Opinião
Hegel e Marx
Hegel e Marx
De JOÃO BATISTA MEZZOMO*
Marx era um jovem hegeliano, mas discordou de seu mestre em determinado momento, como ocorreu muitas vezes na história do pensamento. Sua discordância era principalmente a respeito do papel da filosofia na determinação da história. Hegel achava não ser possível a ela, filosofia, agir sobre a história, mas apenas revelar as suas escolhas, da própria história, a qual seria movida por uma “razão astuta”, um nome que Hegel usou para designar uma hipotética instância metafísica ativa, ou seja, algo que estaria fora do mundo fenomênico, e que determinaria os caminhos da história. Pois Hegel olhava a história e percebia nela um sentido, uma “razão”, o que o levou a imaginar um comando alhures. A tentação que temos sempre que tratamos disso é a de igualar tal instância ao divino, ou ao próprio Deus, mas a questão de Deus e do divino tem certa complexidade e trataremos dela com algum pormenor outro dia.
Neste prisma da formulação hegeliana, o ser humano seria apenas uma folha carregada ao vento do processo histórico, cabendo a ele no máximo aproveitar o que puder da viagem e, após a história já ter acontecido, caberia à filosofia revelar as suas escolhas, se tiver condições para tanto. Mas Marx discordou neste particular, pois achava que tal pensamento servia à elite e aos reacionários em geral, que viam o mundo como algo “natural” e impossível de mudar pela ação humana. Marx defendeu que cabe à filosofia, e ao ser humano, também “fazer história”. Para isso, necessita descobrir o seu funcionamento, o seu motor, e desenvolver uma ciência para poder agir sobre ela. O funcionamento e o motor da história que Marx pensou ter descoberto foi a luta de classes, a ciência, aquela que chamou de “materialismo dialético” ou “socialismo científico” (em contraposição com o socialismo utópico).
Como sucede acontecer com toda a ciência moderna (pois, numa visão ampla, não existe somente ela), Marx partiu do empírico – o processo histórico – e procurou intuir uma lei que explicasse o seu funcionamento. Pela observação da história ele percebeu que, desde sempre, havia classes sociais que disputavam a riqueza material e o poder entre si, e que tal luta fazia a história se mover. Invertendo a dialética de Hegel – o qual a havia trazido do pré-socrático Heráclito – Marx a tirou do âmbito de um “espírito” (em Hegel) e a trouxe para o campo material, das relações econômicas e da luta de classes. Para Marx, em cada sociedade existia sempre uma classe oprimida, que em sua luta contra a opressão fazia a história se mover. Viu que a burguesia havia sido a classe oprimida no feudalismo e com sua luta por livre comércio acabou por suplantar a classe dos senhores feudais em movimentos que culminaram na Revolução Francesa. Assim, supôs que a classe oprimida no capitalismo – o proletariado – a qual estava numa luta permanente com a burguesia, iria suplantá-la num processo revolucionário semelhante ao que levou à Revolução Francesa, vindo por constituir uma sociedade sem explorados nem exploradores: o socialismo ou comunismo. Para isso bastaria a classe trabalhadora se unir – pois o proletariado era a maioria – e tomar os meios de produção, que teriam sido fabricados por ela mesma e expropriados pela burguesia, através do trabalho não pago, ou mais valia.
Esse pequeno resumo da discordância de Marx com Hegel nos serve neste momento apenas para fazer a pergunta que queremos fazer: quem tinha razão, Marx ou Hegel? Ou mais precisamente (visto que a história não parou), quem TEM razão, Hegel, quando diz que a história é movida por uma força metafísica fora do controle humano ou Marx, quando diz que cabe ao ser humano “fazer história” a partir da descoberta de seu funcionamento?
Bem, seguindo um pensamento hegeliano, acreditamos que “a verdade está no todo” e, portanto, obrigatoriamente ambos – Marx e Hegel – estão certos e ambos estão errados em alguma medida. Para que isso seja possível, basta que se suponha que a história é movida por uma razão astuta, mas somente nos pontos históricos ou até o momento em que o ser humano possa se colocar a cavaleiro da situação. Para isso, teria razão também Marx, o ser humano deve de fato descobrir o funcionamento da história e desenvolver uma ciência que oriente a sua ação. Neste caso, cabe então discutir aqui se o materialismo dialético pode ser a ciência adequada para isso, bem como se as conclusões a que Marx e o marxismo chegaram por essa via são válidas em alguma medida, ou não.
Se olharmos o processo histórico desde Marx até os dias atuais, a conclusão mais razoável nos parece ser a de que o materialismo dialético não se mostrou plenamente eficaz para compreender e orientar o modo de ação no que concerne ao processo histórico, de modo que ele não é ainda a ciência final que nos permitirá realizar o pretenso grandioso destino do ser humano – o qual, por seu turno, cabe ainda descobrir qual é. Basta dizer que a ideia de Marx de que o proletariado deveria tomar os meios de produção e extinguir a propriedade privada e o modo burguês de produção foi de fato implementada na revolução de 1917, mas o sistema que se constituiu demonstrou ser incapaz de levar o ser humano a um estágio superior, e foi deixado para trás em competitividade pelo capitalismo renovado, liderado pelos EUA após a Segunda Guerra Mundial. Evidentemente que, se tomarmos a obra de Marx como infalível, sempre poderemos imputar a outros fatores seu insucesso até agora e esperar que no final ele esteja certo. E é possível mesmo que esteja, mas a questão discutida aqui não é o final, mas o meio, o modo que nos pode levar a agir sobre a história, de modo a que possamos conduzi-la para o melhor dos mundos possíveis, e até mesmo para um mundo aparentemente impossível aos olhos de nosso conhecimento atual, estreitamente ligado aos limites de compreensão da razão especulativa.
Ocorre que, apesar do socialismo real não ter obtido sucesso, o modo como o mundo mudou no século XX pode nos mostrar um outro caminho em direção ao modelo preconizado por Marx, se pudermos nos livrar também nós de nossos preconceitos. Pois, superada a fase da Guerra Fria, o capital foi em busca de rendimentos e acabou alocando recursos e a produção global nos locais de seus menores custos, possibilitando um avanço da técnica e da automação que podem nos levar, ao final, a uma completa libertação do trabalho e ao próprio fim das classes sociais. Em sendo assim, poderíamos aventar a hipótese de que, talvez, a razão astuta de Hegel tenha nos prendido num debate ideológico, enquanto ela fez o seu trabalho, e agora, a sorte já foi lançada. O mundo globalizado obteve um grau tão grande de eficiência produtiva que resulta impossível voltar atrás sem a perda considerável da produtividade global e, consequentemente, do padrão de vida das pessoas. Ao mesmo tempo, o dar-se conta disso, da mudança do mundo, propiciaria ao ser humano ir muito mais adiante nessa linha, de modo a constituir a sociedade que deseja. Nesta perspectiva, a crise atual e a própria guerra na Ucrânia, consistem em mero esperneio que resulta da inconformidade entre o mundo real e o “mundo em nossa cabeça”. Ou seja, o mundo mudaria em função de mecanismos intrínsecos ao próprio processo histórico, e as pessoas se adaptariam às mudanças, com duras penas. No caso presente, o mundo global já se constituiu como uma espécie de país único, mas o pensamento baseado em países estanques resiste. Mas as “duras penas” são sempre opcionais: a reflexão poderia impedir as guerras e a destruição sempre vistas nos momentos de transição e avanços da sociedade. No limite, a reflexão poderia colocar o ser humano a cavaleiro de seu destino, quando não será mais vítima da história, mas a conduzirá. Enquanto ele não compreender plenamente, será carregado. Se pensarmos do ponto de vista dos fins, poderia o mundo ser diferente disso? Poderia ser dado o poder de escolha a um ser que ainda não está pronto?
A questão que envolve Marx e o marxismo possui alguma complexidade, na medida em que ela envolve os anseios mais caros do ser humano, os anseios de felicidade coletiva. A obra de Marx surgiu como uma promessa de uma ciência social que poderia determinar com certeza o futuro, num momento em que a ciência era considerada uma atividade que trazia resultados certos e incontestáveis. O sucesso das ciências naturais, principalmente a física clássica de Newton, provocou uma onda de descrédito nas “verdades reveladas” que baseavam as religiões e ao mesmo tempo uma esperança e mesmo uma certeza de que a ciência viria iluminar a tudo e afastar toda a ignorância e superstição que embasavam as crenças da maioria das pessoas. Mas depois dos tempos de Marx a própria ciência se deu conta de seus limites e se descobriu como algo relativo, que deve igualmente evoluir, na medida em que o seu objeto muda e se aprofunda, ou pelo decorrer do tempo – no caso das ciências sociais; ou pelo aprofundamento da própria observação científica – no caso das ciências naturais. Cabe a quem se interessa no assunto, procurar olhar para o marxismo como uma ciência em evolução, o que é uma redundância, pois toda a ciência está em constante evolução.
Tentemos então ser marxistas com Marx e tratá-lo como um cientista, do ponto de vista do conceito de ciência dos dias atuais. Neste caso, não podemos tomar sua produção como algo infalível. A ciência se baseia no empírico e, no caso das ciências humanas, em um empírico que muda, logo, ela deve também sofrer “revisões”. Grifei o termo “revisões” pois isso já foi encarado, no marxismo, como uma espécie de traição ou pecado mortal. Na medida em que o socialismo científico tomou o lugar da religião ele carregou junto a infalibilidade e a sacralização. Mas não precisamos mais fazer isso, eu penso, de modo que podemos olhar com tranquilidade os “erros” de Marx, que só são erros do nosso ponto de vista, pois, supostamente, a razão astuta contava com eles e até mesmo os induziu.
Primeiramente, Marx se equivocou quando julgou a religião mero “ópio do povo”, algo que ele tem em comum com o “iluminismo radical”. De fato, é possível que a religião tenha como uma das suas origens a ignorância de um ser que ignora o seu destino em sua totalidade e deseja uma felicidade que parece impossível à luz da razão especulativa, mas é possível também que ela, religião, não seja somente isso e não seja a mera razão especulativa o seu remédio, visto ser esta limitada para compreender a realidade em seu todo. Sobre essa limitação da razão especulativa em compreender a essência da realidade a filosofia já discorrera, sobretudo em Kant, mas Marx ignorou o conteúdo da metafísica, classificando-a como vazia, mistificação e mero modo de justificar o “status quo” injusto e desigual. Mais uma vez, ele está certo, em parte, mas possivelmente a metafísica também não seja somente isso. De modo que a religião resistiu e seu enigma ainda está à espera de ser decifrado. E em sua resistência ela fez o marxismo, “que era sólido, desmanchar no ar”. Não foi somente a religião que fez isso, mas ela foi um dos principais atores, pela importância que tem junto às pessoas em geral.
Marx também não percebeu que, no feudalismo, a classe revolucionária, a burguesia, estava fora do conjunto de classes do sistema feudal. Ou seja, não foram os servos que derrubaram o feudalismo, por um lado, mas um conjunto novo de classes sociais, que existia desde sempre e veio “crescendo por fora”, juntamente com um outro modelo de Estado. Por outro lado, o capitalismo não extinguiu o “espírito do feudalismo” (adaptado de Max Weber), posto que é espírito, e ele resiste e se mostra forte até hoje onde a propriedade da terra é o fator predominante. Inclusive, nos dias atuais e no mundo todo, o setor que mais cresce em riqueza, poder e influência é o setor agrário, trazendo de volta uma ideologia conservadora que se pensou extinta. O que nos deveria mostrar que o advento do socialismo não precisa, nem pode, contar com a extinção do “espírito do capitalismo”, e talvez tenha sido o combate a ele que prejudicou a competitividade do modelo implementado pela revolução de 1917. O conceito de classe para si de Marx se mostrou uma ideia equivocada: burguesia e proletariado são classes sociais que compõem um todo e não subsistem uma sem a outra. E o advento do capitalismo não foi obra somente da burguesia, o proletariado esteve junto com ela por “um outro mundo possível”, como testemunham a tomada da Bastilha e a própria luta por independência dos EUA. Isso é importante de ser compreendido especialmente hoje, pois quando a esquerda mira como inimigo a burguesia, está “atirando no que vê e deixando livre o que não vê” – o possível retorno indesejável de um mundo que se pensava extinto. A luta pelo socialismo é um ponto que nos deve conduzir ao futuro, não ao passado.
Correlato a isso, Marx não se deu conta – pois não podia naquele momento – de que não existe um modo de produção socialista. A experiência soviética nos mostrou que a “ditadura do proletariado” e a “expropriação dos expropriadores” são ideias aparentemente boas, mas inviáveis de serem realizadas. Se depender disso o socialismo, ele nos parece impossível. Mas acreditamos que ele não dependa disso, o próprio desenvolvimento das forças produtivas trouxe o mundo a um ponto em que o socialismo é plenamente realizável, para o benefício de todos, basta a humanidade esclarecer o suficiente a questão.
O socialismo hoje é plenamente realizável, disse eu. Por que ele seria hoje e não seria há pouco tempo atrás? Vejam, Marx era materialista e achou que em seu tempo o socialismo já era realizável, pois as forças produtivas haviam chegado a um ponto de desenvolvimento no mínimo próximo ao necessário para permitir a todos uma “vida boa”. Porém, vejam, o conceito de “vida boa” é subjetivo e, possivelmente, quem decide a vida boa que a humanidade pode ter e terá não somos eu, você ou Karl Marx. Presumivelmente, o socialismo ainda não deu certo pois não havia chegado o momento de ele dar certo, as forças produtivas ainda teriam de evoluir mais. De fato, elas evoluíram, e eu acabei de dizer que chegou o momento em que o socialismo é possível. Porém, posso estar enganado, como em minha hipótese Marx estava. Sigamos adiante pois o próximo “erro” de Marx talvez nos ajude a esclarecer um pouco mais se é chegado ou não o momento.
Marx supôs que a implementação do socialismo teria de contar com o uso de alguma violência, pois ele tomou como base a Revolução Francesa. Além disso, no século XIX, além do conceito de ciência ser diferente do atual, também em política se aceitava “a lei do mais forte”, ou seja, havia um consenso geral de linha evolucionista, de que os mais fortes vencem e “as minorias se adaptam”. E foi nesse solo que germinou o nazifascismo. Neste sentido, a ditadura do proletariado e a própria “expropriação dos expropriadores” soaria hoje como uma espécie de fascismo. E ao invés de olhar para isso como um empecilho ao socialismo, nós podemos ver como um sinal do caminho a seguir. Pois o socialismo é, presumivelmente, o regime da paz e da abundância, e ele só poderá nascer da paz e da abundância. Não é o regime que trará a paz e a abundância, mas elas trarão o regime. E não será fruto da luta de uma classe, unicamente, mas o resultado natural dos desejos humanos de felicidade e do desenvolvimento das forças produtivas e do esclarecimento geral. Em minha hipótese, para a sua implementação as condições já estão postas, basta que o ser humano esclareça a questão o suficiente e decida mudar, coletivamente. Mas por que isso ainda não aconteceu? Justamente porque até recentemente não haviam se constituído as condições para a implementação desse regime de paz e abundância, mas agora as condições já estão postas. E por que, postas as condições, ele não acontece? Por que o mundo “em nossa cabeça” ainda é o da competição por hegemonia entre países estanques, o que fazia sentido num reino de escassez, mas não faz mais sentido diante da possibilidade de um reino de abundância.
Para explicar melhor isso, no próximo artigo pretendemos demonstrar como é possível implementar o socialismo hoje, e por que não era há poucas décadas atrás. Esse assunto diz respeito à economia, considerada por alguns a ciência da escassez. E eu penso que somente quando ela puder se descobrir como a ciência da abundância que poderá efetivamente ajudar o socialismo a se constituir no mundo, para o benefício de todos.
*Filósofo, economista e engenheiro elétrico, servidor público da Secretaria da Fazenda do RS.
Imagem – site EspaiMarx.
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