Opinião
Rui Facó, o intérprete do Brasil Profundo
Rui Facó, o intérprete do Brasil Profundo
De LINCOLN PENNA*
É na economia política que convém procurar a anatomia da sociedade civil.
(K. Marx. Prefácio Para a Crítica da Economia Política).
Há sessenta anos morreu Rui Facó. Escritor talentoso, intelectual pertencente a uma geração que subsidiou o Partido Comunista do Brasil e autor de uma obra genial intitulada Cangaceiros e Fanáticos: gênese e lutas, na qual sustenta que ao sertanejo pobre e oprimido só resta a escolha entre o cangaço e o messianismo.
Essa situação foi muito bem sublinhada por Carlos Alberto Dória, em seu artigo “O Nordeste: `Problema Nacional` para a esquerda”, que faz parte do livro História do Marxismo no Brasil coordenado por João Quartim de Moraes e Marcos Del Roio e publicado pela Unicamp.
A exemplo de Nelson Werneck Sodré, Alberto Passos Guimaraes, Caio Prado Junior e tantos outros estudiosos da realidade brasileira em meados do século XX, a presença do latifúndio responde pela miséria no campo, pela seca crônica da região nordeste, em especial, e esses intérpretes entendiam ser essa a razão que impunha a essas populações a saída da região em direção ao Sul e Sudeste. Aos que permaneciam, a alternativa era uma dessas formas de inserção apontada acima, isto, tornarem-se cangaceiros ou aderirem ao misticismo.
Em ambas as formas procuravam se desvencilhar da opressão que se encontra presente em suas vidas uma componente insurgente, capaz de potencialmente enveredar para confrontos em face das estruturas que os oprimem.
Como se sabe, desde a “lei das terras”. De 1850, a posse foi banida praticamente dos costumes de apropriação nas chamadas terras devolutas, ou seja, da União. Logo de ninguém. A partir dessa data, somente a compra daria lugar ao título de propriedade fundiária. Era, então, a primeira manifestação da internalização do capitalismo no campo.
Todavia, os latifundiários, através da grilagem, passaram a incorporar essas terras, uma vez que pela via legal a tal lei se tornava praticamente inócua, uma vez que somente quem tinha condições poderia adquiri-las. Assim, os latifundiarios lançavam mão de expedientes extralegais para se apropriaram de modo a expandir as suas grandes propriedades rurais, grande parte delas improdutivos como sói a acontecer com as terras do latifúndio. Portanto, com a introdução do capital como meio de aquisição de terras, quem não possuía renda estava cexcluído a partir da implantação da tal lei.
Facó associa em seu livro o fanatismo à ação dos cangaceiros, cuja recepção nas elites letradas levou a duas situações quanto a interpretação. Primeiro, que o fanatismo tal como ficou conhecido era uma forma de desqualificar a luta de resistência sertaneja, empregada de maneira preconceituosa, como ocorrera com o episódio de Antônio Conselheiro, em Canudos, no final do século XIX. Ou da mesma forma que a ditadura anos depois passaria a denominar de terroristas os militantes que se empenhavam em derrubar o regime militar e empresarial de 1964, seja pela via do confronto armado ou não.
A outra coisa, ou observação, é a de que mais do que fanatizados essa gente pobre, explorada e excluída de toda e qualquer assistência por parte do estado. Era muita mais vítima de um sistema social dos mais perversos, que de costume acaba por ser naturalizado como algo derivado do destino. O misticismo é quase sempre o resultado gerado por um inconformismo diante de uma sensação de impotência estimulada pelos próprios opressores dentro dessa lógica da suposta loteria da vida.
Costumo para isso lembrar sempre que posso os ensinamentos de Marx em “Sobre a questão judaica”, quando se refere à religiosidade. Diz Marx: “A miséria religiosa é a expressão da miséria real e ao mesmo tempo o protesto contra a miséria real. A religião é o gemido da criatura oprimida, a alma de um mundo sem coração, assim como o espírito de uma situação sem espírito” E conclui: “Ela é o ópio do povo”. Como amparo é tão ilusória a religião quanto ilusória é a possibilidade de alcançar uma felicidade sem remover tudo que impede a verdadeira libertação de quem é oprimido.
Facó faleceu em 15 de março de 1963, em um momento em que vivíamos tempos de esperança. Já tinha se passado, então, três meses que o presidente João Goulart havia recuperado as suas prerrogativas presidenciais com o plebiscito realizado em janeiro daquele ano, que restaurou o sistema presidencialista. Os periódicos de esquerda, inclusive os comunistas, circulavam livremente, e dois dias antes tinha ocorrido o Comício da Central do Brasil no qual foi lido o decreto de Reforma Agrária e tambem do decreto que encampava as refinarias petrolíferas particulares. Muito embora o clima de tensão não estivesse ausente, parecia a todos nós que o futuro estava chegando, finalmente. A morte de Facó ofuscou o pensamento crítico e libertário brasileiro.
No momento em que se busca resgatar os nomes que pensaram a realidade brasileira e fundamentaram a via da revolução, com base no conhecimento dessa realidade, o nome de Rui Facó não deve ser esquecido. Seja pelo valor de seu trabalho como pensador marxista, ou pela determinação que infelizmente o levou a nos deixar muito cedo, sem que completasse os seus cinquenta nos de idade.
Fica, porém, a certeza de que sua vida relativamente curta foi, no entanto, valiosa pela riqueza de suas contribuições. A releitura de sua obra é uma das inúmeras imposições àqueles que desejam realmente pensar nos processos de transformação de que o Brasil está a precisar. Nascido em Beberibe, Ceará, em 4 de outubro de 1913, sua morte se deu na Cordilheira dos Andes, em 15 de março de 1963.
*Doutor em História Social, conferencista honorário do Real Gabinete Português de Leitura, professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Imagem considerada “oficial” de Rui Facó que circula pela internet.
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
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