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Lula, o Banco Central e o financismo

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Lula, o Banco Central e o financismo
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Por PAULO KLIASS* O final de 2024 tem apresentado alguns sinais que parecem ter provocado alguma preocupação para o Presidente Lula. O primeiro deles, sem dúvida alguma, refere-se ao susto que ele, seus familiares e amigos mais próximos, bem como toda a sociedade brasileira, tomamos com o anúncio da necessidade de uma cirurgia emergencial no crânio. Felizmente tudo se passou muito bem e ele já está retomando, aos poucos, as atividades políticas normalmente. Um segundo bloco de problemas para o governo encontra-se na combinação das votações no Congresso Nacional do pacote de maldades preparado por Haddad. O conjunto foi encaminhado em nome do governo e comprometia de forma bastante dura os interesses da base política e eleitoral de Lula: os miseráveis e os mais pobres da nossa pirâmide da desigualdade. A obsessão que o Ministro da Fazenda mantém desde o início do terceiro mandato com a falácia da austeridade fiscal tem levado o governo a criar armadilhas sucessivas para si mesmo. Assim foi a elaboração e a votação do Novo Arcabouço Fiscal (NAF) ainda em 2023, contrariando as promessas feitas por Lula durante a campanha eleitoral de apenas revogar o famigerado Teto de Gastos de Temer. Em seguida veio a meta, tão equivocada quanto irrealizável, de zerar o déficit fiscal primário em 2024 e 2025. Os economistas progressistas alertávamos que isso significaria, como se confirmou na sequência, um arrocho expressivo nas despesas orçamentárias nas rubricas sociais e nos investimentos. Um verdadeiro tiro no pé do próprio governo. Logo depois, veio a recusa incompreensível do Ministro da Fazenda em rever a meta de inflação, o que poderia contribuir para tornar a política monetária mais atenuada. Haddad não apenas se manteve contra tal flexibilização necessária, como ainda rebaixou a meta de crescimento dos preços de 3,25% para 3% e a estendeu para mais de um ano. Uma loucura!   Austeridade aos poucos e com violência Por outro lado, ao longo do período, diversos dirigentes dos Ministérios da Fazenda e do Planejamento começaram a plantar notícias alarmistas de que seriam necessárias medidas de redução estrutural dos gastos. E apresentavam propostas de eliminar os pisos constitucionais de saúde e educação, além de sugerir a desvinculação dos benefícios previdenciários em relação ao salário-mínimo. Ou seja, proposições tão extremadas que nem mesmo os governos da direita haviam ousado encaminhar anteriormente. Pois chegou um instante que Haddad e Tebet se sentiram à vontade para avançar duas casas no tabuleiro. E passaram assumir publicamente a defesa de tais medidas. Os agentes do financismo se empolgaram com o cenário, afinal dois dos principais ocupantes de pastas na Esplanada haviam saído em defesa dos interesses mais genuínos da banca privada. Ocorre que Lula percebeu o risco político de tal atitude. E, ao que tudo indica, colocou um freio no movimento de desindexar e desvincular, tal como propunham freneticamente Henrique Meirelles e Paulo Guedes durante os governos Temer e Bolsonaro. No fim das contas, o pacote das maldades não contemplava as medidas de ajuste estruturais nas despesas. Assim o pessoal da Faria Lima iniciou uma escalada especulativa no câmbio. Apostando na incapacidade de reação do governo em um final de ano complicado, resolveram que o dólar deveria ultrapassar o patamar simbólico dos R$ 6,00. Era um movimento com três objetivos: i) realizar muitos ganhos com a articulação nos mercados financeiros em que se opera com dólar; ii) desgastar politicamente o governo Lula com essa suposta instabilidade; e, iii) pressionar Executivo e Legislativo a manterem as propostas de cortes estruturais nas despesas. Ao fim e ao cabo, o pacote acabou sendo aprovado de forma um pouco mais desidratada, graças à impopularidade de boa parte das medidas. Mas o governo acabou tendo que assumir a paternidade de proposições que vão contra a sua própria base política e eleitoral. Além disso, o xadrez no Parlamento ficou ainda mais complicado, uma vez que as forças de direita e extrema direita aproveitaram o momento para, de forma ultra demagógica, saírem em defesa dos muito pobres e dos miseráveis. De toda forma, as ações do Banco Central (BC) para conter a escalda especulativa forma muito tímidas. O governo torrou mais de 20 bilhões de dólares para tentar atenuar os efeitos desse movimento dos conglomerados financeiros, mas desde 28 de novembro que a cotação do dólar se mantém acima do patamar de R$ 6,00.   Os chacais do financismo querem carne e sangue A principal razão para tanto é a avaliação e a aposta por parte do povo das finanças de que o governo não levaria essa estratégia de se contrapor à ação especulativa até o final. Afinal, as declarações do futuro Presidente do BC era de que tudo funcionava “normalmente” no mercado de câmbio (sic). Galípolo é uma pessoa de origem no próprio mercado financeiro e apresenta muito mais identidade com o pensamento desse pessoal do que em relação ao que se imaginava ser base de uma política econômica de um governo presidido pelo Partido dos Trabalhadores. Mas o Presidente Lula decidiu por realizar uma aparição nas redes que termina por acrescentar ainda mais confusão a um quadro por si só já bastante nublado. Ele convoca seus principais ministros para se sentarem ao seu lado em uma gravação: ali estavam Rui Costa (Ministro Chefe da Casa Civil), Fernando Haddad (Ministro da Fazenda) e Simone Tebet (Ministra do Planejamento e Orçamento). Apesar deste alto escalão presente no momento, nenhum deles é chamado a se pronunciar. Ao que tudo indica, foram chamados para fazer número e densidade para um quarto personagem, o mais importante no evento: o futuro Presidente do BC, Gabriel Galípolo. Ora, a coreografia do poder da Esplanada e dos corredores de Brasília oferece indicadores muito precisos a respeito de tal cena, certamente armada com muita preparação e intenções subjacentes. A importância atribuída ao futuro comandante da política monetária e cambial foi indubitável. Lula fez questão de frisar, em uma breve fala que pouco passou de 2 minutos:   (...) “E eu quero te dizer que você será, certamente, o mais importante presidente do Banco Central que esse país já teve, porque você vai ser o presidente com mais autonomia que o Banco Central já teve” (...) [GN]   Lula fez questão de sublinhar sua concordância com o excesso de autonomia do BC e antecipa seu apoio a um dirigente da instituição que já deixou claro que não vai alterar em quase nada os pontos fundamentais da gestão daquele a quem vai substituir. Ele votou com a chamada “bancada lulista” em todas as reuniões do COPOM de acordo com a orientação de Roberto Campos Neto. E já temos encomendadas duas novas elevações da SELIC em um ponto percentual para as duas próximas reuniões do colegiado no começo de 2025. Não contente com tal rendição ao desejo voraz dos chacais da Faria Lima, Lula ainda reforçou seu compromisso com a manutenção da política de austeridade fiscal.   (...) “Tomamos as medidas necessárias para proteger a nova regra fiscal e seguiremos atentos à necessidade de novas medidas. O Brasil é guiado por instituições fortes e independentes que trabalhem em harmonia para avançar com responsabilidade” (...) [GN]   Falta menos de 2 anos para 2026 O Presidente da República sabe melhor do que ninguém que faltam menos de dois anos para a realização das eleições de outubro de 2026. Caso ele esteja com energia e vontade para atender aos desejos da maioria da população, Lula precisa oferecer ao País uma trajetória viável de retomada do desenvolvimento econômico, social e ambiental. Mas isso significa a necessidade de romper com o novo teto de gastos ou pelo menos de atenuar os efeitos restritivos do NAF. A austeridade implícita na engenhoca que lhe foi sugerida por Haddad - e virou a Lei Complementar nº 200/23 - não lhe permite fazer o que prometia à época da campanha: i) fazer e mais melhor do que fez nos dois primeiros mandatos; ii) realizar 40 anos em 4. Além disso, adotar como seu o discurso e a postura passiva diante do comportamento dos chacais da Faria Lima só faz adiar os próximos episódios de disputa especulativa contra seu governo. Na verdade, a leitura desses últimos dois anos nos revela que o governo cedeu em quase tudo à pauta da banca privada e mesmo assim o pessoal ainda quer mais e mais carne e sangue. Por qual razão haveria uma mudança de postura por parte deles? Enfim, Lula precisa se decidir de forma urgente de qual lado ele vai ficar. Se reforçando os interesses e os desejos da maioria da população que ainda o apoia, principalmente os setores que recebem até dois salários-mínimos mensais. Ou se vai seguir atendendo a todas as sugestões de Haddad e Galípolo e com isso manter a Faria Lima recebendo todas as benesses de seu governo. O fato inegável é que não há mais espaço para realizar a política do ganha-ganha que caracterizou o período 2003/2010. Lula vai ter de realizar opções que implicam em algum desconforto para os grupos do topo da nossa pirâmide da desigualdade de hoje até o final de seu terceiro mandato.     *Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal. Foto de capa: Marcelo Camargo/Agência Brasil Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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Collares foi um injustiçado

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Collares foi um injustiçado
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Por CARLOS BASTOS* Aos 97 anos, Alceu de Deus Collares embarcou em nova vida. Ele acreditava que as pessoas reencarnam. Foi o primeiro negro a governar o Rio Grande do Sul. E como foi bonita sua trajetória aqui na Terra! Filho de um casal de trabalhadores rurais, começou sua vida vendendo frutas nas ruas de Bagé, sua cidade natal. Enfrentou muitas dificuldades para estudar. Mais tarde, com muito esforço, conseguiu ingressar nos quadros dos Correios e Telégrafos. Já maduro, fez o curso de Direito. E já tinha se apaixonado pela política. Elegeu-se duas vezes vereador em Porto Alegre pelo MDB e fracassou na primeira tentativa de se eleger deputado federal. Depois teve cinco mandatos na Câmara Federal, sempre entre os mais votados. Quando do regresso de Brizola do exílio, ele ingressou no PDT. Embora comungassem as mesmas ideias, eles tiveram suas divergências. Depois, Collares se elegeu prefeito de Porto Alegre. Convergiram quando ambos lançaram a candidatura do falecido deputado Carrion Junior a prefeito da capital contra o desejo do partido, que defendia Araújo. Suas divergências eram pontuais. Cito uma das tantas histórias, envolvendo os dois. Quando Brizola era governador do Rio, em seu segundo mandato, e Collares comandava o Palácio Piratini, Collares liga para Brizola e diz que no dia seguinte estaria no Rio. Brizola fica muito faceiro e fala que podem colocar as conversas em dia. Daí Collares o informa que vai participar de um almoço com Roberto Marinho, na Rede Globo. O tom da conversa muda. Brizola pergunta se Collares o estava comunicando ou consultando. Collares replica que um governava o Rio Grande do Sul e o outro o Rio de Janeiro e que ele o estava comunicando. Brizola se limita a dizer: “Está comunicado”. E desliga o telefone com força. Retornando à personalidade de Collares, registro que, quando era governador, ele era muito disciplinado. Acordava às 5 horas da madrugada e dedicava uma hora para a leitura dos jornais de Porto Alegre e do centro do país. Depois dedicava outra hora para ler livros sobre política e economia. Às 8 horas em ponto, ele ingressava no seu gabinete todos os dias. Collares foi muito injustiçado. Ele poderia ter se afastado do governo e concorrido ao Senado e se elegeria, mas criaram a CPI da Propina, que não provou nada e impediu que ele disputasse o Senado. Seu governo implantou 100 CIEPS no Estado. Recuperou milhares de escolas e criou os Coredes (Conselhos Regionais de Desenvolvimento). Missão cumprida, grande Alceu de Deus Collares. *Carlos Bastos é jornalista Foto: Ex-governador do Rio Grande do Sul, ex-Prefeito de Porto Alegre e ex-deputado Alceu Collares (PDT). Foto: Divulgação Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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É o melhor Natal desde 2013, mas não parece

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É o melhor Natal desde 2013, mas não parece
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Por VINICIUS TORRES FREIRE*, na Folha de São Paulo Pesquisas indicam mal-estar, economia não explica pessimismo, que cresce A leitora diria que o clima no país está bom? É pergunta vaga, que suscita respostas impressionistas. Mas é apenas de um jogo, um exercício mental. Desconsidere, por ora, avaliação mais objetiva sobre condições materiais de vida ou sobre o estado da política, por exemplo. Como parece o humor de seus concidadãos? Vivemos o "melhor Natal" desde 2013. A expressão vai entre aspas porque costuma apenas descrever balanços de vendas do comércio ou de indicadores como salário médio ou renda per capita. As pessoas podem estar insatisfeitas com sua situação econômica ainda que tenham melhorado de vida. Podem ter insatisfações gerais mesmo que reconheçam melhoras na economia. Em 2023, a renda (PIB) per capita voltou ao pico anterior, de 2013. Em 2024, será a maior desde sempre. O salário médio será o maior. O nível de pobreza será o mínimo. O consumo médio por pessoa será pelo menos igual ao do recorde de 2013. A desigualdade não mudou a ponto de alterar o peso desses números, se mudou. A avaliação do presidente Lula está em nível medíocre (35% de "ótimo/bom", 34% de "ruim/péssimo"), segundo o Datafolha de dezembro. Em relação aos últimos seis meses, a economia está pior para 40% (eram 29% em setembro de 2023), segundo pesquisa Ipec de dezembro. Nos próximos seis meses, vai melhorar para 39% (ante 51% em setembro de 2023). Deixamos para trás uma década de depressão. O problema é que saímos faz pouco tempo do buraco e talvez não exista segurança de que a melhora persista? A maioria da população não está informada quanto a previsões macroeconômicas ou pacote fiscal. Não vem daí o mau humor. Uma década ruim deixou traumas? Tivemos Junho de 2013, decepção pós-eleição de 2014, Lava Jato, impeachment, Grande Recessão de 2014-16, prisão de Lula, estagnação de 2017-19, Covid, a grande miséria de 2021 (quando o povo sem emprego foi largado na fome por Jair Bolsonaro). A confiança do consumidor medida pela FGV (Fundação Getulio Vargas) jamais se recuperou da crise que começou em 2014. É um indicador de avaliação de situação e expectativa quanto à economia, à condição financeira da família etc. Confiança abaixo de 100 significa que há mais avaliações negativas do que positivas. O índice não passa de 100 desde dezembro de 2013. Excluindo o período da epidemia, foi ao fundo do poço em setembro de 2015 (64,5). Subiu à casa de 95 em setembro de 2023 e em novembro de 2024. Em dezembro, ficou em 92. Considere-se um indicador aproximado de otimismo com o país, de uma pesquisa do centro Pew (EUA). Em 2010, 53% dos brasileiros achavam que o Brasil "um dia será" "uma das nações mais poderosas do mundo"; "nunca será": 20%. Em 2017, os números eram respectivamente 31% e 48%. Neste 2024, 38% e 34%, ainda longe de 2010. A satisfação com o "funcionamento da democracia" sob Dilma 1 era de 66%; em 2024, de 44%. Há "polarização", política, cultural, religiosa. Para quem votou em Bolsonaro em 2022, o país está no "caminho errado" para 82%, segundo pesquisa Ipec; no "caminho certo" para 13%. Para os eleitores de Lula, 23% e 72%, respectivamente. Década e meia de expansão de redes sociais e a disseminação do ódio e da desrazão não ajudam. O temor de golpe, autoritarismo e violência política, assim como os mitos do risco de comunismo e de opressão "identitária", pioram o clima. Ainda assim, o mal-estar é intrigante. *Vinicius Torres Freire é articulista da Folha de São Paulo Este texto foi publicado originalmente na Folha de São Paulo, na edição do dia 25/12/2025 Foto da capa:  Ruas e praças de Boa Vista (RO) são decoradas para o Natal - Pinterest Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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AO COLLARES, COM CARINHO!

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AO COLLARES, COM CARINHO!
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Por JOSÉ FORTUNATI* Em nome do professor Benedito Tadeu César e de todos os colaboradores da RED – Rede de Estação Democracia desejo prestar uma homenagem ao amigo, grande homem público e que marcou profundamente a política gaúcha nos últimos 50 anos: Alceu de Deus Collares, o nosso primeiro Governador negro eleito na história do Rio Grande do Sul. De Bagé veio para Porto Alegre para cursar a Faculdade de Direito da UFRGS. Foi Vereador, Deputado Federal por vários mandatos, onde defendia medidas duras contra a ditadura militar e uma maior distribuição de renda. Em 1986, Collares foi eleito Prefeito de Porto Alegre, quando rompeu um convênio com o Governo do Estado em relação às escolas públicas. Até a posse de Collares a combinação entre a Prefeitura e o Governo do Estado era a de que o município colocava à disposição os terrenos e o Estado construía e ficava responsável pela gestão da escola. A partir do seu Governo, Porto Alegre começou a montar o seu próprio sistema de ensino. Também foi responsável pela criação dos Conselhos Populares dos bairros, um embrião do futuro OP _ Orçamento Participativo. Na condição de Governador, investiu fortemente na área da educação com a construção de CIEPs – Centros Integrados de Educação Pública e tentou adotar o “calendário rotativo”, motivo de grande desgaste popular. Criou os Conselhos Regionais de Desenvolvimento (COREDES), como forma de descentralizar e democratizar a administração do Estado. O resumo acima é apenas para caracterizar a preocupação de Collares com a Democracia, com a Participação Popular, e, especialmente com a área da educação. Conheci pessoalmente e comecei a conviver social e politicamente com o Collares no final da década de 1970 quando eu participava do Sindicato dos Bancários e, ele, Deputado Federal. Passamos a ter um maior contato em 1986 quando assume a Prefeitura de Porto Alegre e passa a dialogar com os bairros populares. A relação com ele se aprofunda a partir da minha filiação ao PDT, em 2001. Passamos a conviver intensamente quer na Executiva Estadual do partido ou nos processos eleitorais seguintes. Aprendi, desde então, a conhecer e a respeitar ainda mais o Collares, um dos oradores mais empolgantes que encontrei em minha vida pública, com um estilo muito próprio, brandido com um vozeirão característico, com gestos largos e esparsados, entremeando o discurso com poesias gauchescas e, especialmente o poema O Voto e o Pão, sempre pedindo para a plateia repetir em voz alta o estribilho “O voto é a tua única arma, põe o teu voto na mão”. Era um democrata e fazia questão de cumprir a vontade decidida pela maioria. Em 2008 o então Prefeito José Fogaça convida o PDT para compor a chapa para a sua reeleição, apontando para o meu nome como candidato a Viceprefeito. Imediatamente, o Collares me procurou afirmando não ser nada pessoal, mas ele entendia que o PDT deveria ter uma candidatura própria para a Prefeitura. A executiva municipal do PDT decidiu ouvir os filiados. Apesar de todo o empenho do ex-Governador, a tese que defendia que deveríamos aceitar o convite do Fogaça foi vitoriosa. Collares não hesitou e imediatamente me comunicou que passaria a fazer campanha para a nossa dobradinha. Postura de um grande democrata. Sabemos que no nosso Estado a questão racial é estrutural, existindo manifestações que nos deixam tristes e revoltados. Acompanhando o Collares, especialmente na sua candidatura ao Governo no Estado, no ano de 2006, percebi que as reações negativas iniciais, por ser negro, eram rapidamente modificadas após as preleções do Collares. Ele lidava muito bem com a questão do preconceito. Me lembro que estávamos visitando o comércio de uma cidade do interior quando um sujeito, em tom provocativo, gritou da calçada: “vai pra casa negrão”. O Collares saiu rapidamente da loja em direção ao sujeito e ficamos temendo pelo pior. Se aproximou de cara fechada e falou em alto e bom tom: “exijo respeito. Negrão, não. Doutor Negrão”. Esta postura sempre desarmava os espíritos maus e uma agressão era rapidamente driblada pelo ex-Governador. Durante o período em que estive no PDT convivendo intensamente com o ex-Governador, Leonel Brizola, percebi que somente o Collares, nas discussões internas do PDT, ousava ter uma postura de enfrentamento com o comandante, procurando fazer valer a sua posição. Em 2002 fui escolhido, numa convenção histórica do PDT, como candidato ao Governo do Estado. Durante a campanha, quando o embate maior era entre o Tarso e o Brito, em que eu e o Rigotto aparecíamos muito distantes dos dois, o Brizola convoca a Executiva Estadual do PDT para uma reunião de emergência no Rio de Janeiro. Nos deslocamos para o Rio e no próprio Aeroporto do Galeão realizamos o nosso encontro. Como era habitual o Brizola fez uma longa exposição da disputa eleitoral nacional, momento em que a candidatura do Ciro Gomes se encontrava num crescendo, apoiado também pelo PDT. Ao final o Presidente Nacional faz uma das suas famosas pausas e “pondera” que não deveríamos ter uma candidatura própria, mas alicerçarmos o nosso apoio a candidatura de Antônio Brito, então no PPS, mesmo partido de Ciro Gomes. Ao término da fala de Brizola, pedi a palavra e afirmei: “Se o senhor entende que este é o melhor caminho, estou retirando a minha candidatura”. Antes que eu terminasse a frase o Collares bradou: “não desiste, não”, “não desiste não” repetiu olhando firmemente para o Brizola. O Comandante simplesmente fez que não ouviu o Collares e afirmou: “então está decidido. Vamos apoiar o Brito” dando por encerrada a questão. O Collares se levantou e foi conversar duramente com o Brizola. Mas, em poucos minutos tudo estava em paz. São alguns dos tantos exemplos que poderia citar para demonstrar a grandeza desta figura que se tornou emblemática no RS. “Um vendedor de laranja, que se tornou Governador” costumava ele lembrar. Um grande defensor do Estado Democrático do Direito, lutador das causas sociais, um apaixonado pela área da educação, um orador cativante como poucos, um grande homem público, um guerreiro que sempre lutou pelas boas causas. Espero que Deus (o velho lá de cima, como dizia o Collares) o acolha na sua plenitude e dê conforto a amiga Neuza Canabarro, os filhos Antônio e Adriana, e a Celina, sua enteada. Collares já faz falta entre nós. * José Fortunati – Foi Deputado Federal, Secretário de Estado da Educação RS, por dois mandatos, Deputado Federal e por dois mandatos Prefeito de Porto Alegre. Foto: Alceu Collares (foto: André Ávila/CP Memória)  

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De A a Z, um resumo do ano político de 2024

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De A a Z, um resumo do ano político de 2024
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Por RUDOLFO LAGO* do Correio da Manhã Brasília O ano de 2024 ficou marcado por uma disputa tão intensa entre os três poderes da República que ela fez aflorar mesmo o sentimento do ódio. O Supremo Tribunal Federal (STF) foi alvo de um atentado a bomba no dia 13 de novembro. O autor da tentativa, Francisco Wanderley Luiz, um catarinense conhecido como Tio França, que tentou se eleger vereador na cidade de Rio do Sul, acabou sendo a única vítima. Ele se explodiu com a bomba que pretendia jogar. O gesto de ódio é o extremo da complicada relação entre os poderes. Ódio em parte motivado pelo avanço das investigações que apontam para uma tentativa de golpe por parte de integrantes do governo anterior, do ex-presidente Jair Bolsonaro. Apuração que provoca a reação de apoiadores, que julgam que o Judiciário extrapola de suas funções. Relação complicada que chega também ao Legislativo. Ao longo do ano, o STF, especialmente o ministro Flávio Dino, tentou barrar a liberação de emendas parlamentares ao orçamento que carecem de transparência e chances de rastreabilidade. O Congresso, por sua vez, desafia as ordens do Supremo. E sobra para o Executivo. A cada votação de interesse, mais e mais emendas precisam ser liberadas. Ao longo do ano, foram mais de R$ 50 bilhões de recursos orçamentários liberados. Um recorde absoluto. O Correio da Manhã preparou um abecedário que resume os princípios fatos políticos do ano. De A a Z, veja abaixo o que aconteceu na política brasileira: Arthur Lira O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), foi o grande nome do embate entre os poderes. Líder do Centrão, dono da chave do cofre das emendas orçamentárias que o STF contesta, ele comandou o processo legislativo. Quando precisou reagir a bloqueios e outras insatisfações, travou a pauta de votação. Quando viu os cofres orçamentários serem abertos, deu andamento às votações. Lira termina o ano como alvo do inquérito que Flávio Dino mandou abrir para investigação a liberação de emendas. Em fevereiro, deixará de ser presidente da Câmara. Mas deverá continuar exercendo liderança sobre os deputados. Braga Netto e Bolsonaro O candidato a vice-presidente a chapa de Jair Bolsonaro, derrotada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2022, é o primeiro general de quatro estrelas preso por uma determinação da justiça comum. A prisão de Braga Netto aperto o cerco da investigação contra Bolsonaro e os acusados de terem tramado um golpe de Estado contra o país. Ele é apontado como o principal líder do movimento, que teria, inclusive, tramado o assassinado do presidente Lula, de seu vice, Geraldo Alckmin, e do ministro do STF Alexandre de Moraes. Teria ainda entregue dinheiro aos chamados “kids pretos”, militares de elite envolvidos no golpe. A letra B terá dois nomes. Se Braga Netto é o principal alvo agora, muito provavelmente o ex-presidente Jair Bolsonaro será o grande alvo das investigações no ano de 2025. Campos Neto Não foram poucas as vezes durante o ano que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva destilou seu ódio contra o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Indicado ainda por Bolsonaro, Campos Neto, que é neto de um dos ícones do pensamento de direita, o ex-senador e economista Roberto Campos, é o principal nome por trás da política monetária do Banco Central que, durante o ano, elevou fortemente as taxas de juros, para manter a inflação sob controle. Campos Neto deixa o banco no dia 1º de janeiro. Será substituído por Gabriel Galípolo, que Lula indicou. A pergunta é: Galípolo conseguirá manter juros mais baixos? Dólar No dia em que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou o pacote de corte de gastos, o dólar ultrapassou a casa dos R$ 6. Foi a reação o mercado ao anúncio, considerado tímido, incapaz, talvez, de conseguir fazer todos os cortes necessários. No curso das negociações, chegou a bater R$ 6,30. Voltou depois a patamares mais baixos, mas encerra o ano sem descer desse patamar de seis. Para muitos, a reação do mercado é desproporcional, uma vez que o país vem crescendo e há outros indicadores positivos da economia. Economia É famosa a frase de James Carville, que foi assessor do ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton: “É a economia, estúpído!”. A ideia em torno da frase é que é a economia que resume todos os humores da sociedade. Se a economia vai bem, o governo vai bem. Quando vai mal, o governo vai mal. As incertezas em torno dela, com indicadores positivos, como o crescimento, e negativos, como a inflação, marcaram 2024. Fernando Haddad O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, segue sendo o nome mais importante do governo. Haddad já foi mais popular no mercado e no Congresso. Mas recente pesquisa do Instituto Quaest aponta que somente ele, além de Lula, poderia vencer todos os adversários testados numa eventual eleição presidencial. Se Lula segue sendo o nome para 2026, Haddad fortalece-se como eventual alternativa. Mesmo com todos os desafios na economia. Geraldo Alckmin O vice-presidente vem fazendo o perfil discreto, como se espera de um vice-presidente. Mas, no comando do Ministério da Indústria e Comércio, segue sendo o nome preferido de industriais e empresários no governo. Seu partido, o PSB, foi o que teve a melhor performance na eleição municipal no campo da esquerda. É uma sombra. Talvez por isso Lula tenha resolvido não passar a Presidência para ele enquanto convalescia da cirurgia a que se submeteu como consequência de uma queda no banheiro do Palácio da Alvorada. Hacker Walter Delgatti, o hacker de Piracicaba, tornou-se réu, juntamente com a deputada Carla Zambelli (PL-SP), por invadir arquivos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A deputada contratou o hacker para tentar provar que o sistema do Judiciário era frágil. Ele invadiu e falsificou documentos. Ele e a deputada acabaram descobertos. IVA O Imposto sobre Valor Agregado (IVA) é a chave da mudança com a reforma tributária. Integra o Brasil ao modelo hoje mais usado no momento. O novo imposto sobre o consumo é cobrado no destino, ao final da cadeira, apenas uma vez. No caso brasileiro, a reforma prevê que virá de forma dual. Os estados e municípios cobrarão o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). A União, a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Juros No dia 11 de dezembro, o Comite de Política Monetária (Copom) do Banco Central fixou a taxa de juros em 12,25%. É uma das mais altas do mundo. O Copom justifica a taxa como necessária para conter a inflação, uma vez que o dólar ultrapassou a casa dos R$ 6 e impacta nos preços. Lula e a esquerda, no entanto, rejeitam e criticam fortemente tal política. Kassab O presidente do PSD, Gilberto Kassab, foi o grande vitorioso das eleições municipais deste ano. O PSD foi o partido que elegeu o maior número de prefeitos no país. Kassab consegue oscilar entre o governo e a oposição. Ao mesmo tempo que tem três ministros com Lula, é hoje o secretário de Governo de São Paulo, administrado por um dos principais nomes da oposição, Tarcísio de Freitas (Republicanos). Será um dos principais fieis da balança na eleição em 2026. Lula Chegando ao final da primeira metade do seu mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva personifica a divisão do país. Recente pesquisa do Instituto Datafolha revela que 35% dos brasileiros aprovam seu mandato, considerando a sua gestão boa ou ótima. E 34% rejeitam, conferindo à gestão ruim ou péssimo. Ou seja, dois anos depois das eleições de 2022, o sentimento polarizado do país quanto a Lula permanece. Mercado A entidade invisível que integra bancos e outras instituições financeiras, concentrada especialmente na Avenida Faria Lima, em São Paulo, tornou-se o alvo de todas as insatisfações do governo, especialmente da sua parcela mais à esquerda. Eles atribuem ao mercado uma visão negativa demais da economia brasileira, que hoje estaria atrapalhando o crescimento do país e o aumento da popularidade do governo. Novas regras As novas regras tributárias serão implementadas de maneira escalonada. E mesmo parte da reforma dos impostos de consumo ainda precisa ser aprovada pelo Congresso. Mas a expectativa é que o novo desenho tributário já comece a impactar positivamente a economia em 2025. Orçamento O controle do orçamento da União foi o grande embate político do ano. O governo perdeu para o Congresso grande parte da sua capacidade de destinação. Em contrapartida, as emendas foram liberadas com pouca transparência, originando diversos escândalos e sendo o cerne do embate entre os poderes. Ao longo de 2024, foram liberados mais de R$ 50 bilhões em emendas parlamentares ao orçamento. Pecado Além dos dois impostos que, a partir de 2033, comporão o IVA brasileiro, a reforma tributária estabeleceu também o Imposto Seletivo. Também conhecido como “Imposto do Pecado”. Para alguns produtos que causam mal à saúde e ao meio ambiente, será cobrada uma alíquota de imposto mais alta. Quórum Obter o quórum necessário nas votações de interesse foi o grande desafio do governo. Arthur Lira jogou na cara do governo que a sua base fiel hoje representaria no máximo 12% dos deputados. Para obter o restante, Lula precisa negociar. Com o Centrão. À custa de muita liberação orçamentária. Reforma tributária Ainda que na prática só venha a entrar integralmente em vigor em 2033, a reforma tributária é o grande legado do Congresso no ano que termina. Ainda que complexa e longe do que seria ideal, a reforma simplificará o sistema de cobrança de impostos sobre o consumo. Senado Se o governo Lula teve embates mais duros na Câmara durante o ano, a relação com o Senado, sob a condução do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), foi mais suave. É uma situação que talvez se inverta em 2025. O próximo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), é tido como mais suava que seu antecessor, Arthur Lira (PP-AL). Em contrapartida, o sucessor de Pacheco, Davi Alcolumbre (União-AP), é considerado mais duro. Tio França No dia 13 de novembro, o empresário catarinense Francisco Wanderley Luiz explodiu-se em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF). Conhecido como Tio França, Wanderley fora candidato a vereador em sua cidade, Rio do Sul, pelo PL. Tio França teve traumatismo encefálico quando a bomba que segurava, e levava para junto da estátua da Justiça na Praça dos Três Poderes, explodiu. Também explodiram artefatos dentro de um carro que ele estacionou próximo ao STF. União Eis uma palavra ausente em 2024. A Constituição estabelece que os poderes da República precisam ser independentes e harmônicos entre si. Muitos reclamam que um poder interferiu sobre os outros, reduzindo a independência dos demais, especialmente o Judiciário. E harmonia foi tudo o que não se viu. Violência Num ano em que um atentado a bomba ocorreu em frente ao STF, infelizmente, a violência política continuou sendo uma triste marca para o país. Xandão Ao mesmo tempo relator do inquérito e uma das vítimas da tentativa de golpe de Estado, Alexandre de Moraes, que seus detratores apelidaram de Xandão, é o centro tanto dos amores quanto dos ódios movidos ao Supremo Tribunal Federal. Ele personifica o delicado momento político do país e a complicada relação entre os poderes. Zambelli Embora o general Walter Braga Netto seja o nome mais visível entre os implicados pela Justiça em 2024 pelos atos antidemocráticos, o ano também não foi bom para a deputada Carla Zambelli. Ela tornou-se ré por porte ilegal de arma, no episódio em que correu na rua contra um militante petista de arma em punho. Ela ainda responde pela contratação do hacker que invadiu arquivos do Judiciário.     *Rudolfo Lago é jornalista do Correio da Manhã / Brasília, foi editor do site Congresso em Foco e é diretor da Consultoria Imagem e Credibilidade Publicado originalmente publicado no Correio da Manhã Foto de capa: Alexandre de Moraes personificou os sentimentos da sociedade quanto ao STF |  Lula Marques/ Agência Brasil Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

Internacional

As cicatrizes do Apartheid na África do Sul 30 anos depois do fim do regime

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As cicatrizes do Apartheid na África do Sul 30 anos depois do fim do regime
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Por FLÁVIO AGUIAR*, de Berlim Há exatos 30 anos o regime do Apartheid chegou ao fim na África do Sul. Os principais personagens deste final pacífico para um dos regimes mais odiosos de segregação racial da história humana foram o líder do Congresso Nacional Africano (CNA), o negro Nelson Mandela, e o líder do Partido Nacional da África do Sul (PN), o branco Frederik William De Klerk. Em 1994, na primeira eleição realmente universal e democrática no país, Mandela foi eleito presidente, cargo que ocupou até 1999. O regime do Apartheid foi oficialmente instituído na África do Sul a partir de 1948, quando o Partido Nacional, liderado por Daniel Malan, venceu as eleições comprometendo-se a manter a supremacia política, econômica e cultural da minoria branca, constituída sobretudo pelos então chamados de Boers, descendentes dos colonos holandeses, hoje chamados de Afrikaaners. O regime segregacionista voltado contra a maioria negra tinha antecedentes longínquos, promovidos pelo colonialismo europeu dos portugueses, da Companhia das Índias Orientais e do Império Britânico, que dominou a maior parte da região até quase o começo da Primeira Guerra Mundial. Entretanto, o regime de discriminação racial instituído a partir de 1948 e conhecido com o nome de Apartheid chegou a um requinte cruel raramente vistos na história humana, “aperfeiçoando” as segregações anteriores. O principal arquiteto do regime teria sido Hendrik Verwoerd, que veio a ser primeiro-ministro sul-africano entre 1958 e 1966. Um exemplo do “aperfeiçoamento” do sistema de discriminação foi no chamado “Ato de Imoralidade”, de 1927, que proibia o casamento entre pessoas brancas e negras. O “Ato de Proibição de Casamentos Mistos”, de 1949, proibiu o casamento de pessoas brancas com pessoas de qualquer outra etnia. “Anonimato humano” O Apartheid reconhecia a existência de quatro “raças” no país: os brancos, os asiáticos, inicialmente chamados de indianos, os “coloured”, que no Brasil o IBGE chamaria de “pardos”, e os negros. Curiosamente, os documentos de identidade de brancos, asiáticos e “coloured” registravam a etnia de seu proprietário. Já os documentos dos negros não traziam nenhuma definição, os condenando a uma espécie de anonimato humano. A legislação do Apartheid era vasta e abrangente, e sua violação era considerada um crime contra o Estado, ou lesa-pátria, com punições extremamente severas. Estabelecia a segregação racial em todas as dimensões da vida, da intimidade sexual aos locais de trabalho. Abrangia a licença para o estabelecimento de residência, os locais de trabalho, os serviços públicos, o transporte, a educação, a saúde, o lazer e tudo o mais que a vida pudesse compreender. Apesar da forte resistência interna e internacional, os governos do Apartheid estiveram longe de permanecerem isolados. Devido à Guerra Fria, contaram com fortes apoios entre políticos conservadores, como Ronald Reagan nos Estados Unidos, Margareth Thatcher na Inglaterra, no sistema bancário e financeiro internacional, na indústria de armamentos e nos serviços de inteligência policial de diversos países em todos os continentes, inclusive africanos. O regime sul-africano se tornou um defensor dos remanescentes do colonialismo europeu na África e um apoiador de políticos de direita nos países que declaravam sua independência.   Nelson Mandela Preso em 5 de agosto de 1962, Nelson Mandela tornou-se o principal líder e símbolo da resistência contra o regime, sendo condenado por alta traição algum tempo depois. Passou por algumas prisões durante os mais de 27 anos que ficou no cárcere. Mandela era submetido a um regime duríssimo. Podia escrever apenas duas cartas por ano, cada uma com no máximo 500 palavras, relidas sistematicamente pela censura antes de serem enviadas. Frederik William De Klerk, presidente do país entre 1989 e 1994, foi o político branco que chegou à conclusão de que os dias do Apartheid estavam contados, e se dispôs a apressar o seu fim antes que fosse tarde demais para uma solução negociada. Entre outras providências, apressou a libertação de Mandela, o que aconteceu no começo de fevereiro de 1990. Quatro anos depois, Mandela saia de sua casa no bairro de Soweto, em Johannesburgo, direto e triunfalmente para o Palácio Presidencial.   País mais desigual do mundo Se a legislação do Apartheid foi varrida do mapa há 30 anos e hoje o regime é considerado um crime contra a humanidade, as suas cicatrizes estão longe de desaparecer. Um relatório do Banco Mundial de 2022 deu à África do Sul a incômoda posição de ser o país mais desigual do mundo. Por exemplo, os traços remanescentes da divisão de bairros residenciais por etnias são claramente visíveis, além de outros. Organizações não governamentais e agências do governo reconhecem a existência de racismo e de diferenças graves de oportunidades, emprego e serviços em prejuízo da população negra, que perfaz mais de 80% dos 62 milhões de habitantes do país, sendo que quem têm mais de 30 anos conheceu a vida sob o Apartheid. Entretanto, apesar das dificuldades, o sentimento que se percebe no tratamento cotidiano com quase todas as pessoas é de alegria e de um otimismo comedido. Claro: viver sob Apartheid devia ser algo tão horrível que qualquer outra forma de vida é bem-vinda.     *Flávio Aguiar é jornalista, analista político e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo). Foto de capa: Catadores de lixo da comunidade de Phumlamqashi, em Vlakfontein, perto de Johannesburg, na África do Sul. AP - Themba Hadebe Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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