Destaque
O museu dedicado a Dom Pedro II decidiu esconder a estátua de um teórico considerado o “pai” de uma teoria racista que consolidou o nazismo.
RED
No Museu Imperial, localizado no antigo palácio de verão de Dom Pedro II (1825-1891) em Petrópolis, uma escultura está coberta desde a semana passada, mas não por razões de restauro ou conservação. Com 1,90 metro de altura, a obra "Mima", esculpida em mármore de Carrara, tornou-se o centro de um debate sobre o racismo no período imperial brasileiro.
A peça fazia parte da coleção pessoal de Dom Pedro II e foi criada por seu amigo, o francês Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882). Gobineau, diplomata, escritor e filósofo, é conhecido como um dos pioneiros da pseudociência que justificava a supremacia racial branca.
Em 1855, Gobineau publicou o livro Ensaio Sobre a Desigualdade das Raças Humanas, considerado precursor de ideias de eugenia e racismo, que mais tarde influenciariam o nazismo. A obra é vista como um marco inicial do chamado "racismo científico".
"É importante salientar que Gobineau é o autor do livro considerado a base das teorias racialistas e do racismo, cuja tese do arianismo foi difundida pelo nazismo", afirmou Maurício Vicente Ferreira Júnior, diretor do museu, à BBC News Brasil. Segundo Ferreira, a decisão de cobrir temporariamente a escultura "Mima" visa abrir espaço para refletir sobre a melhor forma de abordar e expor o objeto, dado seu caráter controverso.
A instituição descreve como temporária a polêmica decisão, ao menos oficialmente.
Museu Imperial/ Divulgação \ Escultura 'Mima' em dois ângulos diferentes
O Museu Imperial exibe a escultura "Mima" em sua exposição permanente desde 1943, após transferência do Museu Nacional. A peça, pertencente a d. Pedro 2º, simboliza a amizade entre o imperador e Arthur de Gobineau, autor da obra, e integra a Sala dos Diplomatas por sua conexão histórica com o ambiente.
Em nota técnica, a socióloga e historiadora Alessandra Bettencourt Fraguas argumenta que a exibição da obra, sem questionamentos sobre a autoria de Gobineau, "pai do racismo", é insustentável. Fraguas sugere o recolhimento da peça à reserva técnica ou sua exposição acompanhada de explicações que contextualizem seu significado e problematizem sua história.
O texto ainda critica a falta de reflexão sobre a autoria da escultura ao longo de oito décadas, defendendo a revisão de conceitos e narrativas no museu.
Joseph Arthur de Gobineau, conhecido por suas ideias pseudocientíficas sobre raça, chegou ao Brasil em 1869 como embaixador da França, designado por Napoleão 3º para acompanhar os desdobramentos da Guerra do Paraguai. Durante sua curta estadia de um ano, Gobineau desenvolveu uma amizade próxima com d. Pedro 2º, embora tenha demonstrado profundo desprezo pelo Brasil devido à sua diversidade racial e miscigenação, que ele considerava sinais de "degeneração".
Encontros Semanais com D. Pedro
Gobineau acreditava que o futuro do Brasil estava condenado por causa da mistura racial e defendia a imigração em massa de europeus como "solução". Suas ideias racistas, que mais tarde influenciariam movimentos como o nazismo, contrastavam com as visões do imperador, embora ambos mantivessem debates frequentes e acalorados.
Mesmo após deixar o Brasil, Gobineau e d. Pedro 2º continuaram a se corresponder, e o diplomata acompanhou o imperador em viagens pela Europa. As cartas trocadas entre eles estão preservadas em arquivos no Brasil e na França.
A escultura "Mima", encomendada por d. Pedro a Gobineau, chegou ao Brasil durante esse período e foi exibida no Palácio de São Cristóvão, residência imperial. Originalmente planejada para decorar a sala de recepção de diplomatas, a obra tornou-se parte da coleção do Museu Imperial e agora está no centro de um debate sobre como abordar o legado de Gobineau e sua relação com o imperador brasileiro.
Museu Imperial/ Divulgação\ Texto descritivo da escultura, no Museu Imperial
Em 1879, o escritor francês Arthur de Gobineau criou a escultura “Mima” e a enviou ao imperador D. Pedro II, acompanhado de uma carta que revelava sua expectativa sobre a recepção da obra. “É impossível traduzir a impaciência com que aguardo notícias vossas para saber a impressão que a terá recebido. Não sei se já disse ao imperador que é uma ‘Mima’”, escreveu Gobineau. Ele descreveu a figura como uma atriz burlesca de expressão melancólica, contrastando com o papel de diversão que desempenhava como escravizada asiática.
D. Pedro II respondeu com entusiasmo: “A 'Mima' já está colocada sobre o seu pedestal. Ela muito me agrada. [...] A magreza de seus braços e de suas pernas indica a sua condição, mas eu acharia talvez os seios um tanto desenvolvidos.” Em nova correspondência, Gobineau explicou que a obra não era inspirada em uma memória ou retrato, mas em uma ideia abstrata de tristeza e servidão.
A relação entre Gobineau e o imperador traz à tona debates complexos sobre as ideias racialistas do francês e seu impacto no Brasil. Gobineau defendia a teoria da superioridade racial, mas, como destaca o biógrafo Paulo Rezzutti, D. Pedro II se distanciava das noções extremas do conde. O imperador, conhecido por seu interesse pelas ciências e pela abolição da escravidão, questionava os aspectos absolutos da doutrina racial defendida pelo amigo.
Ainda assim, teorias racistas permeavam a elite brasileira da época, manifestadas em projetos como o incentivo à imigração europeia para o “embranquecimento” da população. Rezzutti ressalta que a convivência do imperador com intelectuais negros, como Machado de Assis e os irmãos Rebouças, contradiz quaisquer acusações de adesão às ideias de pureza racial.
O debate sobre a obra “Mima” permanece vivo, especialmente após uma publicação recente do Museu Imperial no Instagram. A intervenção temporária que encobre a estátua trouxe questionamentos sobre a representação da escravizada e sua relação com o racismo estrutural da época.
Para historiadores como Paulo Henrique Martinez, a iniciativa é um passo importante. “Um museu deve ir além de ser uma vitrine estática, levantando discussões que estimulem o pensamento crítico e a compreensão ética da história”, afirma ele. Já Rezzutti alerta para interpretações simplistas que possam distorcer o contexto histórico, associando D. Pedro II às ideias racistas de Gobineau.
O debate continua, com a obra e sua história servindo como ponto de partida para reflexões sobre a escravidão, o racismo e o papel das instituições culturais na preservação e reinterpretação do passado.
Museu Imperial/ Divulgação\ Escultura coberta por tecido foi feita por Gobineau, considerado um dos pais da teoria pseudocientífica que justificaria a supremacia racial branca
Rezzutti também levanta questionamentos sobre os desdobramentos dessa linha de discussão e a possibilidade de que outras peças do acervo venham a ser analisadas sob o mesmo prisma crítico. Ele destaca como exemplo a coroa imperial, cujos diamantes foram extraídos de minas utilizando mão de obra escravizada. “Definitivamente, se a linha de discussão seguir por esse caminho, faltará pano, não apenas para o Museu Imperial”, observa.
O biógrafo também menciona o Museu Nacional de Belas Artes, que, segundo ele, abriga “a obra de arte brasileira mais racista da história”. Trata-se da pintura "A Redenção de Cam", do espanhol Modesto Brocos, que retrata três gerações de uma família. Na obra, uma avó negra ergue os braços aos céus em um gesto de agradecimento pelo fato de seu neto ter nascido branco.
Essa análise evidencia como diversas expressões artísticas e objetos históricos carregam marcas do contexto social e ideológico de suas épocas, reforçando a importância de debates críticos e contextualizados sobre o passado.
Domínio Público\ Tela 'A Redenção de Cam', de 1895
No caso da escultura "Mima", um documento elaborado pela socióloga Fraguas aponta limitações na ficha técnica da obra. Segundo o texto, ela descreve apenas as características físicas do objeto, mencionando o autor como “Joseph Arthur, conde de Gobineau, escultor, escritor, diplomata, historiador e poeta”. Contudo, o documento critica a omissão de um aspecto relevante: Gobineau foi também o autor do controverso Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas, publicado entre 1853 e 1855, obra que é um marco do racismo pseudocientífico e que influenciou teorias arianistas posteriormente associadas ao nazismo.
O diretor do Museu Imperial, Ferreira Júnior, reforça que a discussão sobre a escultura está apenas começando. “O Museu Imperial tem procurado abordar novos problemas, objetos e abordagens em suas reflexões. O tema do racismo, por exemplo, está sendo tratado por meio de um curso de letramento racial para todos os funcionários, com o objetivo de elaborar um manual de práticas antirracistas. Além disso, estamos preparando uma exposição sobre a memória negra no acervo do museu, prevista para 2025”, afirma.
Sobre a cobertura temporária da peça, Ferreira Júnior esclarece que o intuito não é “apagar” ou “esconder a história”, mas promover a reflexão. “Cobrir a escultura é um ponto de partida. A ideia é remover o tecido em um ato simbólico, junto à instalação de uma nova legenda de apresentação que incorpore essas reflexões. Pretendemos concluir isso no início de 2025.”
Como parte da continuidade do debate, o museu realizará uma mesa-redonda sobre o tema no próximo dia 13. Ferreira Júnior conclui destacando que a proposta é transformar "Mima" de uma estátua “envergonhada” em uma obra “desvelada”, estimulando discussões mais amplas e profundas sobre o racismo e a memória histórica no Brasil.
Com informações de BBC News Brasil.
Foto de capa: Museu Imperial/ Divulgação\ Escultura Mima foi coberta com tecido no Museu Imperial
Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.