sem olhar se são vítimas ou talvez espertos que se utilizam do sistema, é um dos principais motivos de os juros de mercado serem tão altos no Brasil. Ao contrário dos EUA, onde o inadimplente sofre graves sanções previstas em lei, e num prazo curto, levando-o mesmo a perder seus bens e não conseguir mais parcelar suas compras a juros baixos, o que é uma perda considerável num país de altíssima bancarização e onde o cidadão antecipa suas compras via financiamento a juros módicos, que só são possíveis pelo menor custo dos bancos. Outro fator muito importante são os chamados ganhos de escala, que permitem aos bancos de um país como EUA dividir seus custos fixos com muito mais pessoas que os bancos brasileiros. Ou seja, os custos fixos dos bancos são repassados aos que pagam juros a ele, de modo que – e isso é uma regra para todos os setores da economia – quanto mais pessoas pagarem juros aos bancos, mais os bancos podem diluir seus custos fixos. Ocorre que um percentual pequeno de brasileiros paga juros a bancos, comparativamente aos EUA, por exemplo.

Em vista de tudo isso, aumentar Selic não altera significativamente os juros de mercado. Se reduzíssemos a Selic a zero, com possíveis danos à proteção da moeda, mesmo assim os juros de mercado seriam altos no Brasil, por questões de escala e de custos, principalmente o da inadimplência, o que torna sem sentido a maior parte das considerações de hoje sobre “baixar Selic para reduzir juros” no Brasil. E mesmo que se conseguisse baixar os juros de mercado, isso não influiria significativamente no aumento da demanda, pois os juros continuariam altos e muitos poucos consumidores ou empresários passariam a tomar dinheiro emprestado dos bancos, ainda mais numa situação de demanda reprimida e pessimismo. Foi justamente o que observou Blanchard, num texto sobre a ação do Banco Central brasileiro na transição entre os governos FHC e Lula. Ele opinou que provavelmente os juros não influenciariam muito a demanda no Brasil, pois muitos poucos consumidores ou empresários se disporiam a tomar valores a esses juros. De fato, Blanchard conseguiu ver de longe o que muitos economistas brasileiros não conseguem ver de perto e muitas vezes ficamos num debate moral e estéril. Isso lembra a introdução do Príncipe, de Maquiavel, quando o autor se desculpou por tentar “ensinar o padre a rezar missa”, e justificou dizendo que talvez, de longe, da planície, seja mais fácil observar as coisas do Castelo³ . Maquiavel foi cuidadoso com Lorenzo de Medici, o qual temia e do qual desejaria obter favores, não me sinto motivado a fazer o mesmo com nossos “combatentes do rentismo”. Ocorre que, nos dias atuais, ao menos aqui no “Ocidente”, podemos revelar sem muito receio o que pensamos, sem risco de perder o emprego (no meu caso a aposentadoria) ou correr riscos de ser preso e enviado à força ao front, agredido fisicamente na rua ou mesmo de ser envenenado.

Pelo exposto, podemos entender por que, nos EUA, aumentar os juros básicos ainda é um componente recessivo, pois o aumento se transmite automaticamente aos juros de mercado, diminuindo o poder de compra geral, contraindo a demanda, e mesmo provocando a quebra de bancos pelo aumento da inadimplência, algo que não acontece no Brasil. Mas mesmo assim, o FED está aumentando a taxa de juros para evitar a depreciação do dólar, mantendo dessa forma o poder de compra e a própria atividade econômica dos EUA. Isso, naturalmente, está provocando um significativo aumento da dívida, que é segundo aspecto que desejamos abordar aqui.

A respeito disso, é bom esclarecer não ser verdade que, quando o BC aumenta a Selic, os juros adicionais são pagos com recursos que seriam destinados a outros fins, como educação ou saúde. Se fosse assim, em toda a alteração da Selic o orçamento deveria ser revisto, o que não acontece. Ocorre que os juros normalmente não são pagos ao credor (que na maioria dos casos não são bancos), mas apenas creditados, e quando algum credor deseja sacar, os recursos vêm de nova emissão de títulos, não do que foi arrecadado por impostos. A rigor somente são utilizados recursos de impostos para pagar juros quando operamos com superávit primário, o que não acontece há muitos anos. Quando operamos com déficit primário, todos os recursos de impostos são gastos com previdência, educação, saúde, etc., sem contar os gastos com juros, e os juros pagos mais o que faltou para os gastos públicos são complementados por emissão de novos títulos. Ademais, quem investe em títulos públicos não tem intenção de retirar o dinheiro, ele apenas confiou naquele país específico para deixar sua riqueza, seja ela grande ou pequena, seja um magnata, um fundo de aposentadoria ou um pequeno poupador. Uma saída maciça somente acontece por uma crise externa (por isso, com Lula o BC subia a Selic nessas ocorrências) ou em casos de mudança brusca da opinião dos credores em relação à conveniência de manter o dinheiro no país, como aconteceu quando o governo Dilma baixou a Selic para um valor próximo à meta de inflação. Houve então grande saída de recursos e consequente demanda por dólares, que o governo mitigou pela emissão de swaps cambias, as quais, no resgate e com o dólar majorado, foram saldadas com emissão de novos títulos, o que fez a dívida pública líquida passar de 32% para mais de 50% do PIB. Ou seja, para devolver o dinheiro dos credores que resolveram sair pelas mudanças na área econômica, não foram usadas as reservas em dólar nem recursos arrecadados por impostos, mas emitidos novos títulos, os quais se somaram aos antigos, majorando a dívida.

No momento ocorre algo parecido nos EUA e outros países. O aumento dos juros para conter a depreciação cambial e a inflação, resultado de uma contração da oferta global ocasionada pela guerra, está provocando um significativo aumento de suas dívidas públicas. O que muitos pensam é que, a partir de determinado valor da dívida, ela se tornará insustentável, provocando uma saída maciça dos credores, depreciando terrivelmente os valores dos títulos e da moeda dos países devedores. É possível que isso aconteça, mas é muito mais provável que isso não venha a acontecer jamais. Como explicamos em “Da escassez à abundância”, a criação de valor não tem relação direta com produção material, trabalho ou utilidade, ela é fruto da mera valoração, ou seja, do valor que as pessoas coletivamente concedem aos produtos e serviços e aos próprios ativos em geral. Por isso mesmo, não existe limite para a dívida de um país, ou, dito de outro modo, quem determina esse limite é o credor. Se o credor confia no devedor, este último pode tomar dinheiro emprestado ao infinito. Ocorre que grande parte dos credores não precisa do dinheiro que acumulou e não tem motivos para sacar. Ademais, eles sabem que se sacarem sozinhos podem perder, e se sacarem todos ao mesmo tempo, seu dinheiro acumulado pode sofrer grandes perdas. Essa saída poderia acontecer aos poucos em virtude da perda de credibilidade dos credores do “Ocidente” e o estabelecimento de um novo destino seguro para os recursos. Porém, no curto e médio prazos não me parece haver essa possibilidade e, “no longo prazo estaremos todos mortos”. Para suceder como porto seguro o dólar e “o Ocidente”, capitaneado pelos EUA, é preciso mais do que ter o maior PIB entre os países, ainda mais quando esse PIB depende umbilicalmente do consumo e inovação do “Ocidente”. Além do mais, essa liderança envolve confiança, visão de mundo, língua, religião, sistema político, cinema, música, inovação num sentido mais amplo do que fabricar chips, pois envolve, além do desenvolvimento de tecnologias novas em amplos setores, também os costumes e a moda. Não vejo que China ou Rússia possam desempenhar esse papel, muito menos impor uma nova hegemonia pela guerra. A rigor, nos dias atuais, nem mesmo EUA e UE tem condições de exercer plenamente essa liderança global. Antes da guerra na Ucrânia o mundo caminhava para o fim das hegemonias e para o estabelecimento de uma governança global, ainda que houvessem resistências. Os movimentos que vemos hoje, quer de um lado, quer do outro, para se reposicionar ou mesmo evitar as mudanças, me parecem mero esperneio de grupos que desejam manter o status quo e garantir privilégios justificando sua ação pelos “interesses nacionais”. Contudo, se a história é movida por uma razão astuta, é possível que o autor esteja sendo ludibriado.

Independentemente disso, o que importa é que o governo atual tem quatro anos para obter sucesso e se não o obtiver, pode a esquerda ter de sair e demorar muito tempo para voltar ao poder de novo. E para o governo obter sucesso, o principal fator é que os assalariados e o povo em geral melhorem de vida e a economia cresça, duas coisas que andam juntas. Para que isso aconteça, o dólar tem de cair, ou ao menos não aumentar. Se o dólar cair, o preço dos alimentos tende a cair, as pessoas em geral conseguirão comprar mais comida e sobrar algum dinheiro, com o qual poderão trocar o fogão, o televisor, a geladeira ou usar mais serviços como cabeleireiro e tele pizza. Os custos de um eventual valor alto da Selic, que estão longe de ser os apregoados, se justificam em vista dos benefícios, que são a proteção da moeda e o aumento do poder aquisitivo de todos os brasileiros. Neste particular, não vejo motivos para a satanização do tripé macroeconômico, que foi usado por Lula em seus oito anos de governo de extremo sucesso. Muito daquele sucesso deve-se ao fato de o dólar ter caído, pelo uso do tripé, de 4 reais para 1,75 reais, aumentando enormemente o poder de compra de todos os brasileiros. A necessidade, inerente ao tripé, de se obter superávit primário, pode ser alcançada pelo aumento das receitas, não pela contração dos gastos.

Por fim, resta dizer que o valor dos juros básicos em que se tornam atrativos e passam a apreciar a moeda varia de país para país e depende de uma série de outros fatores, como o momento em que o mundo atravessa e a consideração do mercado global em relação ao país. Muitas vezes, baixar os juros pode demonstrar segurança e aumentá-los, desespero, de modo que é muito difícil afirmar que subir os juros vai atrair capital ou vai fazê-lo fugir. Penso que muito do sucesso do governo Lula foi por ele ter se colocado acima de disputas ideológicas na economia e não ter procurado culpados, não ter manifestado qualquer preconceito nem criado divisão de espécie alguma. Isso faz sentido economicamente, pois os agregados macroeconômicos, como salários, lucros, gastos públicos, etc., costumam aumentar ou diminuir juntos, ao invés de um crescer em detrimento da diminuição do outro. Em face de todo o acontecido, Lula tem dito que agora quer fazer mais. Ele tem histórico suficiente para que todos os homens e mulheres de boa-fé acreditem nisso e lhe concedam o tempo necessário, mas não podemos esquecer que o ótimo, às vezes, é inimigo do bom.


*Filósofo, economista e engenheiro elétrico, servidor público da Secretaria da Fazenda do RS.

¹ Como explicamos em Da escassez à abundância.

² “Em seu estudo mais recente, que abarca a média dos anos de 2018 a 2020, o Banco Central informa que 31,9% do spread corresponde aos custos ligados à inadimplência. Outros 29,6% se justificam pelas despesas administrativas, enquanto 19,6% são formados por gastos com tributos e com o Fundo Garantidor de Créditos (FGC) – o fundo formado pelos bancos para cobrir eventuais perdas com aplicações na caderneta de poupança e em CDBs, entre outras, em caso de falência da instituição financeira. A margem financeira dos bancos corresponde a 18,9% do spread, ou seja, menos de um quinto do spread bancário.”

³ assim como aqueles que desenham a paisagem se colocam nas baixadas para considerar a natureza dos montes e das altitudes e, para observar aquelas, se situam em posição elevada sobre os montes, também, para bem conhecer o caráter do povo, é preciso ser príncipe e, para bem entender o do príncipe, é preciso ser do povo.

Imagem em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

Toque novamente para sair.