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Opinião

Qual é o teu privilégio?

Qual é o teu privilégio?

Artigo por RED
16/12/2023 05:30 • Atualizado em 18/12/2023 09:21
Qual é o teu privilégio?

De CARLOS ÁGUEDO PAIVA*

  • O Universal e o Peculiar: Economia X Antropologia?

As profissões são como cachimbos. Os últimos, moldam a boca. As profissões são mais perigosas, pois moldam o pensamento. Dialetizar é lutar contra os moldes do pensamento profissional, é acrescentar aquela perspectiva que não se oferece facilmente, é sair do piloto automático e definir o rumo da aeronave “no braço”. 

A Economia molda um padrão de olhar e pensar que tende a se tornar vicioso. A nossa perspectiva é daquele que vê a floresta sem atentar para as árvores; nós tendemos a apagar as diferenças. No limite, para o economista tout court (que Marx chamava de “vulgar”), todas as sociedades são iguais, povoadas por homens econômicos racionais que buscam minimizar os custos associados ao uso de recursos escassos (força de trabalho, recursos naturais, maquinário, etc.) e maximizar os benefícios gerados (bens de consumo, lazer, riqueza, etc.). O economista tout court é o cientista social mais monocórdico, chato e insosso que já passou pelo planeta Terra. Sua música predileta é o Samba de uma nota só.

Na ampla gama das Ciências Sociais, o antípoda do economista é o antropólogo. Não é gratuito que as críticas mais contundentes e certeiras à pretensa universalidade do “Homem Econômico Racional” tenham vindo de grandes antropólogos, como Bronislaw Malinowski, Marcel Mauss e Marshall Sahlins. Mas, de outro lado, a ênfase do antropólogo no particular, no peculiar, na árvore (em detrimento da floresta) pode alimentar o vício oposto àquele que caracteriza os economistas: a subestimação do universal e do material. Este é o risco que se corre quando se admite (corretamente!) que todo o processo social – inclusive a produção e a distribuição de bens materiais – realiza-se dentro dos marcos de uma cultura, de um sistema de valores, de um sistema ético, de um sistema simbólico. Isto é inquestionável. O problema é pretender (o que muitos fazem) que os sistemas culturais e simbólicos são absolutamente contingentes, vale dizer, não comportam qualquer universalidade: cada sociedade é única e constrói seu sistema de valores de forma similar à produção de imagens num caleidoscópio: não há lógica ou necessidade; é acaso e beleza. O antropólogo “caleidoscópico” é o contrário idêntico do economista tout court: não dialoga com as outras Ciências Sociais: o cachimbo profissional deformou sua capacidade de dialetizar a percepção do mundo.

Felizmente, uma parcela expressiva de economistas e antropólogos dialetizam suas visões. Para Mauss, o princípio da reciprocidade tem valor universal e é a base comunal de toda e qualquer sociedade. Para Levi-Strauss, a proibição do incesto cumpre papel equivalente. E a sólida formação marxista de Sahlins o compromete com uma revalorização das dimensões da produção da vida material em suas análises. O mesmo ocorre na Economia. Toda a Economia Política Clássica, assim como a Economia Marxista, o Estruturalismo Cepalino e as mais diversas correntes heterodoxas contemporâneas – de Keynes aos Institucionalistas Históricos – sabem, entendem e defendem que há muito mais que o geral e que, na prática, o que realmente importa é o particular: é ele que define a sintonia fina de qualquer política econômica. Não há receita de bolo universal. Pois os próprios ingredientes são distintos. 

Todo o grande cientista social – independentemente de sua especialização relativa: sociólogo, cientista político, historiador, economista, geógrafo, linguista, semiólogo, psicólogo, antropólogo – opera no campo da dialética entre o universal e o particular. E suas contribuições são tão maiores quanto mais amplo for o escopo desta dialetização. Vale a dica: sempre que um autor disser que A (artigo definido SINGULAR) DIFERENÇA não está, nem aqui (no patrimonialismo), nem lá (na sociedade estamental), nem acolá (no tal homem cordial), A DIFERENÇA está exclusivamente aqui (o escravismo e racismo)”, ele é vítima de “dialetização curta”. Se alguém pensou em Jessé de Souza, acertou. Como prêmio, ganhou uma passagem só de ida para a Rocinha e um bombom Sonho de Valsa.

A verdade é que a particularidade é absolutamente universal. Pois o sistema social é um sistema de vasos comunicantes. Não pode haver uma única particularidade. Nunca. Se ela está em um único lugar, ela está em todos. Pois o fato do todo ser maior do que a soma das partes, não o torna independente de cada uma dessas partes. Muito antes pelo contrário. 

  • O Brasil

O mundo contemporâneo é muito único. Nunca dantes na História do Planeta Terra foi possível construir sistemas de informação e pesquisa que tivessem por abrangência o conjunto das nações (no sentido mais amplo do termo) da Terra. Mas, hoje, estas pesquisas abundam e são facilmente acessáveis pela internet. Uma delas é particularmente interessante: o World Value Survey (WVS). Esta pesquisa busca identificar os elementos universais e os elementos peculiares da avaliação feita por amostras significativas de cidadãos dos distintos países do globo acerca dos valores éticos e do comportamento declarado: 1) do próprio entrevistado; 2) dos demais cidadãos, 3) dos gestores públicos. Como não poderia deixar de ser, o Brasil virou um queizi de sucesso no WVS. A maior peculiaridade “brazuca” é a enorme diferença que os entrevistados imputam à sua própria moralidade e à moralidade de todos os demais. 

Um quesito em particular chamou a atenção de analistas internacionais. Ele é composto de duas perguntas. A primeira é: “Se você acha uma carteira esquecida no ônibus, trem ou metrô com muito dinheiro dentro, você ficaria com os valores para si ou procuraria encontrar o legítimo dono e devolvê-la?”. Praticamente todos os brasileiros respondem que a devolveriam. A segunda pergunta é: “Você acredita que, se uma outra pessoa a encontrasse, ela procuraria devolver a carteira ou se apropriaria do conteúdo?”. Praticamente todos os respondentes afirmam que o “outro” ficaria com o conteúdo. 

A particularidade “brazuca” não se encontra propriamente no fato de que os respondentes avaliem a si próprios como pessoas mais éticas do que os demais. A particularidade encontra-se na enorme distância entre o “eu” e os “demais”. Em todos os países emerge a mesma diferença: eu sou melhor que os outros. Mas, como regra geral, esta diferença é discreta. No Japão, por exemplo, a imensa maioria afirma que devolveria a carteira. Mas, igualmente bem, a grande maioria acredita que os demais fariam o mesmo. Em países africanos marcados por grande pobreza e desigualdade social, a maior parte dos respondentes afirma que os demais não a devolveriam. Mas, parcela não desprezível dos respondentes também reconhecem que ficariam com o dinheiro encontrado. 

No Brasil é diferente. Todos os entrevistados são éticos. E todos sabem que ninguém mais é.  

Esta (nada) sutil peculiaridade da percepção dos brasileiros sobre si e sobre os demais é, para mim, aquilo que Mauss chama de “fato social total”: revela o que somos em essência, pois se comunica com todas as dimensões da vida coletiva. Senão vejamos. 

 Tomemos a primeira resposta. É evidente que muitos dos respondentes que afirmam que devolveriam a carteira estão mentindo e sabem disso. Por que o fazem? Para que se entenda essa pergunta, é preciso contrastar com as respostas dadas em países com distribuição de renda tão perversa quanto a brasileira. Por que nesses países a disposição dos entrevistados para reconhecer que seriam capazes de cometer um ato “indecoroso” é maior do que no Brasil? O que está por trás desse temor à verdade? 

Vale esclarecer que os entrevistadores do WVS não perguntam o nome do entrevistado e não vão ao domicílio dos mesmos: as entrevistas são feitas na rua. O único critério é a estratificação por idade, sexo, etnia, religião e renda. Além disso, os entrevistadores informam que trabalham para uma organização internacional e que nada do que for informado será repassado a qualquer autoridade do país.

Não obstante, os entrevistados no Brasil agem e respondem como se fossem suspeitos de um crime e estivessem dando seu depoimento numa delegacia de polícia após ouvirem a frase: tudo o que você disser pode ser usado contra você. Será que isso diz algo sobre o nosso padrão peculiar de estratificação social e política? Será que isso está associado ao fato de que, para a patuleia (vale dizer, aquela parcela da população para a qual os R$ 400,00 que estavam na carteira encontrada faz uma ENORME diferença no orçamento DO MÊS), tudo o que “vem de cima” (seja a Polícia, seja o Fiscal, seja o Pesquisador da Universidade) tem a cara do “Grande Irmão”? Não importa se o “Grande Irmão” é o Estado, o Coronel, ou o Promotor, o Juiz, ou o Professor Universitário. Ele é, por definição, do outro time. Do time que joga contra mim. Melhor, não me revelar. 

Mas isto é só a ponta do iceberg. O elemento que me parece mais interessante no padrão praticamente universal da resposta brazuca à primeira questão é que muitos dos respondentes, de fato, pretendem estar dizendo a verdade. Para ir no ponto: quantas pessoas você conhece neste país abençoado por Deus e bonito por natureza que reconhecem que fizeram “alguma malandragem” para vencer na vida? … Se você conhece pelo menos uma pessoa que te confidenciou não ser um “santo”, você é um grande privilegiado. 

Eu confesso: sou um grande privilegiado. Meu avô me contou em detalhes como veio a enriquecer. Contei sua história aqui. Mas nem por isso eu consegui aceitar com facilidade o fato de que seu enriquecimento “malandro” fizesse parte da minha história pessoal de “sucesso”. O fato de seu filho (meu pai) ter estudado nos melhores colégios do Estado, de ter uma cultura invejável e ter me ensinado tudo o que sei de literatura, até pouco tempo atrás, na minha cabeça, não tinha qualquer relação com o que “EU” fiz da minha vida. O fato dele haver se casado com minha mãe, que se doutorou em Filosofia da Educação e que é uma das pessoas mais inteligentes que eu conheço, não tinha nada a ver com as malandragens do meu avô. O fato de eu ter estudado nos melhores colégios do Rio Grande do Sul e nas melhores Universidades do país tampouco tinha qualquer relação com as “malandragens” de vovô. Até bem pouco tempo atrás, eu me via como qualquer outro brasileiro: UM MERITOCRATA. 

Demorou para cair a ficha. Não, eu não sou um meritocrata. Sou um privilegiado. Não basta ler Hegel, Marx e Lênin. Psicanálise é básico para saber quem você realmente é. 

Analisemos agora a  resposta à segunda pergunta: todos, exceto eu, são corruptos e roubariam o dinheiro encontrado na carteira abandonada. O reconhecimento de que o padrão de comportamento de (virtualmente) todos os demais é exatamente o oposto ao meu é, antes de mais nada, o reconhecimento de que eu estou mentindo. Sempre que alguém afirma que “todos os políticos são corruptos” o que está sendo dito – nas entrelinhas – é: Como não prevaricar quando tanto dinheiro passa por suas mãos? Qualquer pessoa “normal” roubaria! Não é preciso enunciar a terceira frase. O silêncio fala por si (e dá-lhe Freud!). E o que ela (não) diz? …. Se eu estivesse ali, faria o mesmo! É aqui que se encontra a verdadeira confissão. Eu só não faço o mesmo, porque não estou em condições de fazer. Se estivesse lá, faria. 

A importância dessa confissão não pode ser subestimada. Ela explica muito da nossa História. Sempre que “é preciso” derrubar um governo “incômodo” a alegação é a mesma: o Governo é corrupto. Foi assim com Vargas, foi assim Jango, foi assim com Lula, foi assim com Dilma. O primeiro, se suicidou. O segundo, foi exilado. Lula teve que ser preso e mantido incomunicável para não “atrapalhar” a eleição de Bolsonaro. Dilma, a pessoa mais proba e mais intolerante com qualquer forma de corrupção que já geriu este país, sofreu impeachment por pretensas “pedaladas fiscais”. Seja lá o que for isso. 

Sabemos todos a quem e aos quais estes golpes serviram. Mas, do meu ponto de vista, nem todos entendem adequadamente porque o PRINCÍPIO fundante de todos os golpes é a acusação de corrupção.  A questão não é tanto por que a acusação é sempre essa. Isto é óbvio.  Um governo corrupto não pode e não deve ser mantido.  A questão de fundo é por que essa acusação sempre “cola” na massa? …. A resposta, do meu ponto de vista, é relativamente simples: porque a patuleia vê o Estado brasileiro como cronicamente, intrinsicamente e estruturalmente corrupto. Ou, para colocar a questão em termos faorianos e anti-jesséticos: a patuleia não vê o Estado Brasileiro como um Estado Burguês moderno, mas o percebe como um ESTADO PATRIMONIALISTA. 

O que exatamente quer dizer isso? Quer dizer que o patrimônio público – vale dizer: os recursos orçamentários anuais, as empresas estatais, as terras devolutas, os ativos imobiliários e demais ativos fixos do Estado – são mobilizados com vistas a atender os interesses COMUNS da alta burocracia e daquela parcela da grande burguesia que se beneficia e é conivente com a apropriação privatista dos recursos públicos. Captou a mensagem? Ainda não? Vamos tentar desenhar!

Patrimonialista é o Estado onde o poder responsável por garantir a Constituição e os Códigos Legais – o Judiciário – opera contra as mesmas, atribuindo a seus membros remunerações muito superiores ao limite legal, que corresponde ao salário do Presidente da República. Patrimonialista é o Estado que – a despeito de formalmente moderno e burguês – não opera apenas como agente da acumulação do capital e da mediação dos conflitos de classe, mas opera, também, como agente de apropriação e distribuição de recursos públicos em prol da alta burocracia e da elite política. Patrimonialista é o Estado que não diferencia ou hierarquiza os membros da sociedade civil apenas por seu patrimônio e, por extensão, por sua função na sociedade capitalista: 

  1. o lumpesinato, desapropriados de tudo, até mesmo da condição de trabalhadores; 
  2. o operariado, responsável pela produção dos bens de consumo essenciais e da mais-valia;
  3. a classe média, que se apresenta e é apresentada como “o cidadão comum” e opera como o sustentáculo ideológico do sistema;
  4. a burguesia em geral, que se apropria da maior parcela do excedente social e define, em última instância, as políticas públicas de “desenvolvimento nacional” (vale dizer, as políticas em prol da sustentação, preservação e acumulação dos grandes grupos privados nacionais).

 No Estado Patrimonialista – à diferença do Estado Burguês Padrão – os maiores empresários do país (tais como Marcelo Odebrecht, Wesley Batista, Leo Pinheiro ou André Esteves) podem ser presos “preventivamente”. Podem até ficar anos na prisão sem julgamento e terem suas empresas destruídas. Por quê? Por que “se juntaram com gente que não presta”. Porque receberam apoio de governos que têm que ser derrubados Pois não seguem as velhas e consolidadas regras de distribuição do “butim” social. Capice?  

Patrimonialista é o Estado em que o Orçamento Público só é aprovado se cada Deputado (federal ou estadual) e cada Senador se apropriar de parcela expressiva do mesmo, destinando-as a emendas que beneficiam seus currais eleitorais e, não raramente, a amigos e – porque não? – familiares. Patrimonialista é o Estado em que os funcionários públicos em geral auferem valores salariais muito superiores aos funcionários do sistema privado e contam com inúmeras vantagens em sistemas de assistência social, de saúde e de aposentadoria. Patrimonialista é o Estado que garante pensão vitalícia às filhas “solteiras” dos membros das Forças Armadas. Além, é claro, de churrasco, viagra e prótese peniana para o oficialato; esteja ou não em “atividade”. 

  • Nenhum “direito” a menos 

Os resultados peculiares do World Value Survey no Brasil são objeto regular das minhas aulas. E, eventualmente, trago o tema à baila em conversas com amigos. Nas primeiras vezes que contei o “causo” fiquei um tanto surpreso com o retorno. Como regra geral, todos acham muito interessante a forma como OS OUTROS, A MAIORIA DA POPULAÇÃO, OS PRIVILEGIADOS E/OU A PATULEIA PENSA. 

Nunca vi ninguém dizer: poxa, é exatamente assim que eu penso. 

E isto a despeito de que, do meu ponto de vista, tanto os meus alunos, quanto os meus amigos fazem parte daquele estrato da população que mais reproduz a fala do “brasileiro médio”. Qual seja? A classe média alta brasileira. 

O que eu chamo de classe média alta? Aquela parcela que sempre teve empregada doméstica, casa ampla e carro particular. Praticamente todos os meus amigos se encontram neste estrato social. Em alguns casos, seus pais eram mais “aquinhoados” que os meus. Em outros casos, eram um pouco menos. Mas todos estudaram nas melhores escolas, concluíram cursos universitários e a maior parte se “mestrou” e “doutorou” ou se tornou profissional liberal com banca de advocacia ou consultório médico particular. Tal como eu, a grande maioria fala mais de uma língua, já visitou diversos outros países ou, eventualmente, morou por algum tempo no exterior. Pergunta que não quer calar? Qual é a percentagem da população brasileira que se encontra neste estrato social? 

Não há como responder de forma absolutamente rigorosa à pergunta acima. A começar pelo fato de que, na verdade, são muitos os quesitos. Vou deixar para um outro texto a demonstração rigorosa do que vou afirmar aqui. Peço confiança: este estrato corresponde a aproximadamente 5% da população brasileira. Uma minoria, sem dúvida. Não obstante – assim como eu pensava, antes de algumas décadas de análise –, a maior parte dos meus amigos que se encontram neste estrato social não se percebe como “privilegiado”; mas como “meritocrata”. 

Uma grande e querida amiga, desde os tempos do ensino fundamental, militou no PT durante anos a fio. Mas se afastou do Partido juntamente com Heloisa Helena em função da mini reforma da previdência pública votada no primeiro mandato do Presidente Lula. Essencialmente, a reforma impunha uma taxação às pensões, definia uma idade mínima para a aposentadoria e um teto máximo para os rendimentos dos aposentados. 

Numa das tantas conversas que tive com ela sobre questões políticas ela expressou seu ponto de vista da seguinte forma: Nós do PSOL não aceitamos retroceder; não aceitamos negociar direitos que foram conquistados pelo movimento dos trabalhadores. Perguntei, então, se ela tinha alguma ideia de quando havia sido instituída a aposentadoria integral para funcionários públicos no Brasil, e qual fora a luta social que garantira esta vitória extraordinária em um país tão conservador e reticente em conceder vantagens aos trabalhadores. Para a minha não surpresa, a querida amiga reconheceu não ter essas informações. E o leitor? Tem alguma ideia?

A aposentadoria integral para funcionários públicos com nível superior foi instituída no Império. Poder-se-ia dizer que foi uma grande conquista “do movimento escravista-imperial”. Mas este direito avança e é universalizado na Constituição Republicana, em 1891, por pressão do Exército. Este último era um dos principais canais de ascensão social e ingresso no funcionalismo público da baixa classe média; e, usualmente, seus quadros não tinham nível superior. O que os impossibilitava de auferir aquela que era uma das maiores vantagens conquistada pela elite da burocracia imperial. 

Sem dúvida, foi mais uma conquista do “movimento”. Mas não do movimento dos trabalhadores. Foi apenas o preço cobrado pelo Exército para dar o golpe que beneficiaria à burguesia cafeeira paulista: expandir o número de privilegiados, incorporando todo o funcionalismo e deixando de fora a arraia miúda. É o Brasil sendo Brasil. 

Eu fiz o Mestrado e o Doutorado na mesma instituição: a Unicamp. O curso de Mestrado é quase um absurdo: são dois anos inteiros de créditos, com aulas três vezes por semana e uma bibliografia que ninguém dá conta de cumprir mesmo se não dormisse uma única hora do dia. O Doutorado compensa. Se você já fez o Mestrado lá, então você já sabe o básico: os créditos podem ser cumpridos em um único ano. Os três anos restantes são para a produção da Tese. Fui para o Doutorado com minha esposa, à época, que também obtivera o seu Mestrado em Campinas. Durante quatro anos, recebíamos os nossos salários integralmente, mais a bolsa Capes que, à época, correspondia a pouco mais da metade do salário do Professor Assistente. E aproveitamos os três anos sem créditos para conhecer o mundo. 

Por onde passávamos, visitávamos Universidades. De um lado, para conhecer o debate teórico. De outro, em busca de um possível pós-Doutorado. Ao conversarmos com os professores dessas instituições, cedo ou tarde emergia a pergunta se estávamos em férias. E a resposta negativa surpreendia a todos. Nunca encontramos um único docente de qualquer Universidade do mundo que tivesse se deparado com estas condições: quatro anos sem dar aula, três anos sem créditos a cumprir, salário integral, mais bolsas que conformavam um terceiro salário para o casal. Perguntavam então se – com tantas vantagens – nossos objetos de tese eram de interesse nacional. Outra surpresa: não, é uma definição absolutamente privada. Perguntavam, então, se teríamos que ressarcir o Estado caso não defendêssemos a Tese ou se fôssemos reprovados. Mais surpresa: não! Não devemos nada. Por fim a pergunta fatídica: vocês têm filhos? Sim; temos três filhos. Com quem eles estão? Com a empregada e a babá. 

Você tem algum privilégio? Não? Pois então. Nem eu. Sou meritocrata. 

Uma amiga minha revolta-se, dia sim, dia também, com os privilégios do Judiciário. Ela é professora de Universidade Federal, tal como eu mesmo fui durante anos. Uma das vantagens que mais a incomoda é o fato dos juízes terem dois meses de férias. Um dia perguntei qual o período de férias dos professores de Universidades Federais. Pois não sabia se tinha havido qualquer mudança desde minha saída. Ela respondeu que continuava sendo de 45 dias (um mês e meio). Perguntei, então, se ela usufruía de todo este período. Ela respondeu que não. Que vendia os 15 dias a mais. Perguntei, então, se ela voltava para a Universidade ao findar os 30 dias aos quais fazia jus. Respondeu-me que não faria qualquer sentido voltar, pois não havia ninguém no Campus. …Logo, ela vende 15 dias, mas aufere 45. ….. Outra meritocrata. 

Uma das maiores conquistas do movimento docente (e universitário, em geral) durante os anos da Ditadura foi impedir que os governantes não-eleitos cerceassem a liberdade de pesquisa científica com base em pretensos critérios de “qualidade”. O temor – absolutamente legítimo – é que os critérios impostos pelos gestores dos recursos para a pesquisa acadêmica envolvessem elementos ideológicos e práticas de censura incompatíveis com a liberdade científica e a autonomia universitária. O problema é que não se podia liberar verbas sem qualquer critério. A solução encontrada foi medir a produção por “quantidade”. Quanto menor o tempo de defesa de uma dissertação de Mestrado ou Tese de Doutorado, maior a pontuação. Quanto maior o número de artigos publicados maior a pontuação. 

Ora, não precisa ser economista para entender que há um trade-off entre quantidade e qualidade. Se o prazo é exíguo, entregar no prazo envolve entregar um produto “semipronto”. E, por vezes, nem isso. Publicar muito envolve se submeter aos padrões de avaliação senso comum. Se você escrever um artigo afirmando (como o fiz no texto publicado na RED há 30 dias atrás) que nunca, nenhum imbecil na história da humanidade, confundiu ou pretendeu identificar “crescimento” com “desenvolvimento”, muito provavelmente o seu artigo será recusado. No texto anterior publicado na RED eu argumentava o óbvio: qualquer pai e mãe de uma criança com deficiência cognitiva é capaz de perceber que o crescimento de seu filho e o desenvolvimento de seu filho são elementos distintos. Não é preciso ser um Platão, um Aristóteles, um Confúcio ou um Buda para saber dessa obviedade desde sempre. Não obstante, se você afirmar isso, muito provavelmente seu texto será vetado. Pois está fora dos padrões. Parafraseando Umberto Eco em sua fala sobre a internet, o quantitativismo na academia brasileira, deu poder de veto aos idiotas. Pior: impôs a idiotização de todos. Pois se alguém tentar ser muito original, não publica. E quem não publica, não ganha bolsa produtividade. Pior: pode até ser mandado embora do Pós-Graduação. Pois não está contribuindo com a nota Capes! 

Nestas horas, não consigo deixar de pensar em John Nash e Piero Sraffa. Ambos, publicaram apenas três textos ao longo da vida. O primeiro, ganhou o prêmio Nobel de Economia. O segundo, é um dos cinco economistas que ganharam o direito de ter seus livros publicados na coleção Os Pensadores, da Abril Cultural (ao lado de Smith, Ricardo, Marx, Keynes, Kalecki e Robinson). Se eles morassem no Brasil, seriam expulsos dos programas de Pós-Graduação. …. Eles pensavam demais antes de escrever. Cada texto, era uma revolução teórica. Mas quem está preocupado com revoluções? A Capes não está. Nem as Universidades. 

Conheço uma figura que tem mais de 50 artigos publicados em revistas nacionais e estrangeiras. Aproximadamente a metade são “releituras” de sua dissertação de Mestrado. A outra metade são “releituras” da Tese de Doutorado. Muitas vezes, os “novos” artigos são meras traduções de textos já publicados em outra língua. Mas o título sempre muda. Para não dar na vista. Este não é um privilegiado. É um legítimo meritocrata. Tem o mérito de ser um auto plagiário dissimulado. Não foi fácil chegar onde chegou. Gastou uma fortuna com óleo de peroba para lustrar a cara de pau. 

  • Em síntese

 Em um texto publicado na RED há quinze dias atrás, fiz a crítica do que venho chamando de o “Novo Socialismo Utópico” ou, alternativamente, de “Socialismo Utópico Ambientalista”. O aporte crítico envolveu um grande número de determinações:  aponto diversas inconsistências no novo utopismo. Mas há uma crítica que é absolutamente central: a pretensão de que “mudar o sistema produtivo é uma questão de vontade: basta mudar a cultura”. 

No artigo anterior eu fui obrigado a apelar para um argumento de autoridade, do tipo: de Hegel a Lia Abu-Lughod, passando por Marx, Boas, Durkheim, Mauss, Ruth Benedict, Levi-Strauss e Marshall Sahlins, toda a sociologia e antropologia moderna é taxativa em defender e demonstrar que a cultura de um povo é extremamente resiliente e essencialmente inconsciente. A pretensão de que a solução para qualquer problema de ordem social seja “tão simples como fazer uma mudança de cultura” revela profunda ignorância acerca da resiliência dos traços culturais que caracterizam e, em última instância, definem um povo, uma nação. Revela, também, a ignorância acerca dos elementos essencialmente inconscientes da impregnação cultural. 

Mas, no caso do Brasil, esta pretensão revela algo mais.

Um dos principais traços culturais “brazucas” é a dissociação da avaliação que eu faço de mim e dos outros. Eu (e os meus) sou(mos) puro(s). Mas todos os demais são corruptos. 

Ora, mas se é assim, então é preciso reconhecer que adotar a “pureza” é uma questão de vontade. Eu tive a força de vontade necessária para me transformar e consegui fazer de mim uma pessoa de bem. Eu sou um meritocrata. Eu não usufruo de qualquer privilégio. E se eu consegui – o que, evidentemente, é inquestionável – qualquer um pode conseguir. Desde que realmente queira. … O pior é saber que há quem realmente acredite nisso. 

Abri este texto com uma epígrafe de Gregório de Matos Guerra. A conclusão mais que do que pede, exige um outro poeta. Um Pessoa que é muito mais que um Fernando em Linha Reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita
Indesculpavelmente sujo

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, absurdo
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante
Que tenho sofrido enxovalhos e calado
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda

Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar
Eu, que quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Pra fora da possibilidade do soco
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia
Não, são todos o ideal, se os oiço e me falam
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil
Ó príncipes, meus irmãos

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado
Poderão ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza
Argh! Estou farto de semideuses
Argh! Onde é que há gente? Onde é que há gente no mundo?

Chico estava repleto de razão. Nós todos trazemos no peito lusitano uma boa dosagem de lirismo. E não só. 


*Doutor em economia e professor do mestrado em desenvolvimento da Faccat (Faculdades Integradas de Taquara).

Imagem em Pixabay.

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