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Por uma democracia liberal plena!
RED
Por JOSÉ FORTUNATI*
“Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres” – Rosa Luxemburgo.
Após os lastimáveis acontecimentos ocorridos no dia 08 de janeiro de 2023 quando uma turba enlouquecida invadiu e depredou os prédios do Supremo Tribunal Federal, do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto, se impôs a discussão sobre os parâmetros adequados para o país usufruir do conceito de Estado Democrático de Direito.
A primeira questão a frisar é a de que não estamos falando apenas de um Estado de Direito que se caracteriza por um exercício do poder do Estado limitado por um ordenamento jurídico, muitas vezes sustentado por governos autoritários e despóticos, com leis draconianas e injustas. De forma mais ampla e correta, o conceito de Estado Democrático de Direito é aquele que tem por obrigação garantir os direitos básicos e essenciais para uma vida justa e adequada a todos os cidadãos, independente de cor, religião ou orientação política ou sexual.
Ao sacramentar o Estado Democrático de Direito em nossa Carta Magna, no artigo 1º os constituintes deixaram claro de que o Estado deve estar subordinado ao interesse de todos os cidadãos, e não refém do governante, e, para que se consolide efetivamente, deve respeitar os direitos básicos garantidos na Constituição que em seu artigo 5º, afirma: “todo o cidadão deve ter direito à moradia, acesso à saúde, à educação básica, ao sistema jurídico, às informações pessoais e ao sufrágio universal”.
Dito de forma mais ampla, o que se exige do Estado Democrático de Direito é que ele se caracterize por respeitar os direitos humanos fundamentais, garantir os direitos individuais, coletivos, sociais e políticos e a eleição democrática dos seus governantes. E mais, que imponha limites igualmente estabelecidos na Constituição sobre a atuação do Estado através da proteção jurídica, que previna abusos do Estado em relação aos indivíduos, que tenha uma separação dos poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário, que crie leis com base na soberania popular, que consiga superar as desigualdades sociais e regionais na promoção da justiça social. Comungo com a tese de que para garantir o Estado Democrático de Direito, o adequado formato de governo é a Democracia Liberal, ou Democracia Constitucional, que é a forma de governo na qual o Estado é regido e limitado por um texto constitucional que garanta a existência de pesos e contrapesos (executivo, legislativo e judiciário), amplos direitos políticos e liberdades civis aos cidadãos como a liberdade de associação, liberdade de expressão, liberdade de imprensa, o direito ao voto, a elegibilidade para cargos públicos, as eleições livres e justas, a igualdade perante a lei, respeito pelos direitos humanos e à dignidade da pessoa humana, entre outros.
Cabe aqui um questionamento: no momento em que as democracias liberais estão sendo questionadas em todo o mundo, o Brasil segue os pressupostos acima? Naturalmente temos que considerar que a história brasileira tem períodos de altos e baixos na sua vida política democrática, com estrangulamentos autoritários em várias fases em que o regime ditatorial tentou se consolidar. Infelizmente, o “golpismo” se mantém presente em nosso meio assombrando os nossos corações e mentes.
Apesar disso, é inegável que com muita luta, persistência e resistência, estamos avançando, mesmo que esta caminhada não aconteça com a velocidade esperada pela maioria da população. Infelizmente temos hoje uma grande parcela da população que deixou de acreditar no “sistema” e passou, através de campanhas forjadas pela extrema-direita e bem articuladas fazendo uso de Fake News, a colocar em dúvida o “status quo” vigente e as estruturas de poder existentes. Ninguém em sã consciência pode afirmar que a Democracia Liberal está consolidada no Brasil diante dos dados assustadores que apontam que 59 milhões de brasileiros se encontram abaixo da linha da pobreza (IBGE); que o desempenho dos nossos alunos em matemática, leitura e ciências está entre os piores países do mundo (PISA); as taxas de mortalidade infantil absurdas, de desemprego elevada (felizmente em patamares muito melhores agora) e de criminalidade que não param de crescer , atingindo especialmente as populações que vivem nas periferias das grandes cidades. Que a concentração de renda no topo cresce e os 5% mais ricos já detêm 40% da renda nacional, enquanto os 50% mais pobres detêm apenas 2% (FGV).
Constata-se, indiscutivelmente, que um dos pilares básicos da Democracia Liberal, o pilar social, está corroído e é necessário que o poder público tenha uma atuação mais incisiva para diminuir as injustiças sociais.
O que dizer do “pilar político”, que deve dar sustentação à Democracia Liberal? Com o fim do Regime Militar o país deu um grande salto de qualidade em 1988 ao apresentar um novo texto constitucional, onde os parâmetros de consolidação das normas para o fortalecimento do “pilar político” foram sacramentados. O artigo 14 da Constituição Federal reza que “a soberania popular será exercia pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei mediante I – plebiscito, II – referendo, e III – iniciativa popular”. No campo político, dispomos de um conjunto de artigos na Carta Magna que demonstram que o Brasil deu passos largos à Democracia Liberal - nossa grande referência - criando e consolidando normas muito claras para preservar a liberdade individual perante os representantes do poder político, em especial em face ao Estado. A garantia da liberdade de expressão, de opinião e da vontade política de cada um, a igualdade de direitos políticos e a possibilidade de oportunidade iguais para que o povo e os partidos políticos possam se pronunciar sobre decisões de interesse público, está perfeito, no papel, pois viabiliza um sistema político onde o cidadão tem direito a participação elegendo seus representantes através da denominada democracia representativa.
Aqui começam os problemas da representação da nossa população. Em primeiro lugar temos a destacar que o sistema partidário brasileiro é absolutamente anacrônico e ultrapassado, imperando a proliferação de siglas partidárias, na sua maioria sem qualquer consistência política, filosófica ou ideológica aparecendo para o cidadão como uma verdadeira “sopa de letrinhas”, onde o que predomina é a presença dos indivíduos, e não da concepção política que defendem. A maioria das atuais siglas partidárias, não passa de usurpadores de esperanças criando falsos discursos em que o cidadão não consegue diferenciar propostas e projetos. Não obstante, o Brasil adotou o sistema de “lista aberta” para a escolha dos seus representantes ao Legislativo, o que redunda na valorização individual do candidato deixando de lado as questões programáticas ou filosóficas. Desta forma, o eleitor vota no candidato que é mais conhecido nas redes sociais, o que mais xinga os adversários, o que fala e discursa para o seu público especifico independentemente do teor da matéria ter base legal ou de veracidade, o “influencer” das redes sociais , e conduz esse eleitor a não levar em consideração as propostas que serão posteriormente defendidas no Legislativo.
Uma parte significativa dos partidos hoje existentes, termina por se tornar uma sigla de aluguel aos oportunistas de plantão. O resultado concreto destas escolhas é que o candidato eleito não se sente comprometido com o programa partidário ou com as propostas defendidas no estatuto e no programa partidário, esfacelando completamente a vida partidária nos legislativos.
Uma outra distorção consiste em dar pesos diferenciados para o voto dos cidadãos. É verdade que conquistamos uma universalidade do direito ao voto ao sacramentarmos, como exemplo, o direito do deficiente visual e do analfabeto em votar. No seu artigo 14 a nossa Carta Magna, estabelece: “ a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos”. Mas, ao determinar que os estados federados deveriam ter um mínimo de 8 e um máximo de 70 deputados, os Constituintes de 1988 consolidaram uma enorme distorção no princípio básico da democracia liberal que é “cada cidadão, um voto”. Desta forma o que temos hoje é uma representação distorcida do voto do brasileiro, onde o voto do cidadão acreano vale muitas vezes o voto do paulista, como exemplo. Trata-se de um erro crasso onde se pressupõe que todos os eleitores de um determinado estado têm os mesmos interesses, defendem os mesmos valores éticos e morais e que as decisões que irão atingir o trabalhador do Acre serão diferentes das que interessam ao trabalhador de São Paulo. A proposição não considera o interesse de cada cidadão de acordo com a sua situação social, política e religiosa. A norma parte de pressuposto de que o interesse de todos os cidadãos de um estado são iguais pensando e agindo de forma unificada. É importante lembrar que o tratamento equânime entre os estados federados está garantido na escolha dos três senadores. Neste caso, cada unidade federativa, seja o pequenino Acre ou o todo poderoso estado de São Paulo, terá a mesma representação no Senado da República.
Com o passar do tempo esses interesses particulares e pessoais terminaram impondo uma série de normas e ações que têm tornado a disputa eleitoral cada vez mais desigual e antidemocrática, especialmente em relação à Câmara dos Deputados. O pressuposto de uma Democracia Liberal é que todos tenham idênticas condições de disputar um pleito eleitoral. Mas, o Congresso Nacional tem operado para consolidar os mandatos dos atuais deputados através da criação de verbas pesadas de gabinetes, a existência de 25 assessores em cada gabinete, onde apenas uma meia dúzia está voltada para o trabalho parlamentar e os demais estão nas “bases” dos deputados trabalhando para preparar a reeleição dos seus chefes. O que falar então das “emendas impositivas”, uma verdadeira excrescência do Estado Democrático de Direito, que desarmoniza todo o processo eleitoral com farta distribuição de recursos, sem qualquer critério, tendo um enorme impacto eleitoral especialmente em cidades de pequeno e médio porte. Neste quesito é importante destacar o papel pró-ativo do Ministro Flávio Dino (STF) que decidiu, de forma corajosa e republicana, enfrentar o Congresso Nacional numa clara tentativa de tornar transparente o uso do dinheiro público.
A própria distribuição dos recursos do Fundo Eleitoral, dinheiro público, é realizada de acordo com a vontade do presidente do partido onde são agraciados, na maior parte das vezes, os candidatos mais próximos da direção partidária, servindo inclusive para punir possíveis desafetos. E sobre isso, posso afirmar que já fui vítima desta emboscada.
Em relação à escolha dos nossos parlamentares, o atual sistema cada vez mais reforça a reeleição dos atuais mandatários ou termina favorecendo os que possuem maior número de seguidores nas redes, mesmo que não possuam um trabalho concreto ou não saibam exatamente o que irão fazer junto ao Poder Legislativo.
Para demonstrar que o processo está eivado de distorções também na escolha dos nossos representantes para o Executivo, cito o exemplo da disputa para o Governo dos entes federados. Se o atual mandatário, por exemplo, ocupante da cadeira de Governador optar por concorrer à reeleição, ele não precisa se desincompatibilizar, ou seja, não precisa se afastar do cargo e mantém o uso, de forma direta, do prestígio do cargo, da estrutura e da “máquina pública” a seu favor. Em contrapartida, se um prefeito de uma pequena cidade do interior resolver enfrentar o ocupante do cargo de Governador, ele terá que se desincompatibilizar, ou seja, renunciar ao cargo de prefeito no mínimo seis meses antes da data das eleições e enfrentar o difícil e quase impossível páreo. Coisas do casuísmo eleitoral brasileiro.
O grande sonho utópico de Rosa Luxemburgo , “um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres” encontra-se ainda distante da nossa realidade. Mas não é jogando a toalha que vamos virar o jogo. A luta democrática urge envolver todos os atores num só espaço, trazendo os movimentos sociais, as entidades de classe, os partidos políticos em torno de uma grande Frente Ampla e que crie as condições concretas para elegermos fortes e representativas bancadas nos legislativos, governantes progressistas e defensores da democracia nos executivos da federação, dos estados e dos municípios. Relembrando um não distante passado de nossa história política, conseguimos avançar. Sim, tivemos vários recuos. Mas é preciso resgatar a utopia e olhar para o futuro com a confiança de que a Democracia Liberal é o caminho correto para a consolidação de um Estado Democrático de Direito, que realmente permita a construção de uma sociedade mais justa e que possibilite igualdade de condições para que as pessoas possam viver melhor e mais felizes. Esse é o verdadeiro sentido da vida.
*José Fortunati, foi Prefeito de Porto Alegre (2 mandatos), Deputado Federal e Secretário de Estado da Educação do RS
Foto da capa: Adriana Loureiro/Reuters
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