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Opinião

Para a crítica radical do (bom) senso comum

Para a crítica radical do (bom) senso comum

Artigo por RED
18/11/2023 05:30 • Atualizado em 20/11/2023 09:17
Para a crítica radical do (bom) senso comum

De CARLOS ÁGUEDO PAIVA*

Se você disser que eu desafino, amor

Saiba que isso, em mim, não provoca qualquer dor

João Gilberto, apud Carlos Paiva, o surdo 

Meu principal objetivo foi entender porque razões o 

Ocidente apresenta tamanha fixação em demonizar 

e negar qualquer racionalidade ao Islã.

Alastair Crooke: A essência da Revolução Islâmica

  • Introdução: uma questão de princípios

Eu sou um sujeito de poucos “princípios invioláveis”. Dos dez mandamentos, o único que me parece “próximo do inviolável” é: não darás falso testemunho. Veremos aqui que, provavelmente, este é o mandamento menos respeitado dentre os dez. Todos os demais, para mim, são relativos. Se um louco assassino invade a minha casa e ataca meus filhos, na ausência de outra alternativa menos radical, mato-o sem nenhum pesar. Se meus filhos estiverem morrendo de fome e eu, desempregado, não puder alimentá-los, vou furtar, sim, se sua sobrevivência depender disso. E nem se fale em não cobiçar a mulher (ou o homem) do(a) próximo(a). Pecado é pretender – nos dias que correm – que alguém pertence a alguém. Todos têm o direito de estar e ficar com quem bem entender. Mas ninguém tem o direito de se apropriar do outro. 

Não obstante, tenho algumas “aversões fortes”. Não são bem princípios. Estão mais para “ojeriza instintiva”. Uma das coisas que eu mais odeio é a vaziez pretenciosa; aquela que caracteriza o maior personagem de Eça de Queiroz: o Conselheiro Acácio. E ela está em todas as partes. Do meu ponto de vista (e apesar de todas as suas contribuições geniais à Filosofia), São Tomás de Aquino é o maior responsável pela queda do mundo intelectual no pecado da mediocridade. A pretensão tomista de que “a virtude está no meio” é absolutamente vazia de conteúdo. Pois o meio é uma construção definida pelos “extremos eleitos”. Como diz Reinaldo de Azevedo, a imprensa brasileira construiu o “extremismo de centro” criando dois opostos ao seu prazer. O raciocínio é simples, claro e distinto como uma construção cartesiana: a virtude não está, nem o comunismo do PT, nem no fascismo do Bolsonaro. Ela se encontra em figuras probas, finas, educadas e de centro, como FHC, Aécio Neves, Gilberto Kassab, Eduardo Leite, Romeu Zema e João Dória. A virtude está no pensamento “muderrrrno” que reconhece a importância do “merrrcadu”. … Não é fofo?

Mas não só de “meios-termos convenientes” vive o acacianismo. Também há o uso e abuso da tautologia como prova de inteligência. Por exemplo: “a inovação é a base do desenvolvimento”. Dez entre dez consultores do SEBRAE estão de acordo com esta tese. E nem poderia ser diferente. O que é inovar? É “mudar para melhor”. E o que é desenvolver? É realizar várias mudanças para melhor. Logo, mudar para melhor é a base de mudar para melhor. Não é “Jenial”? Sem sombra de “duvidamente”.

Também tenho particular “ojeriza instintiva” àquelas construções que conquistam a plateia pela pretensão de que o óbvio ululante é uma novidade que apenas uns poucos iluminados entenderam recentemente. Ainda que, casualmente, qualquer ouvinte, por mais imbecil que seja, a entende perfeitamente. Exemplo: “até pouco tempo atrás, os cientistas sociais e os gestores políticos confundiam crescimento com desenvolvimento. Hoje, sabemos que isto não é verdade. O crescimento é puramente econômico, enquanto o desenvolvimento é um processo total, envolvendo as dimensões política, cultural, social e existencial”. Argh; sic; cof; buá! Citem-me, por todos os deuses e deusas (atuais e antigos), um único imbecil que tenha defendido a tese absurda, abcega e abmuda de que “crescimento e desenvolvimento” eram idênticos. Desde a idade da pedra que qualquer pai e mãe, por mais ignorantes e simplórios que fossem, eram capazes de diferenciar o crescimento (em altura e peso) de seus filhos e o desenvolvimento (moral e intelectual) de seus filhos. Crescimento é aumento da massa. Desenvolvimento é a condição para a autonomia e a soberania. Isto sempre foi transevidente. Porque não é reconhecido? Porque é “de bom tom” pretender que essa obviedade seja uma descoberta do mundo muderrrrnu. Uma descoberta que o jenial professor revelou para seus alunos; que prontamente entenderam por serem tão jeniais quanto ele próprio.  E saem todos felizes da aula. Aí vem o Paiva e trata de estragar a alegria. É ou não é um chato de galochas? … Sim, sou.

Todo este introito (para variar, longo) tem um único objetivo: explicar porque eu vivo, hoje, uma ojeriza instintiva contra o discurso da “esquerda rosa pálido” sobre o conflito entre o Estado de Israel e o Hamas, reaberto, de forma particularmente “quente” a partir do de 7 de outubro de 2023. A hegemonia dos discursos “fofos”, tomistas, tautológicos e tão (pós)modernos quanto a tese “revolucionária” de que desenvolvimento e crescimento não são sinônimos está a me causar engulhos. E, por uma questão de saúde e bem estar estomacal, sinto necessidade de, mais uma vez, desafinar e atravessar o samba.

  • O senso comum Zizekeano e a esquerda “fofa”

 Sou um leitor contumaz. E li muito Zizek nos últimos anos. Ele é um grande pensador. Seu domínio de Hegel, Marx, Freud e Lacan é absolutamente ímpar. Ao contrário de muitos pós-modernos, que criticam as “vacas sagradas” da filosofia política e da psicanálise a partir de leituras “na diagonal” (na melhor das hipóteses) ou de comentaristas superficiais, Zizek leu os originais. E entendeu muito. Sem sombra de dúvida. 

Só que seu domínio destes quatro “monstros” não o torna apto para falar sobre todo e qualquer assunto. Em especial, não o habilita a falar sobre geopolítica e os conflitos sociais e militares contemporâneos. Seus textos sobre o conflito na Ucrânia são de uma simploriedade acachapante. Assim como suas recentes publicações sobre a guerra na Palestina. Em um artigo publicado em diversas mídias no Brasil e amplamente divulgado pela esquerda tomista (aquela da “ virtude está no meio”), Zizek diz:

O ataque do Hamas a Israel deve ser condenado incondicionalmente, sem quaisquer ‘mas’ ou ‘se’. Basta recordar o massacrei de jovens civis que saíram de uma festa rave com 260 mortos a tiros – isso não é ‘guerra’, isso é um massacre puro e simples que dá um sinal de que o objetivo do Hamas, a destruição de Israel como Estado, inclui o assassinato de civis israelenses. 

O primeiro a observar, aqui, é que Zizek toma a versão israelense dos fatos transcorridos como verdade inquestionável. Inocência? Ignorância? Burrice? Falso testemunho? Será que nosso amado filósofo desconhece aquele princípio básico do bom jornalismo e da boa filosofia? Desconfie do que parece óbvio, questione, pergunte, ouça o outro lado. Será que ele acredita que o Estado de Israel – no governo Bibi – é incapaz de manipular informações? Ou é puro alinhamento com o discurso oficial do quinquagésimo primeiro Estado dos EUA, este enclave no Oriente Médio chamado Israel? … A mim parece que há um pouco de todas as opções acima. E nenhuma delas é propriamente um “elogio”. 

Há alguns dias atrás, Eduardo Conde recebeu Breno Altman e José Arbex Jr.  para um debate sobre o conflito entre Israel e Hamas. No minuto 49, Altman – que, vale informar, é judeu e um dos maiores entusiastas da “cultura judaica” que eu já ouvi falando – diz o seguinte:

Você tocou no assunto do 7 de outubro e isso é da maior importância. As investigações do próprio governo israelense, estão sendo vazadas – especialmente para o Haaretz, que é um jornal israelense de muito boa qualidade e muito honesto …. [e que] está vazando as mentiras sobre o 7 de outubro. Em primeiro lugar, já não são 1400 mortos, mas 1200. Segundo: a história dos 40 bebês decapitados é falsa. Um único bebê foi morto. Mas não sabem quem matou porque as balas não são do Hamas e nem do Exército Israelense. Não sabem quem matou. E os 40 bebês não existem. Terceiro, chegaram à conclusão de que pelo menos 2/3 dos mortos são militares. Quarto: dos mortos civis, grande parte foram mortos pelas próprias forças Armadas de Israel que, desesperadas diante do ataque do Hamas, deslancharam uma contraofensiva por ar e terra completamente descontrolada, e atingiram, através de helicóptero, carros e pessoas que estavam ao redor da tal rave, e entraram na rave em combate com os soldados do Hamas. Note-se que os soldados do Hamas, quando saem de Gaza e entram no território israelense, eles atravessam a rave. Porque a rave estava acontecendo muito próximo da Faixa de Gaza. E o exército de Israel combate – ou tenta combater – os militantes do Hamas dentro da Rave. De sorte que grande parte dos civis mortos o foram pelas forças armadas de Israel. Outra coisa: o próprio governo de Israel, segundo o Haeretz, já afirmou que não descobriu ou tem nenhuma prova de qualquer abuso sexual. Lembra daquela história de que as mulheres tinham sido estupradas? Pois é. Não há nenhuma prova de abuso sexual. Então está se desmontando a ficção sobre o 7 de outubro. O que houve no 7 de outubro? Houve uma ação armada de um grupo que é protagonista da resistência palestina. Eu posso nem gostar desse grupo. Aliás, eu não gosto do Hamas. Ele é um grupo fundamentalista religioso, que possui valores que não são os meus. Mas à parte as minhas diferenças com o Hamas, o fato é que eles exerceram uma ação armada prevista pelo direito internacional: os povos colonizados têm o direito à insurgência e à luta armada contra os Estados Coloniais. O que as investigações deixam claro é que a morte de civis – uma tragédia evidente – não era o alvo do Hamas. Elas resultaram da ação atabalhoada do Exército Israelense.

Há muito mais neste debate maravilhoso. Altman entrevistou lideranças do Hamas para obter o “outro lado”. E conclui, na sequência: a versão do Hamas – de que seus objetivos eram militares e de que a morte dos civis israelenses resultou da ação da resposta militar de Israel – é, dadas as informações disponíveis hoje, muito mais verossímil, do que a versão do Estado de Israel. … Mas Zizek e seus fãs parecem não ter quaisquer dúvidas acerca da versão correta dos fatos. E, por isso mesmo, Zizek assevera em seu texto já citado: 

Se eu fosse propenso a teorias da conspiração, certamente expressaria a minha dúvida sobre o fato muito divulgado de que o serviço secreto israelense realmente não sabia nada sobre o ataque. Acho a surpresa de “como isso pode acontecer despercebido” uma farsa. Não estava Gaza totalmente sob seu controle, com numerosos informantes, todos os mais recentes conjuntos de sensores terrestres e aéreos, etc.? Não é permitido levantar a questão: quem lucrou mais com o ataque do Hamas? Dito de uma forma stalinista, o ataque do Hamas serve objetivamente ao interesse de radicais israelenses que agora governam o Estado (para não mencionar também o interesse da Rússia: a guerra já desviou a atenção da guerra ucraniana). … Quem sabe o que realmente aconteceu? A situação é obscura. Qual foi o verdadeiro papel do Irã, da Rússia e também da China? ….. No entanto, em vez de nos perdermos em teorias da conspiração, bastaria salientar que ambos os lados, (Hamas e o governo Netanyahu) são contra qualquer opção de paz e defendem a luta até a morte.” 

Creio que não seja preciso ser especialista em “análise do discurso” para entender o sentido da passagem acima. Zizek começa afirmando que, ele mesmo, não é propenso a teorias da conspiração (hã, hã. Mingana ki eu peixono!) Mas, mesmo assim, assevera ser uma farsa a tese de que o Estado de Israel pudesse desconhecer a operação. Very interesting, indeed! Na linha: yo no creo em brujas, pero que las hay, las hay. E pergunta (sem qualquer compromisso com o conspiracionismo): como Israel poderia desconhecer uma operação feita por estes (como classifica-los? Broncos? Idiotas? Doentes? Psicóticos? Imbecis? Mulatos? Anencéfalos?) terroristas palestinos?  Isto é logicamente impossível. Logo, concluo do alto de minha genialidade branca, cartesiana e europeia que tudo foi combinado entre os agentes do mal: Bibi e o Hamas. 

E continua “logicando”: quem ganhou com o ataque? Não é evidente? Todos os “Impérios do Mal”, todos aqueles que trabalham pelo fim do Sistema Internacional Baseado em Regras:  Irã, Rússia, China, o governo Netanyahu e os terroristas islâmicos. Quem perdeu? O mundo livre, os ucranianos e a oposição democrática em Israel. CQD! Como queríamos demonstrar. Que fofo!

Do meu ponto de vista, este discurso é tão nauseabundo quanto útil. Já temos nossos extremos. Na verdade, mais do que extremos: temos os contrários idênticos: Bibi e Hamas. Agora só falta apresentar a virtude. Como sabemos todos, ela está no meio. Ela é formada pelos palestinos e israelenses que se opõe, simultaneamente, a Bibi e ao Hamas. A turma do bem. A turma que quer dois Estados livres, soberanos, democráticos e pacíficos na … na … na …. Onde mesmo? Na Palestina? Em Israel? Como devemos chamar essa “terra”? …. Enfim, não importa. O que importa é que os mocinhos são da paz. Os bandidos são pela guerra. O único problema é que os mocinhos não vencem eleições, nem em Israel, nem na Faixa de Gaza. Os mocinhos são a maioria mais estranha de todo o mundo. E dá-lhe Xuxa. 

  • Alastair Crooke: uma voz prá lá de desafinada

Pessoa é um Fernando de enorme sensibilidade. Ele dizia: São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores/ E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também/ Porque ser inferior é diferente de ser superior/ E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão... É vero. A diferença e a unidade são absolutamente reais. Todos são superiores e, portanto, dialeticamente, todos são iguais. Não há superioridade real. Mas, ao mesmo tempo, há. O que define a diferença – do meu ponto de vista – é a capacidade de mudar, de sair do lugar comum, de superar seus próprios preconceitos, de ter a coragem de olhar para o inconveniente. E revela-lo.

Alastair Crooke é um sujeito dessa espécie. É um igual muito superior. Alastair foi um “espião-diplomata” do Reino-Unido. Trabalhou por 30 anos no MI6. Uma de suas primeiras funções no Oriente Médio foi a de apoiar a resistência Talibã à invasão russa do Afeganistão. Em 1997 ele passou a trabalhar na Embaixada Britânica de Tel Aviv como consultor para assuntos de segurança. E foi um agente particularmente eficiente na construção do cessar fogo entre Hamas e Israel em 2002. Em 2003, jornais israelenses vazaram sua relação com o MI6 e ele foi retirado de Israel por razões de segurança. Após alguns anos, já aposentado de suas funções de “espia diplomata”, ele retorna ao Oriente Médio para trabalhar como agente privado na mediação de contratos entre governos e empresas de países tradicionalmente conflituoso. Seu ponto de vista é de que “divergências maiores” não deveriam impedir a concretização de acordos eventuais, focados em aspectos específicos, capazes de gerar benefícios para ambos os contratantes. Sua formação liberal e anglo-saxã o levava a pensar que a pacificação do Oriente Médio só seria possível através do reconhecimento e da exploração de acordos de intercâmbio (mormente, mas não só, na esfera econômica) capazes de gerar benefícios para os dois (ou mais) lados de comunidades beligerantes. Crooke apostava e ainda aposta na possibilidade de jogos “ganha-ganha”. Ele só não sabia, ainda, quão comum era o descumprimento do mandamento sobre “falso testemunho”. Mas logo descobriu.

 Os interesses de Crooke nunca se circunscreveram ao plano das relações econômicas. Mais do que um empresário voltado à mediação de contratos entre agentes em conflito político e religioso, Crooke carregava o “DNA” do diplomata-espião. E liberado do controle do Governo Britânico, Crooke passou a estudar o drama político do Oriente Médio com a mesma curiosidade, mas com um grau muito maior de liberdade. Seu primeiro objeto de pesquisa, foi o Hezbollah libanês. E uma pedra caiu sobre sua cabeça. As entrevistas realizadas com as principais lideranças do Hezbollah no Líbano, a leitura de seus textos e o acompanhamento do processo de formação teórica e militar dos agentes do Hezbollah o levaram a conclusões um pouco meio bastante muito totalmente incompatíveis com a leitura que ele fazia dessa organização em seu longo período enquanto diplomata-espião. 

No curso de suas pesquisas, Crooke passou a estudar os mais distintos movimentos e organizações islâmicas de resistência à hegemonia ocidental, a começar pelo xiismo (e a revolução) iraniano(a), passando pela Irmandade Muçulmana no Egito, o Wahabismo e Al-Qaeda na Arábia Saudita, o Taliban afegão e o Fatah e o Hamas na Palestina, dentre muitos outros. E quanto mais estudava, mais Crooke se assenhorava de um elemento crucial: há tanta unidade quanto diferenças entre estes distintos grupos políticos e religiosos. Mas a literatura ocidental tende a apagar as diferenças e opera seletivamente com a unidade, resgatando o que há de mais “estranho, idiossincrático e violento” em cada um deles para criar um pastiche: o pastiche do muçulmano jihadista, conservador, machista, terrorista e inculto. Para Crooke, o ocidente criou uma narrativa simplista e preconceituosa do islamismo e conquistou para a mesma o conjunto do público “moderno”, seja ele, de esquerda ou de direita. 

A revolução teórica de Crooke cobrou um alto preço. Atualmente, seu site, Conflicts Forum, foi desmonetizado nos EUA e ele passou a ter crescentes dificuldades de publicar seus textos na Europa Ocidental. Inclusive no Reino-Unido, para quem trabalhou por várias décadas como diplomata e espião. A grande virada “para o mal” deu-se com a publicação de seu livro maior: Resistance – The Essence of Islamic Revolution.

A primeira grande surpresa com a qual Alastair Crooke se deparou foi com a sofisticada teoria islâmica do Bem-Estar, indissociável de sua crítica ao utilitarismo ocidental e da defesa da tolerância e do pacifismo dentre as maiores e mais expressivas correntes teóricas do pensamento muçulmano. Já na Introdução de seu livro, Crooke diz:

Os muçulmanos estão disputando o discurso de que o secularismo ocidental moderno efetivamente é capaz de ampliar o bem-estar social. Eles rejeitam a razão instrumental do Ocidente, assim como os abusos de poder que este padrão de racionalidade vem alimentando. A significação desta crítica ficará mais clara no próximo capítulo. Mas já cabe dizer que ela representa uma radical diferença de pontos de vista. … O Islamismo está, de fato, impondo um desafio ao Ocidente. Mas – a despeito de uma pequena minoria de muçulmanos que percebem a luta em termos escatológicos e que defendem o aniquilamento do sistema para reconstruí-lo de forma impoluta (como Al-Qaeda propõe), a revolução é pensada como uma luta – na verdade, uma resistência – focada em ideias e princípios e na recusa à violência e à morte. Na terceira parte deste livro vamos examinar detalhadamente a resistência islâmica na recusa à morte a partir da perspectiva de dois movimentos, um deles sunita e, o outro, xiita: Hesbollah e Hamas. O Ocidente, desde as Cruzadas, tem visto o Islam como uma forma pervertida de sua própria religião e, por extensão – mesmo quando as evidências em contrário são claras e amplamente disponíveis -, percebem o islamismo como uma religião violenta. (Crooke, Resistance, Introdução, p. 17)

Logo adiante, Crooke vai esclarecer as razões de sua opção por tomar o Hezbollah e o Hamas como foco. Segundo ele, não se trata de desconsiderar ou desvalorizar outras manifestações da resistência islâmica. O que ele quer trazer à luz é exatamente o fato de que, a despeito das origens muito distintas dos dois movimentos (origens que vão muito além das raízes sunitas e xiitas), sua estrutura organizacional e seu projeto são extraordinariamente similares.  

A investigação e análise detalhada dos dois grupos é realizada na terceira seção de seu livro. Mas, ainda na Introdução, ele vai nos apresentar algumas de suas conclusões mais surpreendentes. Uma das descobertas mais importantes, diz respeito ao profundo e disseminado conhecimento da filosofia crítica ocidental por parte das lideranças intelectuais do pensamento muçulmano contemporâneo. Em inúmeros debates que estabeleceu com filósofos e cientistas políticos das Universidades Islâmicas – em especial, mas não exclusivamente, no Irã e no Líbano – Crooke se deparou com um grau de dedicação à leitura, domínio e respeito ao pensamento de autores como Hegel, Marx, Adorno, Horkheimer, Habermas e Foucault que, segundo ele, é absolutamente inusual nas Universidades Ocidentais contemporâneas. Ao visitar o maior complexo universitário do Irã, a 80 kms da capital, ele se deparou com um padrão de debate totalmente distinto daquele que ele imaginava encontrar. O cerne do mesmo era a crítica à universalização da racionalidade instrumental e suas consequências sobre o debate político. Mais especialmente, sobre o que os teóricos xiitas chamam de “a despolitização da política e a supressão da filosofia”. Em suas palavras: 

Os líderes da Escola de Frankfurt, como os clérigos xiitas atualmente, tornaram-se cada vez mais pessimista quanto às perspectivas de levar a política de volta a uma conclusão diferente – uma conversão para um conjunto diferente de valores alcançados através do pensamento crítico e a estimulação das instalações críticas do público. O problema que tanto os islâmicos como os teóricos críticos enfrentaram, e ainda cara, era que a despolitização da política é simultaneamente uma supressão da filosofia também. Crooke, Op. Cit. P. 21.

Sem sombra de dúvida, estes “terroristas teocráticos medievais” são muito estranhos. Não é mesmo? Demasiado estranhos. Até parecem gente como a gente!

  • O que é o Hamas?

Na página 77 de seu livro, Crooke faz a primeira apresentação do Hamas. Em suas palavras:  

Os movimentos islâmicos palestinos sunitas, o Hamas e a Jihad Islâmica Palestina emergiram, ambos, após a Revolução Iraniana e são ramificações da Irmandade Muçulmana. Esses dois movimentos também adotaram uma postura ativista mais conflituosa do que o da Irmandade. Mas nenhum desses movimentos seguiu a rejeição ambígua da Al-Qaeda da doutrina clássica da “defesa de Islã”.  Isso significa dizer que nenhum dos dois aceita a interpretação revisionista de que a jihad envolveria uma ofensiva armada geral contra Ocidente, bem como a governantes de sociedades muçulmanas que não subscreveram a ideia de uma jihad ofensiva. Todos estes movimentos, sejam armados, sejam não violentos, aderem ao conceito clássico de “defesa do Islã”: eles não se veem “em guerra com o Ocidente”; e nem aprovam ataques ao Ocidente. O Irã, o Hesbollah e o Hamas estiveram entre os primeiros a condenar os ataques de 11 de setembro ao World Trade Center. Crooke, Op. Cit. p. 94.

E, logo adiante, na página 98: 

A grande maioria das organizações muçulmanas de resistência ao imperialismo – que congregam algo como 95% de todos seguidores do Islã – repudiaram e rejeitaram qualquer alteração à clássica ‘doutrina de defesa do Islão’, enquanto uma defesa de ideias e uma luta voltada exclusivamente contra os agressores. Eles repudiam a propagação de qualquer nova doutrina que chama os muçulmanos para uma guerra ofensiva total. Em resposta, movimentos radicais do tipo Al-Qaeda colocaram grupos como o Hezbollah e o Hamas, bem como o conjunto dos xiitas, nas suas “listas de morte”. Crooke, Op. Cit. p. 98.

Perguntas que não querem calar: 1) alguma vez você tomou conhecimento destes fatos pelos jornalões (pretensamente antissemitas) do mundo?; 2) fica mais fácil entender, agora, o apoio (velado, mas evidente) de Israel, Arábia Saudita e dos EUA ao Talibã, à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico?; 3) você realmente acredita que a leitura de Zizek – na linha “Bibi e Hamas” estavam mancomunados – se sustenta?; 4) ou trata-se apenas de uma hipótese confortável para permitir que ele (e, talvez, você) dê o seu apoio (discreto e lacrimejante, pois não é de bom tom aplaudir genocídios, não é mesmo?) a toda a violência e a mortandade sobre Gaza? 

Haveria muito mais a escrever sobre o Hamas. Muito mesmo. A começar por sua aproximação com o Irã e com o Hezbollah, a despeito de ser um movimento de base sunita (veja página 124 do livro de Crooke). Igualmente importante é a descrição que Crooke faz da flexibilização das posições do Hamas em relação à tradição da Irmandade Muçulmana (onde o grupo deita suas raízes) a respeito do padrão de organização política do Estado almejado: Hamas rompe com o projeto de um Estado Teocrático (p. 127). Mas, do meu ponto de vista, o aspecto crucial da apresentação do Hamas feita por Crooke encontra-se em sua descrição da formação dos quadros deste grupo político. Esta apresentação encontra-se nas páginas 166 e seguintes. Ali, são detalhadas as exigências de reflexão e avaliação de todas as consequências de cada ação política e/ou militar. Mais importante ainda: ali são detalhados os princípios corânicos tidos como inalienáveis para a incorporação de um palestino aos quadros do Hamas: autocontrole. 

De acordo com Crooke, a recusa do Hezbollah e do Hamas à perspectiva da Al-Qaeda e do Estado Muçulmano de “guerra total” contra o Ocidente envolve, necessariamente, retomar pela raiz os princípios do Corão no que diz respeito à tolerância com todas as religiões do Livro, a tolerância e a convivência pacífica com todas as religiões baseadas na Torá. A despeito de tudo o que os cristãos fizeram com os muçulmanos desde as Cruzadas e de tudo que os judeus estão fazendo com os palestinos desde a ocupação deste território a partir de 1948. A formação corânica – ensinam as lideranças religiosas xiitas e do novo sunismo que está emergindo com o Hamas – é abrir mão do ódio e da vingança e operar de acordo com a razão: só é efetivamente humano quem tem controle sobre seus atos. Estas passagens são da maior importância. Mas, temo eu, esbarram na mais absoluta ignorância dos leitores ocidentais acerca desta tradição de tolerância. Alguém estudou na escola que o período de maior tolerância religiosa em Portugal e Espanha ocorreu durante o domínio dos mouros? Duvido. Se você sabe disso, é porque estudou por fora. E não foi lendo os jornalões “antissemitas” … Cada dia que passa, me convenço mais que a Matrix é aqui. E metade da esquerda está presa dentro dela.

Confesso que senti falta nessa seção do livro de Crook de alguma comparação – por superficial que fosse – com o padrão de comportamento dos soldados israelenses na Palestina. Eu tive a infeliz oportunidade de conviver com estes “agentes da ordem” em Hebron. Eles defendem uma colônia de judeus ortodoxos ao lado do (pseudo-pretenso-fake) túmulo de Abrahão e Sara na ponta de seus fuzis e miras-laser. Eles me impediram de entrar na Mesquita para a qual havia sido convidado por muçulmanos. Eles definem até onde um turista pode ir. Eles assediam qualquer pessoa nas ruas com arrogância e desprezo. E fazem isso há 75 anos. …. Segundo eles, lutando contra o terrorismo. 

Então tá! Para quem não teve a oportunidade de ver com os seus próprios olhos a arrogância, autoritarismo, preconceito e violência cotidiana dos soldados israelenses na Autoridade Palestina, convido a ler ou ouvir um jornalista israelense judeu antissionista, Gideon Levy, uma das pessoas mais corajosas, autênticas e brilhantes que já tive a oportunidade de ler e ouvir. Quem sabe você pensa duas vezes antes de falar dos “terroristas palestinos” ouvindo parte desse discurso dado em Nova Iorque para empresários norte-americanos e israelenses?

  • Conclusão: uma questão de fins

Há 75 anos, o mundo assiste inerte à limpeza étnica e ao genocídio perpetrado por Israel na Palestina. Há 75 anos, toda e qualquer crítica a esta violência é redarguida com a acusação (diga-se de passagem, absolutamente ilógica, pois os palestinos também são semitas) de “antissemitismo”. Há 75 anos, o ocidente e os liberais bem pensantes respondem a este processo defendendo uma proposta: a construção de Dois Estados Livres e Soberanos. Acho que deu, né? 

Se havia alguma hipótese de que este projeto fosse factível em 1948, parece-me que, hoje, é claríssimo, mais claro do que água pura, que ele se mostrou inviável. Até mesmo Zizek, em seu texto tomista, atlantista e otanista citado acima reconhece que esta hipótese está moribunda. Mas ela não é abandonada pela turma do “bom senso comum”. Pergunte a qualquer um que seja tão pela paz quanto a Xuxa e ouvirás esta resposta: sou favorável aos dois Estados. O fato de que há décadas Israel inviabiliza e faz letra morta de todo e qualquer acordo passa completamente despercebido pela turma fofa que acredita que tudo é uma questão de vontade política. Sinto. Mas já deu. Chega. A faixa de Gaza é um presídio a céu aberto, é um Gheto de Varsóvia, onde até mesmo o direito de pescar e nadar é controlado e cerceado por Israel. E ainda há quem defenda que o acordo só não ocorre porque “minorias” (sabe-se lá como, eleitas pela maioria) contrário idênticas – Bibi e Hamas – não deixam. … 

Sorry. Mas, para mim, há limites para a tal “lavação pilatiana de mãos sujas”. Até admito que alguns poucos – por desinformação, desinteresse ou cegueira – ainda possam ter alguma esperança neste projeto nascido para não dar certo. Mas sou freudiano demais para acreditar na burrice crônica. Há muito mais vontade de não ver do que há ignorância. Não gratuitamente, esta versão “quero que todos se amem” tem, também, uma outra versão. A versão “triste-cética”: eu queria tanto que pudesse haver dois estados. Mas começo a desconfiar que a humanidade está fadada ao mal. Choro, ouço Billie Holiday e leio Hanna Arendt para aguentar tanta maldade do mundo. Très chic. Et totalement inoffensif. Por favor, pare de chorar pelas pitangas derramadas, pare de reler os mesmos textos da Hanna e faça alguma coisa útil. A direita israelense só vai parar de “matar os primos pobres” se a comunidade judaica do mundo todo se levantar aos berros. Eles não ouvem palestinos. E não dão muita bola para os “goys”. O fim do genocício está em vossas mãos. Capice? 

E, por favor, imploro: reconheça de uma vez por todas que esse papo de dois Estados fraternos, mas bem separados, com os branquinhos de um lado e os negrinhos do outro, é uma contradição em termos. Ou é difícil demais entender que o próprio projeto de dois Estados tem uma raiz racista, teocrática e excludente? 

Me desculpem pela tradicional veemência. Tal como eu disse no artigo que publiquei há 15 dias sobre este tema, entendo e respeito a dor dos meus amigos judeus que não conseguem se posicionar com radicalidade sobre um tema tão complexo. Tal como a percebo, o centro da dificuldade encontra-se no fato de que é virtualmente impossível se colocar ao lado da população mais frágil e mais violentada nesta guerra insana e perene – os palestinos – sem receber a crítica e o cancelamento da maior parte dos amigos e familiares judeus. Ora, família e comunidade não é qualquer coisa. É algo enorme. Especialmente para um povo que, durante tanto tempo, foi perseguido e só podia contar com os seus pares. Esta é uma dor horrível. 

Sei que é preciso muita coragem para se levantar contra o consenso. É preciso ser um Filkenstein, um Gideon Levy, um Breno Altman, um Shlomo Sand, um Ilan Pappé. Mas o mundo exige coragem. Exige respeito ao maior de todos os mandamentos mosaixos: não levantar falso testemunho. É absolutamente evidente que os meios de comunicação do mundo todo são seletivos na divulgação das atrocidades cometidas por Israel e compram (como o próprio Zizek o faz) as lorotas contadas pelos meios oficiais de informação do Estado de todos os Judeus do mundo. Onde, por todos os deuses e deusas, está o tão propalado e comentado “antissemitismo” do mundo moderno? Não o vejo em parte alguma. Vejo tão somente um “antipalestinismo”, um antislamismo, russofobia, sinofobia, A maldade toda está na Ásia. … É tão difícil assim perceber a realidade? 

A pergunta que eu faço atualmente é muito simples: o que é e a quem serve o Estado de Israel. Não o Estado teórico, da ONU em 1948. O Estado atual, tal como ele acabou por se constituir e se consolidar? Ele é um estado “racista”? Não, não podemos dizer isto, pois os judeus não são uma raça. Nem sequer são uma etnia. Está provado que o padrão genético dos judeus sefaradis e dos palestinos é praticamente idêntico. Ele é um Estado teocrático? Até certo ponto sim. Mas até certo ponto. O ateísmo em Israel é bastante disseminado. Ele é um Estado ancestral que foi retomado? Definitivamente, não. Os arqueólogos israelenses não encontraram qualquer indício dos reinos de David e Salomão. Já está bastante claro que não houve nenhum êxodo ou saída do Egito. Até porque, Canaã, à época, pertencia ao Egito. O que é o Estado de Israel? É apenas um Estado segregacionista e violento que se justifica por um conjunto de ilusões e mentiras. E que realiza sua afirmação com morte e segregação. Ele sequer é um polo de defesa de um povo perseguido. Por todos os deuses: abram qualquer jornal do mundo para se aperceber desta obviedade elementar – da ZH ao NYT – para ver o óbvio. Os jornais, os formadores de opinião são todos defensores de Israel. 

É preciso ter coragem de nadar contra a corrente. É preciso ter coragem de dizer que não é mais possível tolerar estados teocráticos, etnicistas e sanguinários no mundo de hoje. Qual é o impedimento de se ter um Estado Laico e único na Palestina unificada? … É medo do antissemitismo? Mesmo? Ou é desprezo pelos palestinos “inferiores”. … Peço que meus amigos judeus pensem em Freud e Marx antes de responderem, por favor. Honrem o seu patrimônio cultural. E façam ouvir suas vozes. Pois elas são as únicas que podem parar o genocídio palestino.


*Doutor em economia e professor do mestrado em desenvolvimento da Faccat (Faculdades Integradas de Taquara).

Imagem em Pixabay.

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