Destaque
O destemido Olsen
RED
Por GIOVANNI MESQUITA*
Certo dia, flanava eu pelas ruas de Porto Alegre, acompanhando seu moroso entardecer. Enfiado nos meus pensamentos, atravessei a Praça Itália, admirando suas colunas grês que nada sustentam. Na vanguarda de todas elas, um Leão de São Marcos, com o rabo de serpente, segurava seu evangelho. Imerso nessa arquitetura, parei na calçada à beira da movimentada avenida. Do outro lado do Parque, um negro de duras feições, que tinha por franja um galho verde, olhava pra mim. Semioculto nas folhagens, lá estava ele: o Almirante Negro. Tomando cuidado com aquela alameda de mão única, atravessei a via para cumprimentá-lo. Parei ereto, com a devida postura de respeito que exige sua patente. Naquele mudo e curto diálogo, nós nos entendemos nos tempos, nos significados e despedimo-nos.
Segui meu rumo, lembrando de outro Almirante, o Saldanha da Gama, aquele que, em 1893, levantou a Armada pela restauração da monarquia. Gama, depois de visitar Isabel, a filha do Pedro, voltou para o Brasil sem um rebento da extirpe Bragança para exibir como bandeira da reação monárquica. Frustrado, mas não derrotado, juntou-se às tropas maragatas na fronteira do Rio Grande do Sul. Como ovelha não é para mato, por ser um marinheiro maturrengo, foi facilmente atravessado por uma lança republicana. Saldanha da Gama deitou eternamente no manto verde da pampa, levando a saudade do escravagismo na mente e a monarquia no coração.
Caminhei 650 metros, até onde estão os símbolos do panteão em homenagem à Marinha do Brasil. Lembrei, então, o porquê de o busto do Almirante Negro não ter sido colocado lá, sendo desterrado para frente de uma praça que homenageia ancestrais que não são os seus. Soube, naqueles dias do ano 2000, os motivos pelos quais a herma ter ficado em local tão ermo, distante do Monumento à Marinha. Ocorre que a Marinha não permitiu que o lendário marinheiro negro, aquele que acertou as contas com a chibata escravagista, compartilhasse o espaço reservado à memória da esquadra.
O horror da cúpula da força naval brasileira ao gaúcho João Cândido Felisberto foi prontamente renovado em abril de 2024. Na oportunidade, o atual Comandante da Marinha, o Almirante Marcos Sampaio Olsen, enviou uma mensagem à Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados. O desígnio do seu ofício era tentar impedir que o Almirante Negro fosse incluído no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Na carta, Olsen diz que homenagear como heróis Cândido ou “qualquer outro participante daquela deplorável página da história nacional" seria um incentivo para aqueles que buscam "recorrer às armas que lhes foram confiadas para reivindicar suposto direito individual ou de classe". E que aquele episódio “opróbrio da história, cujo o estopim se deu pela atuação violenta de abjetos marinheiros que, fendendo a hierarquia e disciplina, utilizaram equipamentos militares para chantagear a nação[...]”. Mesmo reconhecendo, agora nesse tempo distante, que era “justo o pleito pela revogação da prática repulsiva do açoite [...]” o texto insinua que, no fundo, o movimento objetivava “deliberadamente, vantagens corporativas e ilegítimas. ” E quais seriam elas? A exclusão de oficiais torturadores? A diminuição da carga de trabalho? Ou aumento de salário?
Ele encerra a missiva com a seguinte análise de conjuntura: “Nos dias atuais, enaltecer passagens afamadas pela subversão, ruptura de preceitos constitucionais” [e o] “descomedido emprego da violência de militares contra a vida de civis brasileiros é exaltar atributos morais e profissionais, que nada contribuirá ao pleno estabelecimento e manutenção do verdadeiro Estado Democrático de Direito.” É necessário lembrar que esse manifesto de preocupação “cívica e democrática” ainda se encontra na página oficial da Marinha do Brasil.
Será que o opiniático almirante de esquadra confeccionou alguma carta ou declaração de repúdio à “subversão, ruptura de preceitos constitucionais” por parte das Forças Armadas? Teria ele se manifestado em público contra o planejado “descomedido emprego da violência de militares contra a vida de civis brasileiros”, como a que vimos ser propugnada pelo seu antecessor o Almirante ALMIR GARNIER? É de conhecimento geral que Garnier, com a máxima prontidão, voluntariou-se a colocar os tanques da Marinha nas ruas para impedir que Lula assumisse a presidência. Eu desconheço qualquer iniciativa do militante militar nesse sentido. Será que o silêncio de Olsen, nesse episódio, significa que ele aprendeu a lição de que milicos devem ficar de bico calado e não se meter no cenário político brasileiro...?
Em novembro, o Governo Lula, pressionado pelo deus Mercado, enviou para o congresso o projeto de corte de gastos. No projeto está incluído um pífio aumento de desconto da previdência a todas as Forças Armadas. O pagamento da previdência por militares passaria dos atuais 1,5% para 3,5%, no Fundo de Saúde. No entanto, a contribuição de todos os outros trabalhadores vai de 5% a 20%. Além disso, os militares passariam a se aposentar aos 55 e não aos 50 anos, sendo que os civis se aposentam aos 65 anos. A proposta também revogaria a morte ficta. Essa espécie de falecimento, uma curiosa tradição de nossa caserna, ocorre sempre que um militar, ao cometer atos de bandidagem, é expulso da Força. Nesse processo, ele tem decretada na sentença a sua “morte simbólica”. A partir daí, seu salário, integral, é repassado a sua esposa... Dizem os observadores de espíritos que é possível ver várias dessas almas vagando no calçadão de Copacabana nos finais de tarde.
Ecomo se portou nosso “herói” quando soube que seriam modificados esses privilégios? Em resignado silêncio? NÃO! Lançou-se, sem vacilos, à frente de batalha. Ordenou a composição de um sofisticado audiovisual, pago obviamente com dinheiro público, para expressar sua contrariedade. Oportunizado pela “comemoração” ao Dia do Marinheiro, publicou no canal oficial da Marinha no You Tube o vídeo intitulado “Privilégios? ”. Nele os marinheiros demonstravam toda a sua energia em fainas de marinheiragens aéreas, marítimas e terrestres. E a cada quadro de seus feitos se sucedia, de contraponto, uma a imagem da notória “boa vida” de todos os outros trabalhadores brasileiros. Traduzindo, chamou as cidadãs e os cidadãos não fardados de vagabundos! Muitos de nós, com toda a certeza, adoraríamos viver no mundo mágico de Olsen. Mas, infelizmente, ele é apenas o fruto de uma mente autoritária, hipócrita e cínica. Como vimos, Olsen não despreza apenas os civis. Ele também acha os marinheiros, os subalternos, é claro, abjetos. Então, baseado nos critérios do próprio Olsen, o que dizer desse senhor que, ao “fender a hierarquia”, de maneira pública e acintosa, atacou as determinações de seu Comandante Supremo, o Presidente do País, defendendo um “suposto direito individual ou de classe” [e] “vantagens corporativas e ilegítimas?”
Presidente, não haverá, em toda a Marinha do Brasil, um único oficial que não seja um saudosista do império escravagista, um acobertador de golpistas, para colocar no comando dessa Arma?
*Giovanni Mesquita é Historiador e Museólogo.
Foto de capa: IA
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