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Com ganho de renda e ascensão social, Brasil volta a ser um país de classe média

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Com ganho de renda e ascensão social, Brasil volta a ser um país de classe média
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Estudo constata que 50,1% dos domicílios estão nas classes C para cima, o que significa renda mensal domiciliar acima de R$ 3,4 mil Por Cássia Almeida e Henrique Barbi* O Brasil voltou a ser um país de classe média. O ano de 2024 marcou uma mudança na distribuição das famílias por estrato social, mostra levantamento da Tendências Consultoria obtido em primeira mão pelo GLOBO. O estudo constatou que 50,1% dos domicílios estão nas classes C para cima, o que significa renda mensal domiciliar acima de R$ 3,4 mil. É a primeira vez que isso acontece desde 2015, quando 51% estavam ao menos na classe média. Em 2023, os domicílios das classes C, B e A representavam 49,6%. A melhora no emprego é o principal fator responsável pela ascensão social dos brasileiros, diz a consultoria: — Desde 2023 houve migração importante das famílias da classe D/E para a classe C, decorrente da melhora significativa do mercado de trabalho no pós-pandemia — explica a economista Camila Saito, da Tendências. As classes C e B são tipicamente as de classe média. Nessas famílias, a principal fonte de renda vem do trabalho, e a massa salarial (total dos ganhos de todos os trabalhadores) aumentou nos últimos anos, diz Camila, com a retomada da economia após a pandemia e a valorização real do salário mínimo em 2023 e 2024, após anos sem reajustes acima da inflação: — Isso acarretou melhor desempenho dessas classes em relação às demais. Impulso do emprego Pelas estimativas do estudo, a massa de renda total no ano passado, incluindo salários, benefícios sociais, aposentadorias e pensões, e outras rendas como juros de investimentos, subiu em média 7% no país. Mas, na classe C, este avanço foi bem maior, de 9,5%. Neste estrato social estão as famílias com rendimento domiciliar entre R$ 3,5 mil e R$ 8,1 mil. Na classe B, que reúne os domicílios com rendimentos entre R$ 8,1 mil e R$ 25 mil, o avanço nos ganhos foi de 8,7%, o segundo melhor desempenho. Neste ano de 2025, a classe C deve, de novo, ter um desempenho melhor do que a média nacional. A Tendências prevê expansão de 6,4% na renda deste grupo, contra 3,8% para o conjunto dos brasileiros. Mas, em qualquer recorte, será um desempenho aquém de 2024, que resultará em uma mobilidade social mais lenta, afirma Camila: — Nossas estimativas consideram uma tendência de lenta mobilidade social das famílias para classes de renda superiores. A mobilidade social das classes D e E deve ser reduzida nos próximos anos, acompanhando um fenômeno típico de países com alta desigualdade. Segundo a economista, o ingresso no mercado de trabalho é o principal meio de redução da pobreza, mas não é condição suficiente para superá-la, diante das “baixas remunerações, elevadas desigualdades entre grupos de população ocupada, altas taxas de informalidade e marcante heterogeneidade entre os setores produtivos.” Filha única de um empresário dono de uma academia de ginástica e de uma professora, a dentista Bruna Taboada, de 23 anos, viu a renda de sua família aumentar meses depois de se formar na faculdade. Natural de Petrópolis, na Região Serrana do Rio, ela começou a atender em uma clínica e, com uma clientela mais robusta, passou a arcar com seus próprios gastos. Da gasolina do carro aos materiais odontológicos e uma especialização em São Paulo, tudo sai de seu salário, que gira em torno de R$ 3.500. — A renda do meu pai sempre foi incerta, porque a academia depende muito das temporadas. Já a minha mãe tinha uma certa segurança por ser concursada, mas ganhando bem menos. Hoje, eles saem mais para restaurantes, passaram a viajar. São luxos aos quais eles não se davam antes — diz Bruna. Ela conta ainda que sua formatura, há pouco mais de um ano, coincidiu com as últimas parcelas do financiamento do imóvel em que vivem, o que aumentou a renda familiar, que está acima de R$ 20 mil e, assim, se consolidou na faixa B. Esse estrato social da classe média, segundo o estudo da Tendências, foi o segundo maior ganho de renda em 2024. No ano passado, a taxa de desemprego chegou ao seu menor nível histórico, de 6,1% no trimestre terminado em novembro, e o nível de ocupação (total de pessoas com trabalho em relação à população total) chegou também ao seu melhor momento: 58,8%. Em 2019, essa taxa era de 56,8%. Desigualdade em queda   Segundo o economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social, o Brasil teve resultados sociais “bastante alvissareiros”, comparáveis aos de 2014 (o melhor ano até então para o mercado de trabalho), mas ainda melhores. O economista avalia que os três componentes que favorecem a ascensão social estavam presentes em 2024: — Nos nossos estudos da nova classe média, três componentes estavam presentes: crescimento do PIB (Produto Interno Bruto), como está havendo nos últimos dois anos; crescimento da renda do trabalho bem acima do PIB, que está acontecendo também. Em 2023, a alta do rendimento do trabalho só perdeu para o boom do Real (em 1994) em único ano. Já o terceiro componente, explica Neri, só apareceu em 2024, que foi a queda da desigualdade. Apesar de os indicadores de disparidade de renda estarem no menor patamar histórico, eles ficaram praticamente estagnados em 2023. Em 2024, foi diferente, afirma Neri: — No ano passado, entrou um elemento novo, ausente da cena nos últimos anos, que foi a queda na desigualdade. Até o terceiro trimestre, a renda média domiciliar per capita em 12 meses cresceu 6,98%, mas entre os 50% mais pobres, a alta foi 10,2%. E a causa principal dessa alta maior veio da queda do desemprego, que respondeu por 40% do aumento da renda das famílias, afirma Neri. Um dos símbolos da classe média, que é o emprego formal, também avançou. Foram criadas 3,6 milhões de vagas com carteira assinada de janeiro de 2023 a setembro de 2024, lembra o economista. A alta da taxa básica de juros, a Selic, atualmente em 12,25% ao ano — e que pode chegar a 14,75% no fim de 2025, se as previsões dos analistas se confirmarem —, deve favorecer a classe A, diz Camila, da Tendências. Este estrato social tem os ganhos mais concentrados em aplicações financeiras e aluguéis. — Com a trajetória de aumento da Selic, a estimativa para a massa “outros” é de uma alta de 7,8%. Assim, o aumento dos juros deve favorecer a classe A e, em menor medida, a classe B também. Além disso, os níveis elevados da inflação prejudicam mais as famílias mais pobres — afirma Camila. Educação conta   Neri acredita que, como a alta recente do dólar está mais ligada a expectativas, essa instabilidade pode se dissipar com um apoio mais forte do próprio governo ao ajuste fiscal proposto pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Mas essa avaliação não é compartilhada pelo presidente do Instituto de Mobilidade e Desenvolvimento Social, Paulo Tafner, que vê riscos para a melhora social este ano: — Estamos pisando forte no gasto fiscal. Com empuxo fiscal, a economia reage. Acaba tendo uma forte pressão de demanda com contrapartida da oferta, inflação alta ou recessão. Tafner, no entanto, chama atenção para o problema da baixa qualidade da educação, que impede o aumento da produtividade e uma melhoria mais sustentável das condições das famílias mais pobres: — Apesar do aumento da escolaridade, o ganho estrutural de renda que é dado pelo acumulo de capital humano não aconteceu no Brasil. Isso limita a mobilidade social. Em um ciclo de expansão, a pessoa consegue emprego, aumenta a renda, mas basta não ter ritmo de crescimento acelerado para perder o emprego. *Estagiário, sob a supervisão de Cássia Almeida Publicado originalmente no O Globo. Foto: Ricardo Correa/Exame Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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O destemido Olsen

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O destemido Olsen
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Por GIOVANNI MESQUITA* Certo dia, flanava eu pelas ruas de Porto Alegre, acompanhando seu moroso entardecer. Enfiado nos meus pensamentos, atravessei a Praça Itália, admirando suas colunas grês que nada sustentam. Na vanguarda de todas elas, um Leão de São Marcos, com o rabo de serpente, segurava seu evangelho. Imerso nessa arquitetura, parei na calçada à beira da movimentada avenida. Do outro lado do Parque, um negro de duras feições, que tinha por franja um galho verde, olhava pra mim. Semioculto nas folhagens, lá estava ele: o Almirante Negro. Tomando cuidado com aquela alameda de mão única, atravessei a via para cumprimentá-lo. Parei ereto, com a devida postura de respeito que exige sua patente. Naquele mudo e curto diálogo, nós nos entendemos nos tempos, nos significados e despedimo-nos. Segui meu rumo, lembrando de outro Almirante, o Saldanha da Gama, aquele que, em 1893, levantou a Armada pela restauração da monarquia. Gama, depois de visitar Isabel, a filha do Pedro, voltou para o Brasil sem um rebento da extirpe Bragança para exibir como bandeira da reação monárquica. Frustrado, mas não derrotado, juntou-se às tropas maragatas na fronteira do Rio Grande do Sul. Como ovelha não é para mato, por ser um marinheiro maturrengo, foi facilmente atravessado por uma lança republicana. Saldanha da Gama deitou eternamente no manto verde da pampa, levando a saudade do escravagismo na mente e a monarquia no coração. Caminhei 650 metros, até onde estão os símbolos do panteão em homenagem à Marinha do Brasil. Lembrei, então, o porquê de o busto do Almirante Negro não ter sido colocado lá, sendo desterrado para frente de uma praça que homenageia ancestrais que não são os seus. Soube, naqueles dias do ano 2000, os motivos pelos quais a herma ter ficado em local tão ermo, distante do Monumento à Marinha. Ocorre que a Marinha não permitiu que o lendário marinheiro negro, aquele que acertou as contas com a chibata escravagista, compartilhasse o espaço reservado à memória da esquadra. O horror da cúpula da força naval brasileira ao gaúcho João Cândido Felisberto foi prontamente renovado em abril de 2024. Na oportunidade, o atual Comandante da Marinha, o Almirante Marcos Sampaio Olsen, enviou uma mensagem à Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados. O desígnio do seu ofício era tentar impedir que o Almirante Negro fosse incluído no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Na carta, Olsen diz que homenagear como heróis Cândido ou “qualquer outro participante daquela deplorável página da história nacional" seria um incentivo para aqueles que buscam "recorrer às armas que lhes foram confiadas para reivindicar suposto direito individual ou de classe". E que aquele episódio “opróbrio da história, cujo o estopim se deu pela atuação violenta de abjetos marinheiros que, fendendo a hierarquia e disciplina, utilizaram equipamentos militares para chantagear a nação[...]”. Mesmo reconhecendo, agora nesse tempo distante, que era “justo o pleito pela revogação da prática repulsiva do açoite [...]” o texto insinua que, no fundo, o movimento objetivava “deliberadamente, vantagens corporativas e ilegítimas. ” E quais seriam elas? A exclusão de oficiais torturadores? A diminuição da carga de trabalho? Ou aumento de salário? Ele encerra a missiva com a seguinte análise de conjuntura: “Nos dias atuais, enaltecer passagens afamadas pela subversão, ruptura de preceitos constitucionais” [e o] “descomedido emprego da violência de militares contra a vida de civis brasileiros é exaltar atributos morais e profissionais, que nada contribuirá ao pleno estabelecimento e manutenção do verdadeiro Estado Democrático de Direito.” É necessário lembrar que esse manifesto de preocupação “cívica e democrática” ainda se encontra na página oficial da Marinha do Brasil. Será que o opiniático almirante de esquadra confeccionou alguma carta ou declaração de repúdio à “subversão, ruptura de preceitos constitucionais” por parte das Forças Armadas? Teria ele se manifestado em público contra o planejado “descomedido emprego da violência de militares contra a vida de civis brasileiros”, como a que vimos ser propugnada pelo seu antecessor o Almirante ALMIR GARNIER? É de conhecimento geral que Garnier, com a máxima prontidão, voluntariou-se a colocar os tanques da Marinha nas ruas para impedir que Lula assumisse a presidência. Eu desconheço qualquer iniciativa do militante militar nesse sentido. Será que o silêncio de Olsen, nesse episódio, significa que ele aprendeu a lição de que milicos devem ficar de bico calado e não se meter no cenário político brasileiro...? Em novembro, o Governo Lula, pressionado pelo deus Mercado, enviou para o congresso o projeto de corte de gastos. No projeto está incluído um pífio aumento de desconto da previdência a todas as Forças Armadas. O pagamento da previdência por militares passaria dos atuais 1,5% para 3,5%, no Fundo de Saúde. No entanto, a contribuição de todos os outros trabalhadores vai de 5% a 20%. Além disso, os militares passariam a se aposentar aos 55 e não aos 50 anos, sendo que os civis se aposentam aos 65 anos. A proposta também revogaria a morte ficta. Essa espécie de falecimento, uma curiosa tradição de nossa caserna, ocorre sempre que um militar, ao cometer atos de bandidagem, é expulso da Força. Nesse processo, ele tem decretada na sentença a sua “morte simbólica”. A partir daí, seu salário, integral, é repassado a sua esposa... Dizem os observadores de espíritos que é possível ver várias dessas almas vagando no calçadão de Copacabana nos finais de tarde. Ecomo se portou nosso “herói” quando soube que seriam modificados esses privilégios? Em resignado silêncio? NÃO! Lançou-se, sem vacilos, à frente de batalha. Ordenou a composição de um sofisticado audiovisual, pago obviamente com dinheiro público, para expressar sua contrariedade. Oportunizado pela “comemoração” ao Dia do Marinheiro, publicou no canal oficial da Marinha no You Tube o vídeo intitulado “Privilégios? ”. Nele os marinheiros demonstravam toda a sua energia em fainas de marinheiragens aéreas, marítimas e terrestres. E a cada quadro de seus feitos se sucedia, de contraponto, uma a imagem da notória “boa vida” de todos os outros trabalhadores brasileiros. Traduzindo, chamou as cidadãs e os cidadãos não fardados de vagabundos! Muitos de nós, com toda a certeza, adoraríamos viver no mundo mágico de Olsen. Mas, infelizmente, ele é apenas o fruto de uma mente autoritária, hipócrita e cínica. Como vimos, Olsen não despreza apenas os civis. Ele também acha os marinheiros, os subalternos, é claro, abjetos. Então, baseado nos critérios do próprio Olsen, o que dizer desse senhor que, ao “fender a hierarquia”, de maneira pública e acintosa, atacou as determinações de seu Comandante Supremo, o Presidente do País, defendendo um “suposto direito individual ou de classe” [e] “vantagens corporativas e ilegítimas?” Presidente, não haverá, em toda a Marinha do Brasil, um único oficial que não seja um saudosista do império escravagista, um acobertador de golpistas, para colocar no comando dessa Arma?         *Giovanni Mesquita é Historiador e Museólogo. Foto de capa: IA Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.  

Opinião

Reconstruir o imaginário político

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Reconstruir o imaginário político
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Por RENATO JANINE RIBEIRO* Quando o PT venceu a eleição presidencial de 2002, iniciou uma ruptura com uma tradição política brasileira. Até então, os pobres não organizados costumavam votar na direita, enquanto a esquerda recebia os votos da classe média progressista e dos pobres organizados, como sindicalistas e participantes de movimentos sociais. Durante os governos Lula, ocorreu um realinhamento político significativo no Brasil. O PT perdeu uma parte considerável do apoio que tinha nas classes médias, mas, em contrapartida, conquistou a fidelidade de uma grande parcela dos mais pobres. Esses eleitores, que anteriormente votavam em figuras como Paulo Maluf ou Antônio Carlos Magalhães — ou seja, contra seus próprios interesses —, passaram a enxergar no PT uma representação de suas aspirações. Esse alinhamento entre os interesses econômicos e sociais dos mais pobres e a sua expressão política perdurou por um bom tempo. No entanto, entrou em crise após o golpe de 2016. Um dos principais efeitos desse golpe foi o rompimento desse elo entre a vontade política e os interesses reais das camadas mais pobres da população. Hoje, vemos uma parte significativa da população pobre votando contra seus próprios interesses. Esse fenômeno é frequentemente descrito como o surgimento dos "pobres de direita", uma expressão que não me agrada por ser condescendente, mas que reflete uma realidade concreta. Esse desalinhamento é um grande desafio para o governo Lula atual, que não tem conseguido recuperar os níveis de popularidade e coesão política que existiam no passado. A questão central que se coloca é: como voltar a criar esse alinhamento entre interesses e expressão política? Desta vez, não bastará apenas apelar aos interesses materiais, como o Bolsa Família ou promessas de consumo acessível, como a "picanha com cerveja". Será necessário trabalhar o imaginário político, algo que não surge automaticamente de benefícios econômicos. Reconstruir esse imaginário, que conecta os valores, a dignidade e os sonhos da população com o projeto político, será crucial para retomar a fidelidade e a confiança das classes populares. * Renato Janine Ribeiro é filósofo, ex-ministro da educação e presidente da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência Texto publicado originalmente no Facebook do autor Foto: Manifestantes em frente ao Quartel General das Forças Armadas, no sábado, 05/11/2022 - Crédito: Wallace Martins/Futura Press/Estadão Conteúdo Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

Crônica

Sempre vale ouvir Churchill

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Sempre vale ouvir Churchill
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Por LÉA MARIA AARÃO REIS* Consta que brain rot, expressão usada pela primeira vez no século 19 por Henry Thoreau, foi eleita pelo dicionário Oxford como a expressão do ano de 2024. Define o cérebro embrutecido, o cérebro apodrecido ou podridão cerebral, em bom português. A palavra do ano define também ‘’dano mental causado pelo consumo excessivo de conteúdos superficiais e de baixa qualidade na internet, dificuldade de concentração e perda de criatividade’’. O uso do termo cresceu 230%, entre 2023 e 2024, e designa quem usa e assiste conteúdos viciantes apresentados nas redes sociais. A série de quatro episódios, Churchill em guerra, atualmente incluída à rede de estreias no streaming para assistir durante o recesso das férias de fim de ano, parece ser dirigida se não aos brain rots no seu geral, mas aos mais jovens e aos mais viciados em consumo de internet. Apesar de conter algumas informações interessantes, produzida por Sara Enright e dirigida pelo fotógrafo inglês Malcolm Venville, de 62 anos, pretende apresentar o legado deixado por Churchill relativo às suas ações decisivas durante a Segunda Guerra Mundial. Sua energia, a formidável auto – confiança de Churchill, a inteligência, intuição e a percepção afiada da sua alma postas à prova duramente durante a tempestade desferida pelo ataque de Hitler à Europa continental. Nessa série, a blitzkrieg - como ficou conhecida a guerra-relâmpago aérea desfechada pelos alemães sobre a Grã-Bretanha; uma blitz - é um dos principais temas. Assim como a ênfase na liderança do primeiro ministro britânico acompanhando e encorajando a resistência do seu povo. O trabalho se vale da inteligência artificial, de restaurações digitais e de colorizações de imagens históricas, de época, e originalmente em preto-branco, para atualizar e atrair em particular os espectadores jovens e mais suscetíveis ao embrutecimento cerebral. Há quem ache que, com a restauração, ‘’tudo parece mais assustador, próximo e humano, como se o passado recebesse uma injeção de vida’’. Tenho dúvidas quanto a esse resultado. Inclusive porque as sequências em que foi usado um ator medíocre fazendo o papel de Churchill não são boas. Não funcionam. Na sua essência, os arquivos selecionados para o seriado não contêm muito de novo. Mas há registros curiosos comentando a trajetória e a notável ação de Winston Churchill a partir da entrada da Grã-Bretanha na guerra de defesa contra Hitler. Por exemplo: a sua convivência, necessária e sem alternativa, com Franklin Delano Roosevelt e, em seguida, com Joseph Stalin. Três egos gigantescos em aliança, Harry Truman aí incluído, embora menos, após a morte de Roosevelt. Uma das grandes e conhecidas habilidades de Churchill é reforçada nessa série. A sua descontração e naturalidade no contato com o povo, o talento notável como negociador político, e os traços do retrato do grande e autêntico líder que se sentia inteiramente à vontade no meio das multidões, falando e incentivando as massas. “Política’’, dizia o primeiro ministro britânico, um autor de frases históricas, ‘’ é quase tão excitante quanto a guerra, e quase tão perigosa. Na guerra você é morto uma vez; em política, várias vezes.” Vê-se Churchill se mantendo reservado e concentrado nas reuniões tête à tête, cara a cara e olho no olho com o companheiro Roosevelt arredio, que hesitava entrar na guerra, sempre preocupado com os formidáveis custos financeiros que pesariam sobre o seu país caso os Estados Unidos se aliassem aos ingleses na Segunda Guerra Mundial. Um Churchill desconfiado, mas educado e cerimonioso, acompanhado do seu sempiterno charuto e se referindo às habituais doses de bebida alcoólica que consumia, quando encontrava com a águia comunista, Stalin. Este, perscrutando e avaliando com cuidado como seria o futuro da União Soviética no caso de vitória que vislumbrava para o seu campo, ao término do conflito. Mas Churchill at war não detalha e apenas menciona, por exemplo, a importante derrocada dos ingleses na costa de Calais, em Dunquerque. Silencia sobre a vitória dos russos no sangrento confronto da cidade de Stalingrado sitiada, fundamental para mudar o rumo da guerra, em 1942/43. E não tem uma palavra sobre a entrada do exército soviético em Berlim e a rendição dos nazistas aos exércitos russos. Pior: tem o mau gosto de trazer depoimentos e observações (!) do ex-presidente George Bush e do ex - primeiro ministro britânico Boris Johnson, personagens pequenos que nada têm a ver com os três brilhantes protagonistas históricos. A série, produzida por Ron Howard e Brian Grazer, autores dos premiados Apollo 13 e Uma Mente Brilhante, repetimos, parece se propor atingir as gerações formadas diante das telas de computadores, tablets, telefones celulares e dispositivos desse tipo. Mas mesmo assim vale a pena assisti-la. Os quatro episódios de Churchill em guerra são esses, uma hora de duração cada um : A aproximação da tempestade, A sua hora mais gloriosa, O dia do destino e Depois da tempestade. São o pano de fundo para a era do fim do Império Britânico e começo da era nuclear. Em resumo, vale a pena ouvir, mais uma vez, o apelo de Churchill aos seus conterrâneos para resistirem aos nazistas. Embora só pudesse oferecer-lhes naquele momento, ‘sangue, suor e lágrimas’’ Cada um deles com uma hora de Sara mais gloriosa.       *Léa Maria Aarão Reis é jornalista. Ilustração de capa: Divulgação/ Netflix Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. 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Nós, os “faMELOnários”

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Nós, os “faMELOnários”
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Por FABIO DAL MOLIN* “O líder carismático obsceno é, portanto, o “retorno do reprimido” do conhecimento especializado que pretende agir sem apoio numa figura do mestre: o Mestre reprimido (a autoridade que personifica a Lei) retorna em sua forma (quase, não exatamente) psicótica, como um Mestre obsceno sem lei. O Mestre está aqui “superpresente”: não se reduz à sua dignidade simbólica, representa a autoridade com todas as suas idiossincrasias. E o que acontece com o conhecimento com a ascensão do Mestre obsceno? Como podemos ver abundantemente, o conhecimento especializado neutro é transformado no seu oposto (imanente), o conhecimento “especial” das teorias da conspiração acessíveis apenas aos iniciados (o aquecimento global é uma farsa, a pandemia da covid-19 foi inventada por aparelhos estatais e corporações médicas…).’ Zizek, Slavoj. Mais-gozar: Um guia para os não perplexos (Portuguese Edition) (p. 329). Editora Vozes. Edição do Kindle. O filósofo esloveno Slavoj Zizek. em seu último livro publicado “Mais Gozar”, que trata da potência libidinal e fantasistica daquilo que nossa sociedade constrói e chama de “realidade”. A partir de Marx, Hegel, Freud e Lacan, Zizek produz importantes insights sobre as noções de existência e crença como organizadores da vida psíquica, e entre elas está a ideia de Significante Mestre, de Lacan, que é uma espécie de substância organizadora que permeia e dá anteparo a nossa segurança ontológica. São importantes suportes de segurança ontológica noções abstratas, mas quase tangíveis, de verdade, ciência, saber, lei, ou mesmo a própria ideia de existência. Certa vez um paciente que se dizia muito religioso por frequentar sistematicamente uma igreja, mas que eu desconfiava não ter muita fé me perguntou “você acredita em Deus”? Assim, de relance, no suporte da transferência, respondi como bom freudiano que sou, chistosamente, “eu acho que Deus existe, mas não acredito nele”. O chiste me rendeu boas reflexões sobre o Grande Outro que, ao mesmo tempo que nos organiza, permite uma certa transgressão deslizante. Em seu livro Zizek analisa Ragnar Lothbrock, o icônico personagem histórico da série “Vikings”, que, mesmo sendo o grande líder de uma nação totalmente imbuída de uma crença quase real nos seus deuses, sem a qual jamais empreenderiam suas batalhas e viagens suicidas, se confessa ateu. Para o filósofo, essa lacuna, contrariamente ao senso comum, é o que faz lastro para a realidade, como quando vamos ao cinema , apesar de sabermos que tudo ali são montagens e efeitos especiais, nos emocionamos, ficamos com asco, raiva ou aceitamos o fato de um super-herói voar ou ser invulnerável. Assim como a realidade do cinema precisa de uma tela de enquadramento, nossa realidade psíquica também necessita de contornos permeáveis, do contrário não saberíamos a diferença entre o sonho e a realidade, ou acreditaríamos que podemos voar como os super-heróis. Bem, é claro que esse delicado sistema de anteparo pode entrar em colapso quando esse Grande Outro perde sua força, e muitos signatários da psicanálise acreditam que nossa sociedade contemporânea complexa, heterogênea e em decadência esteja passando por aquilo que é chamado de “declínio da função paterna”. È importante fazer aqui a observação de que tal expressão guarda resquícios da velha psicanálise surgida em um período em que a ciência era totalmente amalgamada com a sociedade patriarcal. Maas sem dúvida, abrindo mão da ideia de “pai”, podemos manter a potência analítica a ideia de princípios organizadores que nos ajudam a não sucumbir a loucura e ao caos social que hoje realmente estejam em falta especialmente no mundo digital pós 2014, o que já chamei em outros textos de “O mundo de 2020”, onde enormes contingentes humanos acreditam que a Terra é plana ou não escutaram os apelos da ciência em uma das maiores crises sanitárias dos últimos séculos simplesmente por receberem informações de múltiplas realidades paralelas e coexistentes que, dentro do caos da internet e do declínio neoliberal de instituições como a escola, a ciência ou o próprio estatuto da verdade (que é questionada pela filosofia mas sob critérios sólidos). Zizek usa o exemplo da série islandesa “Katla” (Netflix). O roteiro da série se passa em uma comunidade isolada pela erupção de um vulcão dentro de uma geleira, e os poucos remanescentes vivem em um ambiente degradado e sem esperança. Repentinamente a cidade começa a receber a visita de alguns de seus moradores, alguns já mortos há algum tempo, outros como versões distintas de si mesmos. A série tem como referência a obra de ficção científica “Solaris” de Stanislaw Lem filmada por Tarkowsky. Dentro do vulcão há um meteoro cuja radioatividade torna materiais as fantasias dos habitantes expostos a ela. Segundo Zizek, o argumento da série trata dessa ascensão de um Mestre obsceno, que converte as fantasias íntimas e inconfessáveis dos moradores não mais em anteparos simbólicos e sim em figuras reais de gozo possível ( o gozo, neste paradigma, representa nossa própria fruição com a realidade, que é sempre parcial ou impossível).A fratura produzida pelo vulcão (que sempre esteve ali, não é uma anomalia) transforma a fantasia em percepção, a realidade sem anteparo da psicose. Pois todos sabemos que o mundo, especialmente o Brasil, e especificamente a cidade de Porto Alegre, de certa forma experimentou na última década a explosão de uma realidade bifurcada e em 2024 o estado do RS e minha cidade passaram por um período de erupção do vulcão ontológico, e dois sintomas tragicômicos emergiram no primeiro dia de 2025. O primeiro fato aconteceu logo após saírem o resultado da Mega-Sena da virada, cujo prêmio pagou mais de 600 milhões de reais. O plantão das enfermeiras de um hospital na região metropolitana de Porto Alegre foi interrompido pela notícia de que uma delas havia acertado as seis dezenas do concurso. Uma das médicas do plantão filmou o momento exato da festa, que viralizou na internet porque a suposta ganhadora, que abandonou o plantão e foi para casa planejar os próximos dias de sua vida de milionária (que, segundo ela mesma, começaria com uma viagem para Paris) recebeu a notícia do irmão que tudo não passou de um engano, pois ela conferira os resultados como um bingo, e as seis dezenas que supostamente acertara estavam distribuídas em cartões diferentes. Confesso que ri sadicamente da tragédia alheia, mas também masoquisticamente porque eu mesmo já depositei uma gorda soma de dinheiro na conta de um golpista do whatsapp que se fez passar pelo meu irmão, e tive que suportar a vergonha de cair em um golpe ridículo. Mesmo tendo achado engraçado eu tive pena da pobre mulher que (junto com suas colegas ) entrou momentaneamente em uma realidade onde não mais faria plantões cansativos e venderia sua força de trabalho por um salário injusto, viajaria para Paris e não calcularia a cotação do Euro ou veria o preço do Menu dos restaurantes. E isso nos leva a Porto Alegre, cidade suja e destruída por uma sequência de administrações sujeitas a exploração comercial e imobiliária, que chegou a sua erupção vulcânica na enchente de 2024 e entrou na mesma realidade bifurcada da enfermeira ao rejeitar Maria do Rosário e reeleger com folga Sebastião Melo. Pois a prefeitura celebraria no dia 01 dois eventos: a reeleição de Melo e a reabertura da Usina do Gasômetro, antigo e emblemático espaço cultural da cidade agora “revitalizado” e que será mantido por “parceirizações” com empresas que, como sempre financiaram a campanha eleitoral . Sebastião Melo circula na administração popular há 20 anos e em seu discurso de posse diz que no primeiro mandato estava apenas aprendendo. Por mais uma ironia cósmica do destino, a “máquina id” de Solaris e Katla, o planeta pulsante ou a erupção vulcânica radioativa, a posse do prefeito foi marcada por mais um alagamento com falta de luz que provocou seu cancelamento. Na posse da nova legislatura da Câmara de vereadores Melo produziu a sua própria realidade bifurcada típica dos seus apoiadores bolsonaristas. Na iminência de mais uma tragédia ambiental um discurso fora de contexto onde defendeu o direito de liberdade de expressão para defender a ditadura. Junto com a posse da fascista Comandante Nádia como presidente da Câmara depois de demonstração de compra de sentença judicial ( a vereadora cometeu crime eleitoral na campanha em um processo onde o próprio governador Leite foi testemunha o discurso de Melo é um aceno de agradecimento a seus chefes e principais apoiadores políticos, e também um sintoma tragicômico de que o discurso do Mestre Obsceno invadiu Porto Alegre, onde o lixo, as ruas alagadas, a proliferação de moradores de rua e a degradação ambiental quase o elegeram em primeiro turno. E aí meus amigos do Facebook que não moram aqui exclamam “ bem feito para os idiotas que votaram nele”. Isso me lembrou duas cenas. A primeira é do filme da Marvel “Guardiões da Galáxia” onde o personagem Rocket, diante da vitória iminente do vilão pergunta “quem se importa com essa maldita galáxia, ela que se dane”, e Star Lord responde “eu me importo porque eu sou um dos idiotas que vive nela”. A outra é do famoso livro de Freud “Os chistes e sua relação com o inconsciente”, a famosa anedota em que o personagem pobre se encontra com o ricaço e relata: “Rothschild me tratou como um igual, de modo bem 'familionário'". Aqui vale a máxima de Freud de que o chiste nos salva da realidade alucinatória cruel. Aqui estamos nós, moradores de Porto Alegre, alagados, falidos, sem luz e comemorando, verdadeiros “FaMELOnários”.       *Fabio Dal Molin é psicólogo, psicanalista, doutor em sociologia, professor da FURG e pós-doutorando do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Clínica e Cultura da UFRGS. Foto de capa: Divulgação/ César Lopes Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.      

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Nota de repúdio às declarações antidemocráticas do prefeito Sebastião Melo

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Nota de repúdio às declarações antidemocráticas do prefeito Sebastião Melo
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O Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito manifesta seu mais veemente repúdio às declarações antidemocráticas do prefeito Sebastião Melo durante a cerimônia de posse, no dia 1º de janeiro. O prefeito cai em clara contradição ao considerar que a defesa da ditadura deve ser aceita em nome do princípio da “liberdade de expressão”, pois eliminá-la é exatamente um princípio básico da ditadura. Ao contrário, para garantir a liberdade de expressão, a democracia jamais pode permitir o pretenso direito daqueles que pregam sua eliminação. Ao apoiar a liberdade de defesa da ditadura, o prefeito também ignora toda a repressão social e política e os horrores de um regime que violou de forma criminosa direitos humanos em nosso país. Tais declarações antidemocráticas são ainda mais graves por ocorrerem no momento em que o Brasil se aproxima do aniversário de um dos episódios mais sombrios de sua história recente: os ataques aos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. Ao banalizar atos antidemocráticos e minimizar a violência política de forças de extrema-direita que defendem a ditadura, o prefeito incentiva o desrespeito ao estado democrático de direito, enviando um perigoso recado à sociedade e cometendo crime, que deve ser punido nos termos da legislação vigente. O Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito reafirma seu compromisso inabalável com os valores democráticos e conclama todas as lideranças sociais e políticas a rejeitarem discursos que flertem com o autoritarismo ou que justifiquem atos que atentem contra as instituições democráticas. Porto Alegre, 2 de janeiro de 2025 Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito

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