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Opinião

(Parte 2) A triste e comovente história da desindustrialização brasileira e a política cambial desalmada

(Parte 2) A triste e comovente história da desindustrialização brasileira e a política cambial desalmada

Artigo por RED
16/03/2024 05:30 • Atualizado em 18/03/2024 22:21
(Parte 2) A triste e comovente história da desindustrialização brasileira e a política cambial desalmada

De CARLOS ÁGUEDO PAIVA* e ALLAN LEMOS ROCHA**

São dois pra lá, dois pra cá.

Aldir Blanc, Falso Brilhante

 

  • Introdução

Este é o quarto artigo da nossa “saga” sobre a desindustrialização do Brasil. O primeiro foi uma espécie de “avant-première” do conjunto da obra que está por vir. O segundo artigo deveria corresponder ao “capítulo primeiro” do livro que almejamos publicar no segundo semestre desse ano. Porém, ele “não agradou a torcida”. Nove em cada dez leitores reclamaram do “abuso de economês”. Produzimos, então, uma nova versão do capítulo primeiro, reduzindo o escopo da discussão e apresentando alguns dos princípios da análise econômica da forma mais simples e didática possível. 

A função do “capítulo 1” era explicar porque concordamos com o ponto de vista da Escola de Campinas de que a industrialização brasileira só tem início a partir dos anos 30 do século passado. É que entendemos “industrialização” como um processo que leva à constituição de uma economia “plenamente industrializada”, envolvendo a internalização dos dois departamentos especificamente industriais: o produtor de bens de capital (máquinas, equipamentos e insumos de produção) e de bens de consumo duráveis. O terceiro departamento – produtor de bens de consumo não duráveis, de subsistência – é tão antigo e tão difundido quanto o tempo e o espaço. O fato de sua produção assumir uma “forma industrial” – com a utilização de máquinas e trabalho assalariado – não é suficiente para que a economia possa ser caracterizada como “industrializada”. Se houver qualquer dúvida sobre esses pontos, pedimos ao leitor retome nossa última publicação

O artigo atual trata de três pontos. Em primeiro lugar, procuraremos apresentar as particularidades do Departamento de Bens de Capital (D1) que o tornam uma medida de desenvolvimento capitalista. Na sequência, apresentamos os traços mais gerais do processo de industrialização brasileira entre 1930 e 1980, com ênfase nos seus desafios e insuficiências. Por fim, faremos a crítica do senso comum que atribui as idas e vindas do nosso processo de industrialização à falta de cultura “inovatista” do empresariado nacional e à incompetência e falta de vontade política dos gestores públicos.

  • A Indústria e o Modo de Produção Especificamente Capitalista 

De acordo com Marx, é a grande indústria, vale dizer, a máquino-fatura, que dá origem ao modo de produção especificamente capitalista. O que vem a ser isso?

Para Marx, a Era do Capital tem origem com a Idade Moderna, caracterizada pela Revolução Comercial, pela emergência das manufaturas e do Estado Absolutista e Mercantilista. Na nova ordem, a medida de poder já é a riqueza avaliada em dinheiro, o que move o sistema produtivo é a busca do lucro, e a principal função do Estado passa a ser a preservação do sistema de valorização. Não obstante, a fragilidade da valorização capitalista pré-industrial manifesta-se justamente na dependência do Estado, que outorga monopólios, regula a concorrência, administra o mercado de trabalho, etc. Sem o Estado, a valorização não se sustenta. Por quê? 

Porque a manufatura opera com circunscrições crônicas de oferta e o comércio mundial com circunscrições crônicas de demanda. A produção e a produtividade na manufatura são função do número de horas trabalhadas e da competência técnica dos trabalhadores. A manufatura (como o artesanato) emprega um trabalhador qualificado, cuja oferta é limitada e cujo poder de barganha é grande. De outro lado, a valorização especificamente mercantil está baseada no “comprar barato e vender caro”. Quanto maior o número de mercadores (e países) atuando no comércio internacional de especiarias, tecidos e escravos, mais cara a sua aquisição e menores seus preços de venda. O que leva à queda da rentabilidade de um negócio cujos riscos (por naufrágio, motim, pirataria, etc.) são, em si mesmo, extraordinariamente elevados. Cabe ao Estado outorgar monopólios, conceder subsídios, ampliar a oferta de mão de obra, cercear os direitos tradicionais dos trabalhadores, ampliar o mercado e generalizar a ordem mercantil. Tarefas árduas para um Estado que sequer é especificamente burguês.

Com a emergência da máquino-fatura na segunda metade do século XVIII a produtividade do trabalho cresce exponencialmente e os preços relativos dos bens produzidos no novo sistema caem sem que a taxa de rentabilidade do capital seja deprimida. Pelo contrário: com a queda dos preços dos bens salários e a simplificação do trabalho, a oferta de mão de obra aumenta e os salários caem muito mais que os preços dos bens finais. Simultaneamente, os problemas de demanda são enfrentados através da conquista do mercado mundial pela produção industrial do centro. O que isso significa?

Significa dizer que a emergência do modo de produção especificamente capitalista é indissociável da emergência do Departamento Produtor de Bens de Capital. É o D1 que põe o capitalismo “em pé” e que permite que esse sistema passe a andar (e a correr) com as próprias pernas. 

Por que, então, este Departamento não emerge nos primórdios da “Era do Capital”, mas dois séculos e meio mais tarde? Seria por carência de conhecimentos técnico-científicos? Não. Esta interpretação culturalista (falta cultura, falta conhecimento) e tecnicista (as hard sciences é que movem o mundo) é simples, confortável e …. equivocada. Na verdade, a maior parte dos conhecimentos necessários à construção dos sistemas de máquinas da Revolução Industrial já existiam desde a Antiguidade. Os avanços que ocorreram – como a produção de aço resistente a altas temperaturas e a construção de pistões e peças capazes de operar com um mínimo de atrito e um máximo de aderência – foram de ordem empírico-experimental. O problema era de outra ordem. Antes do capitalismo, não havia motivo para poupar trabalho: o poder e a riqueza de um senhor eram medidos pela extensão de suas terras e pelo número de pessoas a seu serviço. E nos primórdios da Era do Capital, quando o trabalhador já é percebido como um custo, sua substituição por máquinas só é viável se o novo sistema for muito mais produtivo, pois ele carrega consigo um novo padrão de risco. Segundo David Landes: 

The technological changes that we denote as the ‘Industrial Revolution’ implied a far more drastic break with the past than anything since the invention of the wheel. On the entrepreneurial side. They necessitated a sharp redistribution of investment and a concomitant revision of the concept of risk. Where before, almost all the costs of manufacture had been variable – raw material and labour primarily – more and more would now have to be sunk in fixed plant. The flexibility of the older system had been very advantageous to the entrepreneur: in time of depression, he was able to halt production at little cost, resuming work only when and in so far as conditions made advisable. Now he was to be a prisoner of his investment, a situation that many of the traditional merchant-manufacturers found very hard, even impossible, to accept

É impossível sobrevalorizar o problema do “risco da imobilização” apontado por Landes como determinante do gap entre Revolução Comercial e Industrial. Mas é preciso se precaver de uma interpretação superficial de sua tese: a aversão à imobilização de capital não foi superada por uma “revolução cultural” marcada pela emergência de um “novo empresariado, avesso ao tradicionalismo e aberto à inovação”. Na verdade, todos os teóricos da dinâmica econômica especificamente capitalista baseiam suas interpretações exatamente nesse problema. Marx e Keynes nos lembrarão repetidas vezes que a acumulação de capital não ocorre apenas na esfera produtiva: sempre que possível, os empresários privilegiam a acumulação na esfera financeira. Schumpeter argumentará que a aversão à imobilização só pode ser superada pela expectativa de lucros extraordinários associados a inovações produtivas. E Kalecki vai defender a tese de que a ampliação do estoque de capital num determinado ano opera como freio à acumulação produtiva no ano subsequente pelo temor da imobilização excessiva.

Não podemos detalhar aqui essas distintas teorias do investimento e da dinâmica capitalista. Mas parece-nos oportuno fazer um breve resgate da leitura de Keynes, pois ela foca exatamente no problema apontado por Landes. 

Keynes apresenta os fundamentos de sua análise dinâmica no capítulo 12 de sua Teoria Geral. Segundo o autor, o investimento em capital fixo envolve uma aposta com relação ao futuro que não é passível de cálculo racional. Investir é ampliar a capacidade produtiva, é adquirir novas máquinas e equipamentos duráveis. Quão duráveis eles são? …. Nem isso se pode asseverar de antemão. Tudo depende dos dispêndios com manutenção. Mas esses dispêndios podem ser rentáveis ou não.

 Imagine que um empresário qualquer decida ampliar sua capacidade produtiva e adquira várias máquinas que, com uma boa manutenção, podem se manter produtivas por mais de uma década. Não obstante, é possível que ao longo desse período surjam máquinas capazes de cumprir a mesma função a um preço significativamente inferior. Se isto ocorre, a máquina já adquirida perde valor imediatamente. Quem quereria adquirir uma máquina usada e defasada? Imagine, ainda, que as novas tecnologias associadas às máquinas mais modernas ampliem a produtividade de tal forma que o empresário que adquiriu o maquinário defasado veja-se obrigado a adotar os novos sistemas. Nesse caso, sua máquina “seminova” vira sucata. E o capital empatado vira pó. Um “pó” que será tão maior quanto maiores tiverem sido os dispêndios com manutenção. 

Mas esse é só o início do problema. A decisão de ampliar a capacidade produtiva envolve a expectativa de que a empresa se deparará com uma demanda superior à atual. Imaginemos que o nosso empresário atue no setor calçadista. Ora, calçado é um produto de demanda de massa. Para que a demanda de calçados se amplie é preciso que a massa de salários se amplie. Mas como é que se pode prever o nível de emprego e a taxa de salário nos próximo 5 ou 10? Que política salarial estará em curso? O governo será de esquerda ou de direita? Haverá uma nova reforma trabalhista? Como o progresso técnico impactará o emprego e os salários globais? 

Sejamos “otimistas”: imaginemos que o poder de compra da população aumentará e a moeda nacional ficará mais forte. Suponhamos que o câmbio atual é de 5 reais por 1 dólar. Suponhamos que o calçado chinês masculino padrão ingresse no país por aproximadamente 20 dólares. Ora, se eu consigo produzir e vender um calçado similar por R$ 80,00, eu tenho uma vantagem competitiva sobre o sapato chinês, que custará R$ 100,00 em moeda nacional. Mas e se a taxa de câmbio passar para 3 reais por 1 dólar? O calçado chinês será vendido a R$ 60,00. E se a produtividade do trabalho na China aumentar? E se o governo chinês subsidiar as exportações? E se todos estes fatores vierem a ocorrer simultaneamente? Nesses casos, até pode ocorrer uma elevação da massa salarial no país, mas não haverá ampliação de demanda sobre a minha firma. 

Agora junte todas as variáveis que devem ser levadas em conta: aceleração do progresso técnico, desemprego, queda da massa salarial, valorização do real, política chinesa de apoio às exportações, aumento da produtividade no exterior, etc., etc., etc. Qual a conclusão? A conclusão é de que investir é um tiro no escuro. Não há a menor possibilidade de se fazer um cálculo atuarial rigoroso acerca das chances (e riscos) de uma determinada decisão de investimento vir a ser lucrativa ou não. 

A conclusão que Keynes extrai de seu modelo teórico é de que as aplicações financeiro-especulativas – empréstimo a juros, compra e venda de títulos e ações, compra e venda de divisas estrangeiras, de bens imóveis, etc. – são capazes de garantir um ganho líquido maior. Não porque os rendimentos obtidos sejam necessariamente maiores. Os ganhos não se reduzem aos rendimentos; também dizem respeito à segurança e liquidez das aplicações. Os rendimentos de aplicações financeiras podem ser inferiores, superiores ou equivalentes aos ganhos de aplicações produtivas. Mas a liquidez e a segurança compensam eventuais diferenças de rentabilidade. E este já é um ponto crucial para nós: ao contrário do que muitos analistas da economia brasileira pretendem, a preferência por aplicações financeiro-especulativas não é uma característica “cultural” do empresário brasileiro. Esta preferência é natural, se o objetivo do investidor for a maximização de seus benefícios globais. A questão que se coloca não é a de tentar entender porque o empresariado brasileiro privilegia inversões financeiro-especulativas. Num país onde as taxas de juros são exorbitantes, esta é a opção mais racional. A questão que se coloca é porque ainda há empresários que investem na produção. 

A conclusão a que Keynes chega é de que, sempre que o grau de incerteza com relação ao futuro aumenta – por exemplo: véspera de uma eleição presidencial indefinida com candidatos de campos políticos muito distintos, guerra prolongada dentro das fronteiras da Europa e no Oriente Médio (com riscos de se transformar em um conflito mundial), aceleração do progresso técnico e da concorrência entre as potências imperiais – os empresários tendem a postergar os investimentos produtivo e a privilegiar a aplicação financeira dos lucros. O problema é que se “muitos postergam” os investimentos, a demanda por máquinas e por material de construção cairá. Assim como a demanda por aço, cimento, minério de ferro, cobre, fiação, etc. O que leva ao desemprego nestas atividades, à queda da massa de salário e à elevação da capacidade ociosa nos setores que produzem bens salário. E a economia entra em crise. 

Mas se o investimento produtivo em qualquer setor é uma decisão de alto risco, o investimento em na produção de máquinas e equipamentos (D1) é ainda mais arriscado. Por quê? Por dois motivos. Em primeiro lugar, porque a demanda sobre firmas do D1, a demanda de Investimento, apresenta uma instabilidade muito maior do que a demanda por bens de consumo. Em segundo lugar porque o D1 é o núcleo do progresso técnico capitalista. Não importa se o progresso tecnológico é do tipo supply push (quando são as firmas ofertantes de maquinário que introduzem as inovações) ou demand pull (quando são as firmas demandantes dos equipamentos que fornecem as especificações do maquinário que necessitam). Qualquer que seja a hipótese, o produtor de máquinas e equipamentos deve estar up to date com o progresso técnico e introduzir as inovações necessárias à fidelização de sua clientela antes que o concorrente o faça. E isso envolve dispêndios elevados e permanentes com P&D, bem como a sistemática transformação da linha de produtos e dos sistemas de produção. 

O que nos coloca diante da questão crucial: por que um empresário industrial decide ingressar na produção de maquinário? O risco de imobilização é universal. Mas ele é tão mais expressivo quanto maior a probabilidade de flutuações de demanda e da depreciação acelerada de parte dos investimentos realizados anteriormente (em máquinas, sistemas de produção, P&D, treinamento de mão de obra, etc.). O que leva alguns empresários a optarem por um nicho de atividade tão complexo e arriscado? 

A resposta a esta pergunta não é a mesma nos países centrais, que ingressaram na etapa industrial a partir da construção, em simultâneo, dos três departamentos industriais, e nos países periféricos e retardatários. O processo no centro foi estimulado por demandas internas e externas crescentes de produtos manufaturados e pela incapacidade de atender plenamente à demanda em expansão dentro dos padrões de produção manufatureiros. Mais: os riscos do ingresso na produção de maquinário nos países centrais eram minimizados pelo fato de que, para além da demanda interna, o investidor podia contar com a uma demanda externa crescente, na medida em que o padrão industrial de produção se globalizava. 

A situação da periferia é muito outra. A transição para a produção industrial na periferia ocorreu num momento em que as economias centrais já contavam com Departamentos 1 plenamente constituídos. Mais: se dá num momento em que o capitalismo mundial transita de sua forma liberal competitiva para sua forma imperialista e monopolista. Competir com as empresas produtoras de máquinas e bens de produção dos países centrais não significa “apenas” concorrer com empresas que já percorreram a longa curva de aprendizagem e contam com amplas vantagens de escala. Significa concorrer com empresas que contam com o apoio de seus Estados Nacionais Imperialistas na proteção de suas empresas e promoção de suas vendas. 

Como se isso não bastasse, nos sistemas de produção especificamente industriais, a qualidade (real e imputada) dos produtos vendidos é indissociável do sistema de máquinas utilizado. Para que se entenda esse ponto, vamos nos servir de um exemplo heurístico. Imagine que você é um empresário nacional que produz tecidos e que, após observar com atenção as máquinas importadas, chegou à conclusão que cada um de seus componentes poderia ser feito por firmas (de padrão artesanal ou manufatureira) nacionais, e que a montagem dos componentes poderia ser feita pela sua equipe de manutenção. O tempo para obter o conjunto de peças, não será desprezível e seus custos, provavelmente, serão maiores do que os projetados, tendo em vista a pequena escala de operação das firmas fornecedoras, as tentativas mal sucedidas e o desperdício de material associado a estes. Mas, ao fim e ao cabo, você alcança obter o conjunto de peças e monta a máquina “similar”. Ao operá-la, contudo, você descobre que o encaixe das peças não é perfeito e a máquina produz tecidos fora das especificações. Novos ajustes são necessários, ampliando os custos de sua produção. Quando, finalmente, a máquina está “perfeita”, você descobre que seus concorrentes estão utilizando máquinas mais modernas e eficientes do que a sua. Se a experiência for repetida, muito provavelmente o resultado será o mesmo: o equipamento nacionalizado sairá mais caro que o previsto e você estará sempre “um passo atrás” de seus concorrentes e colocando em risco a reputação de seu produto. Simplesmente, não vale a pena.

Alguém poderia criticar o exemplo acima pretendendo que ele está referido a indústrias tradicionais, e não corresponde ao que se passa nas indústrias high tech. Será mesmo? … Imagine que você é o acionista majoritário de um complexo hospitalar que vem se deparando com significativa ampliação de demanda. E é possível prever com segurança que ela continuará crescendo em função do SUS: é o Estado provendo a confiança necessária para estimular o investimento. Seu hospital conta com dois tomógrafos da marca Philips Healthcare de ótimo desempenho e você decide adquirir mais um. Mas um dos seus sócios lhe informa que a Companhia de Componentes Eletrônicos (CCE) ingressou na produção de tomógrafos no Brasil e seus preços são 20% inferiores aos da Philips Healthcare. Que aparelho você prefere? O tomógrafo mais bem avaliado do mundo ou um similar nacional? 

Imagine, agora, que você é o dono da CCE. Seu tomógrafo utiliza um amplo conjunto de circuitos integrados. A Philips Healthcare utiliza microchips da taiwanesa TSMC. Mas a CEITEC voltou a operar como fábrica e está produzindo circuitos integrados similares pela metade do preço dos sistemas da TSMC. Qual deles você vai preferir? Quais as consequências previsíveis de sua opção para a reputação e as vendas de seu tomógrafo?

Mais um exemplo: você acaba de ganhar o prêmio máximo da maior loteria do mundo e recebeu um bilhão de dólares. Apresentam-se três alternativas de investimento à sua frente: 1) aplicar 20% do valor em títulos da dívida pública brasileira, 20% em ações da Petrobrás e 60% na aquisição de terras na fronteira agrícola brasileira e em equipamentos para a produção de soja; 2) construir uma fábrica nacional de tomógrafos; 3) construir uma fábrica nacional de microchips e circuito integrado. Qual a opção lhe proporciona maior segurança, liquidez e rentabilidade prospectiva? … A pergunta é retórica. A primeira opção é, indubitavelmente, a mais segura, líquida e rentável. Mais uma pergunta retórica: você optou pela primeira alternativa por que lhe “falta cultura inovadora” ou por que lhe “sobra senso de realidade”?

  • Industrialização e a desindustrialização brasileira: uma visão geral

3.1 A era Vargas e o protagonismo do Estado 

O processo de industrialização brasileira no sentido rigoroso do termo tem origem na crise de 29 e no forte estrangulamento da capacidade de importar derivado da crise da economia cafeeira. A moeda nacional desvalorizou-se 55% no biênio 1930-31 e o valor das importações em 1932 foi de aproximadamente 40% do valor importado em 1928²

Mas este é apenas o ponto de partida da industrialização. Se o governo instalado em 1930 optasse por liberar a taxa de câmbio parcela não desprezível das parcas divisas seria canalizada para a aquisição de bens de consumo de luxo. Por oposição, o novo governo adotou um rígido controle de câmbio, cerceando a importação de bens supérfluos, de bens que contavam com similares nacionais, e de equipamentos para setores de atividade com capacidade ociosa. Por oposição, liberava a importação de equipamentos para setores com demanda superior à capacidade de oferta, privilegiando os elos mais frágeis das cadeias produtivas mais empregadoras e/ou capazes de produzir bens capazes de deprimir a demanda de importação com taxas de câmbio inferiores ao mercado livre. Este subsídio cambial era viabilizado pela aquisição de um terço das divisas geradas pelo café a preços abaixo do mercado. Além disso, o governo passou a operar com déficits crescentes associados às políticas de valorização do café (baseadas em estocagem e destruição), ao refinanciamento das dívidas agrícolas e à sustentação do sistema bancário por um novo sistema de redesconto. Os déficits eram financiados por emissão monetária e/ou por pagamento de credores com títulos da dívida pública de aceitação impositiva. 

A nova política econômica foi extraordinariamente bem sucedida. A despeito do choque externo, a queda do nível de atividade em 1930 (-2,1%) e 1931 (-3,3%) foi discreto. E entre 1932 e 1939 a economia passou a crescer de forma significativa (em torno de 8% a.a.), puxada pelo crescimento da indústria. Ao final desse período, a participação das importações na oferta interna havia caído de 45% para 20%. Não obstante, a dependência de importações de equipamentos ainda era notável. Por quê? 

Primeiramente, é preciso entender que cada setor de atividade se depara com desafios distintos ao ingressar num processo substitutivo. A indústria da construção civil, por exemplo, sempre contou com uma parcela importante de atividades e produção de insumos dentro do país; o que facilita o ingresso naqueles elos dependentes de importação. De forma menos intensa, a substituição também ocorreu nos setores de borracha, metalurgia, mecânica, papel e insumos químicos básicos: todos cresceram acima da média da indústria. Além disso, diversas firmas produtoras de bens de consumo diversificaram e sofisticaram suas linhas de produção. E, de forma geral, as empresas voltadas à manutenção de equipamentos industriais passaram a produzir peças para máquinas e, eventualmente, similares nacionais de máquinas mais simples. Por que, então, a dependência de importados do D1 persistia? Em primeiro lugar, porque o próprio processo de diversificação produtiva levava à ampliação da demanda por máquinas, equipamentos e insumos. Uma das características da industrialização por substituição de importações é que o ingresso em novos setores de atividade impõe novas pressões de demanda sobre bens importados, pois as firmas que passam a ofertar estes bens precisam adquirir insumos e equipamentos disponíveis apenas no exterior. 

Por fim, há um elemento de expectativa que freia o ingresso em certas atividades do D1: a expectativa dominante nos anos 30 era de que o Brasil e o Mundo viviam uma situação de excepcionalidade e tudo voltaria a ser como dantes; vale dizer: o estrangulamento externo desapareceria e o Brasil voltaria a ser um país exportador de matérias-primas. Nesse caso, investir em firmas voltadas à produção de máquinas e insumos industriais de alta complexidade (como aço, motores elétricos, motores a combustão interna, material de transporte, petroquímica, etc.) seria completamente irracional. O empresariado só poderia ingressar nesses setores se contasse com sólidas garantias de que a produção de similares nacionais seria privilegiada e as importações seriam cerceadas por barreiras tarifárias e/ou cambiais

Ocorre, porém, que o governo Vargas não tinha qualquer condição de conceder tais garantias. E isso porque ele governava em um regime de exceção que enfrentava pesada oposição da elite apeada do poder em 1930. A expectativa difundida entre os membros da elite empresarial era de que, após a II Guerra, Vargas seria apeado do poder, juntamente com sua política industrialista. 

Sem poder contar com a iniciativa privada para enfrentar adequadamente os amplos gargalos de oferta no D1, Vargas vai mobilizar a capacidade financeira e de assunção de riscos do Estado, que passa a atuar em atividades industriais. Ainda em seu primeiro período no poder, Vargas cria o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (1937), a Companhia Siderúrgica Nacional (1941), a Companhia Vale do Rio Doce (1942), a Fábrica Nacional de Motores (1942), a Companhia Nacional de Álcalis (1943) e a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (1945). Em sua segunda gestão cria a Petrobrás (1943) e a Eletrobrás, consagrando o protagonismo do Estado enquanto agente produtivo dentro do emergente Departamento 1 da economia brasileira. 

No plano estritamente econômico-produtivo, a nova política será extremamente eficaz. Mas, contraditoriamente, ela ampliará o leque de opositores a Vargas no estrato superior da sociedade. Por quê?

Porque ao longo do período que Vargas hegemonizou a política nacional (de 1930 a 1954) o controle público-estatal sobre os preços definidores da rentabilidade capitalista se tornou cada vez maior e mais discricionário. Vargas não apenas administrava a taxa de câmbio, mas a diferenciava com vistas a subsidiar setores específicos às custas do principal setor exportador. Sua política fiscal não era apenas heterodoxa: os déficits expressivos vinham acompanhados da elevação da carga tributária sobre bens de consumo, sobre a renda, sobre combustíveis e lubrificantes, dentre outros. Além disso, criou o Ministério do Trabalho, a CLT, o imposto sindical, o salário-mínimo e passou a regular os sistemas de previdência privada (montepios), muitos dos quais passaram a ser administrados pelo Estado. 

No plano financeiro, Vargas ampliou o poder de regulação do Banco do Brasil com a criação da Caixa de Redesconto, voltada ao refinanciamento dos bancos privados afetados pela crise, e com a Carteira de Crédito Agrícola e Industrial, que ofertava crédito de médio e longo prazo. Com esses movimentos, cresce a participação do BB no mercado financeiro, passando a ser a referência na determinação da taxa de juros de empréstimos. Simultaneamente, a Caixa Econômica Federal volta a realizar empréstimos sob penhor a taxas de juros muito inferiores às práticas pelo sistema financeiro privado. E em seu segundo governo, criará o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, com funções de financiamento de longo prazo (com foco na produção industrial) e de apoio ao planejamento público. É no BNDE que ficará sediada a Comissão Mista Brasil-Cepal, responsável pela produção da primeira versão do Plano de Metas.

Em suma: ao longo dos 19 anos de gestão Vargas, o Estado passou a ser o agente definidor dos valores das quatro principais variáveis macroeconômicas (juros, salários, câmbios e impostos), dos preços dos insumos produtivos básicos (combustíveis, energia elétrica, minério de ferro, aço, insumos químicos e motores) e o grande investidor da economia (na área de infraestrutura) e, por extensão, definidor das regiões que seriam privilegiadas (ou não!) no provimento de estruturas logísticas eficientes e competitivas. Ainda mais grave: os preços de oferta dos bens e serviço sob controle do Estado não eram uniformes. O governo administrava e diferenciava as taxas de câmbio, as taxas de juros, as alíquotas de impostos e até mesmo o preço dos insumos universais (energia elétrica, aço, combustíveis, etc.) com a intenção de promover – ou não! – a rentabilidade e o crescimento acelerado deste ou daquele setor. Não é difícil entender porque esta concentração de poder foi considerada “inadequada” pelos diversos estratos da burguesia nacional e estrangeira que o apearam do governo duas vezes: uma “pela democracia” e outra “contra a corrupção”.

3.2. Do Plano de Metas ao II PND: a industrialização assentada no tripé

O Governo JK tem início numa conjuntura de grande tensão. O suicídio de Vargas amainara, mas não extinguira, o afã golpista. Ao hipertrofiar os tentáculos do Leviatã Tupiniquim e construir um discurso político e um sistema de alianças complexo e errático, Vargas jogou uma parcela expressiva da burguesia industrial (que ele tanto apoiara) nos braços dos liberais saudosos da República Oligárquica. JK era visto como seu sucessor de fato, e só alcança tomar posse porque o Marechal Lott dá um golpe preventivo ao golpe armado por Carlos Luz, Presidente em exercício. Esse quadro deixava evidente que o Plano de Metas (PM) que a Comissão BNDE-Cepal havia montado no governo anterior teria que sofrer alguns ajustes para garantir uma maior participação do capital privado no processo de industrialização. E a história ofereceu o ajuste necessário. 

Vimos acima que a maior parte das firmas privadas nacionais que ingressaram em atividades do D1 na “Era Vargas” o fizeram de forma marginal: produzindo peças e componentes para os equipamentos antes importados. O ingresso nessas atividades era de baixo risco, pois sempre serão necessárias peças de reposição. Contudo, algumas empresas deram passos maiores. A FNM sobreviveu à tentativa de privatização de Dutra, e buscou apoio da Alfa-Romeo italiana para produzir caminhões, que passam a circular antes mesmo da posse de Vargas para seu mandato final. Enquanto isso, a Romi, uma pequena indústria de tornos do interior paulista, avalia que a demanda para tratores é grande o suficiente para enfrentar o risco do ingresso na área e passa a produzir um protótipo do trator alemão Lanz com apoio tecnológico da matriz no final dos anos 40. Mais: entra em contato com a Isetta italiana (logo adquirida pela BMW alemã) e começa a produzir uma versão nacional do “carro de uma porta só”, que é lançado à venda em 1956. Enquanto isso, em Horizontina nasce uma empresa ímpar: a SLC. Já em 1947, a empresa produz e comercializa suas primeiras trilhadeiras, movidas a tração animal. Poucos anos adiante, lança alternativas de propulsão a motor. No início da década de 60 lançará a primeira colheitadeira motorizada da América Latina. 

Os casos acima são excepcionais. Mas não são únicos. O que importa é que começavam a emergir empresas dispostas a passos mais ousados com vistas a ocupar um mercado expressivo cuja demanda encontrava-se reprimida há muito tempo. E esses movimentos não passaram despercebidos nos países centrais; afinal a Alfa-Romeo, a Isetta e a BMW participavam de dois dos empreendimentos listados acima. Era correr ou perder a oportunidade. No imediato pós-guerra, o foco das empresas americanas e europeias era a sua reestruturação produtiva e financeira e o atendimento dos mercados centrais. Uma década depois, chegara o momento de distribuir plantas industriais, bens de qualidade e democracia mundo afora. Antes que a “indiada” se alçasse de pato a ganso. 

Estavam postas as bases do tripé: por injunções políticas, o  Estado precisava circunscrever sua própria participação e ampliar o espaço e protagonismo do capital privado no processo de industrialização; o capital nacional demonstrava competência técnica e exigia maior participação nos lucros da industrialização, mas se recusava a assumir os investimentos de maior risco; e o capital estrangeiro contava com a competência técnica, os recursos necessários e ansiava por ocupar um país periférico de grande mercado atual e potencial e que vinha se industrializando de forma autônoma. Em termos de funções e setores de atuação, o Estado continuará ocupando os nichos abertos por Vargas, mas não deve transcende-los. A divisão do trabalho entre capital privado nacional e estrangeiro é um pouco mais complexa. No modelo de JK e Jango, não há uma linha divisória clara, mas há uma sinalização: caberá ao capital estrangeiro articular o que se pode chamar de “núcleo” das novas cadeias produtivas. Este núcleo, no caso da indústria automotiva é a própria montadora do automóvel. Ao capital nacional caberá a ocupação dos inúmeros elos menores, a montante (produção de peças e componentes) e a jusante (transporte, distribuição e comércio de veículos). 

O PM estabelecia metas para um grande número de cadeias produtivas e setores de atividade. Mas, sem dúvida o “grande setor automotivo” – envolvendo carros de passeio, utilitários, ônibus, caminhões, tratores e “máquinas da linha amarela” (escavadeiras, máquinas de terraplanagem, etc.) – era o seu foco maior. O que não é gratuito: num país de dimensões continentais, com um potencial de produção agrícola e mineral ímpar, e com um mercado interno amplo, mas apenas parcialmente integrado, a aposta em “veículos e máquinas semoventes” é, por assim dizer, natural e impositiva. Mas a eleição do foco também contemplava o fato de que não poderia haver outro segmento produtivo em que – a princípio e teoricamente – o tripé funcionasse tão bem: o Estado produz aço e estradas; o capital privado produz os componentes mais diversos e vende o produto final; e o capital estrangeiro ocupa o centro do processo e aufere os maiores lucros.  É perfeito. Ou … quase. 

Entre 1956 e 1962, foram instaladas ou ampliadas plantas automotivas da FNM-Alfa-Romeo, da Romi-Isetta-BMW, da DKW-Vemag, da Volkswagen, da General Motors, da Scania Vabis, da Mercedes Benz, da Willys, da Ford, da Toyota, da Simca, da Renault, da Caterpillar, da Valmet, da Companhia Brasileira de Tratores e da Massey-Ferguson. Os investimentos maciços mobilizaram a construção civil nacional, as indústrias produtoras de autopeças, a produção de aço e minério de ferro e o comércio de veículos. O emprego gerado em todas estas atividades alavancou a demanda por bens salário, estimulando o emprego e os investimentos também nesse departamento. O Brasil parecia haver ingressado em um circuito positivo de causação circular cumulativa. Era o tal jogo ganha-ganha em operação; eram os nossos anos dourados. 

Mas não há mal que sempre perdure nem que bem que nunca se acabe. E os anos dourados findaram. Por quê? Porque a demanda reprimida por equipamentos e bens duráveis era expressiva, mas boa parte dela era uma demanda reprimida: eram anos de espera. Não se tratava de uma demanda anual corrente. Além disso, a principal característica dos bens duráveis é que eles …. duram. E a cultura nacional de anos de estrangulamento externo era a cultura da manutenção. De forma que, passados alguns poucos anos após a inauguração das primeiras plantas da “grande cadeia automotiva”, ficou claro que a capacidade produtiva instalada superava a demanda anual padrão. Os primeiros sinais de saturação do mercado emergem em 1962, com a inflexão da taxa de crescimento do PIB. E a economia entra em estagnação em 1963. O que dá origem a um novo problema. 

A atração das empresas estrangeiras se deu com a proibição da importação de veículos e equipamentos similares e com forte apoio fiscal, financeiro e cambial do governo federal. Livres da concorrência externa, amplamente subsidiados, operando em uma economia de salários baixos e frente a uma demanda reprimida, a taxa de lucro dos novos empreendimentos é elevadíssima. Quando as empresas se deparam com os limites do mercado, elas se veem diante de duas alternativas: ou remetem os lucros acumulados para suas matrizes, ou investem em outros nichos internamente. O problema é que as duas opções são política e economicamente insustentáveis. 

O ingresso de capital de risco não gerou reservas para o país, pois boa parte dos equipamentos das novas plantas foram adquiridos no exterior. Simplesmente não havia como converter em divisas os lucros acumulados internamente. De outro lado, reinvestir os lucros internamente envolveria ocupar os nichos da cadeia automotiva, como produção de autopeças e revenda. Mas estes eram justamente os nichos ocupados pelo capital nacional! Isso era inviabilizar o tripé!

A crise de 1963 apenas revelou o óbvio: o amigo que fora convidado para o baile como um aliado era, na verdade, um …. concorrente. E um concorrente bastante perigoso. … É esse o impasse que se abre no governo Goulart:  como reequacionar as relações entre os dois blocos de capital privado após o ingresso das ETs no país de Tupi. Goulart não só não resolveu o imbróglio, como colocou-se de costas para ele, voltando suas atenções para o povo. Os golpistas de 1964 vão tratar de equacioná-lo. Vejamos como.

O primeiro ponto enfrentado pelo Plano de Ação Econômica do Governo Castelo Branco (PAEG) foi justamente o problema da (re)divisão do espaço econômico das três pernas do tripé. Com base na identificação das competências e fragilidades estruturais da burguesia nacional e com base na legislação dos países centrais (que não poderiam se contrapor à replicação de suas normas no Brasil), o PAEG define três setores onde o capital nacional passaria a ter virtual exclusividade: 1) a Construção Civil; 2) o Sistema Financeiro; 3) a Produção Agropecuária. Ao Estado, a princípio, caberia a mesma fatia ocupada desde Vargas e JK, que agora ficam consagradas como “áreas de segurança nacional”. Por fim, o capital multinacional ficaria livre para ocupar qualquer espaço de mercado, resguardada a reserva de mercado do Estado e do capital nacional. O segundo eixo de mediação do conflito pelo governo militar é um princípio: crescimento a qualquer custo. A ideia é que se o mercado crescer a taxas anuais em torno de 7%, a reinversão no mesmo nicho de atividade esgota os fundos retidos e amina os conflitos interburgueses. 

Uma vez que o crescimento é condição de harmonia, caberá ao Estado impulsioná-lo através de investimentos nas atividades que “lhe cabem”. A ênfase inicial será a infraestrutura logística e a energia elétrica. Por quê? Porque ela promove a Construção Civil (nacional) e deprime os custos de produção e transporte do agronegócio (nacional) na fronteira agrícola do país. O financiamento dos investimentos públicos virá de um novo sistema financeiro (nacional), baseado na diferenciação entre juros reais e correção monetária (CM). Com este instrumento os títulos da dívida pública – as Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional – tornam-se atrativas como aplicações financeiras. Se os juros reais forem insuficientes, o governo vende seus títulos com deságio para os bancos (nacionais) autorizados a participar dos leilões. Além disso, a CM passa a valer para os depósitos de poupança da classe média e para os financiamentos na aquisição dos mais distintos ativos duráveis. A indústria automobilística (centro do tripé) agradecerá penhorada. Assim como o sistema financeiro (nacional). 

O problema é que a CM inercializa a inflação, contribuindo para sua preservação. Os mentores do PAEG buscam enfrentar esse problema por controle de custos. Quais custos? Os salariais, claro; que passam a ser reajustados por valores inferiores à inflação passada. Como se isso não bastasse, o governo acaba com a estabilidade no emprego e facilita os processos de admissão e demissão, acelerando a rotação de mão de obra. Os salários reais caem mais e a concentração de renda aumenta. Afinal, alguém tem que pagar a conta, não é mesmo?. Como prêmio de consolação, os trabalhadores receberão o FGTS; um fundo que pode ser resgatado em três circunstâncias: 1) aposentadoria; 2) demissão; 3) aquisição da casa própria. Os valores depositados e não resgatados são canalizados para o Banco Nacional da Habitação, que os direciona ao financiamento da construção de casas populares. Com uma única cajadada matam-se cinco coelhos: 1) apoia-se a expansão de todos os elos da construção civil (nacional), com ênfase em seus estratos menos capitalizados; 2) apoia-se a geração de emprego num setor que é a porta de entrada do trabalhador rural expulso do campo; 3) apoia-se o desenvolvimento e do sistema financeiro (nacional), com a emergência de novas instituições (como as sociedades de poupança e empréstimo); 4) enfrenta-se o sério problema de carência de moradia nas cidades em processo de inchaço; 5) oferece-se ao trabalhador o sonho da ascensão social via casa própria. … E ainda há quem diga que falta “cultura inovadora” para a elite Tupi. 

O Milagre Econômico entre 1967 e 1973 não é nada mais do que o desdobramento do PAEG, cuja plena implementação só se completa em 1966. Em 1974, porém, o sistema começa a fazer água. Por quê? 

São múltiplos os determinantes da crise do Milagre. O primeiro deles é a concentração de renda. A despeito da massa de salários haver crescido de forma sistemática com o crescimento do emprego, a queda de participação relativa dos salários na renda deprime o multiplicador dos gastos autônomos, e a produção e o emprego no departamento de bens salário cresce abaixo da média nacional; desestimulando os investimentos e a ampliação da capacidade produtiva em seu interior.  O segundo fator é aquele mesmo que deu origem à crise em 62-63: o novo sistema de crédito ao consumidor ampliou o mercado para automóveis e eletrodomésticos, levando à retomada da produção e das vendas nesse setor. Porém, o endividamento da classe média logo atingiu o teto, levando à saturação deste nicho de mercado. 

Mas os gestores da economia no governo Geisel e mentores do II PND (II Plano Nacional de Desenvolvimento, coordenado por Reis Velloso) vão perceber que “o furo da bala é ainda mais embaixo”. O problema maior era que o PM não havia completado a internalização do D1 na economia brasileira, e tanto o PAEG, quanto o I PND (da era Médici-Delfim), haviam imposto ajustes regulatórios, financeiros e fiscais ao sistema produtivo, sem alterá-lo significativamente. O resultado é que o Brasil continuava amplamente dependente da importação de insumos básicos (petróleo, petroquímica, minerais não metálicos processados, adubos e fertilizantes, papel e celulose, etc.), bem como de máquinas-ferramenta, embarcações, turbinas para a geração de energia elétrica e equipamentos para sua distribuição, dentre outros. Assim, parte dos estímulos de demanda eram canalizados para fora e o país não consegui sustentar seu crescimento, mas apresentava “ciclos curtos”, tão bem caracterizado pelo intenso e fugaz Milagre. 

O diagnóstico era correto e o II PND era um programa consistente. Mas no meio do caminho tinha uma pedra: o novo plano de industrialização é proposto e implementado em um momento de forte inflexão e crise da economia mundial. Ao final de 1973 o mundo vive a primeira crise do petróleo, que redunda em aceleração da inflação nas principais economias do globo; as quais adotam programas de ajuste recessivos, que se resolvem na depressão de suas importações. Ora, como qualquer outro programa de substituição de importações, em sua primeira fase o II PND envolvia uma demanda extraordinária de equipamentos e insumos do exterior para a instalação das novas plantas industriais. Os três componentes – novas demandas de importação, elevação dos preços do petróleo e queda do valor exportado pelo Brasil – levaram a um enorme déficit na balança comercial em 1974 e nos anos que se seguiram. 

De outro lado, os saldos comerciais positivos dos países exportadores de petróleo foram canalizados para o sistema financeiro internacional: sobrava liquidez e os juros dos empréstimos eram baixíssimos. Como resultado, os gestores do II PND optaram por desacelerar sua implementação, sem abrir mão de suas metas ambiciosas. De forma que II PND continuava em implementação nos primeiros anos da gestão Figueiredo. Quando ocorrerá um novo choque externo muito mais grave e com consequências muito mais severas para o Brasil do que a crise de 1973. A nova crise tem início com o segundo choque do petróleo em 1979. Entretanto, dessa vez a reação dos EUA será distinta: ao invés de permitir que os saldos comerciais dos países exportadores irrigassem o sistema financeiro internacional, o Banco Central norte-americano coloca a taxa de juros em patamares nunca dantes experimentados (com pico de 20,5% ao ano). Toda a liquidez mundial é sugada para os EUA e a rolagem da dívida dos países em desenvolvimento torna-se crescentemente inviável. Em 1982, o México entra em moratória. Logo adiante o Brasil se vê obrigado a pedir rolagem da dívida ao FMI; que impõe ajustes draconianos à economia.

Apesar de breve e pontual, parece-nos que o relato acima é suficiente para que nosso leitor compreenda porque o II PND ainda hoje é objeto de acerba controvérsia entre economistas de todos os matizes políticos. As posições vão desde “uma verdadeira obra-prima, que só não gerou todos os frutos esperados por sabotagem imperialista” até “um devaneio megalomaníaco fadado ao fracasso e responsável por todos os problemas da economia brasileira desde então”. Passando, claro, por diversas leituras intermediárias, mas nem por isso menos controversa e apaixonadas. 

Não obstante, há um elemento do II PND que não é objeto de controvérsia: o Plano impôs transformações na estrutura industrial brasileira que, em termos qualitativos e quantitativos, só encontram paralelo nas gestões de Vargas e JK. Ao final do segundo governo Vargas, a participação da Indústria de Transformação (IT) no Valor Agregado Bruto (VAB) do país girava em torno de 17%. Ao final do governo JK, esta participação havia subido 5 pontos percentuais, atingindo 22%. No auge do milagre, em 1973, a participação do IT ultrapassou, pela primeira vez, um quarto da economia nacional: 26,1%. E se manteve nesse patamar ao longo de todo o período de maturação do II PND. Em 1980, a participação da IT é de 26,2%. Essa participação mantém-se relativamente estável durante o primeiro quinquênio dos anos 80 e atinge o pico em 1986: 27,3%. Desde então, a participação da IT vem caindo ano a ano. Em 2023 ela foi 10,61%. 

Do nosso ponto de vista, longe de ser o responsável pela crise da década perdida (os anos 80) e pela desindustrialização que nos aflige há mais de três décadas, o II PND foi a última grande tentativa de alçar o Brasil ao patamar de um país desenvolvido e plenamente industrializado. E parte importante do (parco) dinamismo que nosso país ainda preserva e que nos garante audiência e respeitabilidade na ONU, no G-20 e nos BRICS advém da ousadia (se se quiser, sonhadora e megalomaníaca) desse projeto. 

  • A questão da cultura “avessa à inovação” do empresário brasileiro

Nosso objetivo na seção acima não foi propriamente a de narrar a história da industrialização brasileira, desde sua emergência nos anos 30, até seu ápice na entrada dos anos 80. Há uma ampla literatura sobre esse processo que pode ser pesquisada facilmente pelos interessados. Nós só queríamos trazer à luz à luz alguns aspectos que nos parecem cruciais para que se compreenda nossa recusa àquela leitura da desindustrialização que a deriva de duas “incompetências siamesas”: a aversão ao risco e à inovação, por parte do empresariado; e o despreparo intelectual, subordinação à ideologia neoliberal e falta de vontade política, por parte dos gestores públicos. 

Por oposição, tal como a lemos, a história dos “anos dourados” da industrialização brasileira é marcada, de um lado, por uma extraordinária vontade política, interpretação acurada e original da realidade nacional, e planejamento muito bem estruturado por parte dos gestores públicos; e, de outro lado, por grande disposição para assumir riscos, enfrentar desafios e inovar, por parte do empresariado nacional. Afinal, do ponto de vista que abraçamos acima, foram os agentes internos que capitanearam o processo de transformação tardia de uma economia agroexportadora periférica em uma economia plenamente industrializada ao longo de 50 anos de crises políticas e econômicas nacionais e internacionais. A “contribuição” (se é que podemos utilizar este nome) do capital estrangeiro e de seus governos foi mínima e tardia, sempre concedida com restrições e contrapartidas pesadas. Antes que o país alçasse voos mais altos e com plena autonomia. 

Mas se isso é verdade, então impõe-se uma pergunta: o que ocorreu com tanta competência e ousadia?  Onde elas estão? …. Ou, alternativamente: será que elas ainda se encontram (mesmo que “em potência”) entre nós, mas não emergem ao proscênio porque os desafios atuais são maiores do que os desafios enfrentados e superados de 1930 a 1980? E, se for assim, será que o problema de fundo não se encontra em nós? Será que não somos nós – os analistas críticos da realidade brasileira – que estamos nos mostrando incapazes de entender a complexidade do quadro econômico e político, de avaliar adequadamente os desafios com os quais nos deparamos e construir uma estratégia consistente e efetivamente inovadora de superação?

Haveria muito o que falar e escrever sobre esse problema. Mas já estouramos todos os limites de páginas, letras e caracteres definidos pelos editores. E não queremos estourar, também, a paciência do leitor. Pedimos, então, sua compreensão para irmos direto àquele que nos parece ser o ponto mais importante desse debate: a peculiaridade do risco e da incerteza empresarial em Terra Brasilis

Dentre todos os grandes intérpretes do Brasil, Raymundo Faoro parece ser o mais amado e incensado, mais odiado e criticado e o menos lido e compreendido.  A maior parte de seus “fãs” são liberais, que o leem como um crítico do Estado intervencionista e um defensor do Estado Mínimo. Se isso fosse verdade, teríamos de concluir que Faoro era esquizofrênico. Onde já se viu e ouviu um liberal radical que, além de ser apoiador do PT desde sua criação (ele chegou a ser convidado por Lula, mais de uma vez, para compor sua chapa à presidência), era crítico acerbo das privatizações de FHC, que ele caracterizava como um claro exercício de …. patrimonialismo. 

Para Faoro, o problema do Brasil não é excesso de Estado. É a falta dele. O problema é que os agentes públicos, os representantes maiores do Estado – o Judiciário, o Ministério Público, as Forças Armadas, as diversas Polícias, os representantes no Parlamento e, na maioria das vezes, os representantes no Executivo – não agem como representantes do público, mas de si próprios e de seus comparsas. Na Sociedade Civil isto é um direito. Pode até ser um mérito. Nos aparelhos de Estado, é uma vergonha. 

FHC foi um dos responsáveis por transformar Faoro num fantoche de si mesmo. É ele, FHC, que caracteriza o empresário nacional típico como um sujeito viciado em subsídio e proteção. Na verdade, FHC faz a crítica, ao mesmo tempo, do empresário e do Estado nacional. A tese de que o Estado é incompetente e o empresário não tem capacidade empreendedora – essa tese tão difundida e tão da moda – é 100% FHC. Na dúvida, leia sua tese de Livre Docência (O Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico no Brasil). Tem uma grande serventia: saber o que não se deve dizer para não ser confundido com o príncipe da privataria! 

A leitura de Faoro é muito outra. Faoro não vê um Estado protegendo (de forma quase submissa) um empresário indolente. Faoro sabe que é função do Estado Nacional Burguês proteger os empresários nacionais e alavancar sua competitividade no mercado mundial. O que empresta caráter patrimonialista ao Estado Brasileiro é exatamente o fato de que ele não faz isso. Ou, antes: faz. Mas de acordo com regras que não são especificamente burguesas. As regras burguesas afirmam que as empresas mais capitalizadas, mais competitivas, com maior projeção internacional, devem ser defendidas com mais empenho do que as empresas menores. Mas o Estado não deve servir igualmente ao capital? Sim. Sem dúvida. Mas o capital é quantidade. Onde há mais quantidade, há mais dever. Com uma exceção: se a disputa for entre uma empresa nacional outra estrangeira, o Estado nacional apoia a empresa nacional. …..  No mundo todo. Mas não no Brasil. 

A Romi foi a primeira empresa a produzir e a vender um automóvel de passeio no Brasil. Ele era tão inovador que tinha uma porta só. Após ele já estar em produção e venda, o Grupo Executivo da Indústria Automotiva resolveu que as empresas produtoras de veículos só fariam jus aos benefícios fiscais e financeiros do programa automotivo se os veículos produzidos tivessem duas portas ou mais! Não é muito azar, Xente? … Houve quem até dissesse que era retaliação contra a Romi. …. Magina! Foi azar da Romi que teve que fechar sua planta automobilística e desfazer a parceria com a BMW. E nóis!!!

Ah, dirão alguns leitores: mas essa história é muito antiga. O Brasil mudou. Sim, mudou muito. Para pior. Os três setores que o PAEG definiu como “território específico do capital nacional” foram a Construção Civil, o Agronegócio e o Sistema Financeiro. Durante o II PND, as obras “faraônicas” de Geisel levaram as construtoras nacionais a adquirirem renome internacional. Com apoio da Embrapa (criada no apagar das luzes do Governo Médici e alavancada durante o II PND), o agronegócio brasileiro tornou-se o mais competitivo do mundo. O Brasil passou a sediar a maior processadora industrial de proteína animal do mundo: a JBS Friboi. A resiliência de nosso setor bancário e financeiro foi duramente testada com o fim abrupto da inflação em 1994. Mas esse sistema se reergueu e assumiu novas formas, com os bancos múltiplos e de investimento ganhando nova projeção. Dentre os bancos brasileiros de novo padrão e expressão internacional, destaca-se o BTG-Pactual. 

Para conseguir as delações mínimas necessárias para encarcerar Lula, defender o golpista Temer e atender aos interesses das petroleiras norte-americanas e europeias boa parte dos empresários brasileiros seriam chamados de “heróis nacionais” em outros países – Marcelo Odebrecht, Leo Pinheiro, André Esteves e Wesley Batista – amargaram largos períodos na cadeia sem qualquer julgamento. Se isso for mesmo “estufa de empresário”, começo a ficar com medo do inferno. 

A estatização das dívidas das empresas privadas entre 1979 e 1984, ao longo do Governo Figueiredo é uma enorme caixa preta, que não esconde apenas bondades. Há, acima de tudo tratamento desigual. E esta tem sido a história do Brasil e do seu Estado desde a crise da Ditadura até o primeiro governo Lula. Lula e Dilma foram um interregno. De repente, o Estado parecia uma República. O impeachment de Dilma e a prisão de Lula por prevaricarem é uma piada de muito mau gosto. Eles foram apeados no poder pelo mesmo motivo de Getúlio e Jango: porque não prevaricam como de praxe. 

Que recado nós queremos dar com todas essas considerações? O recado é muito simples. Por favor, não simplifiquem. Se sua leitura do Brasil for simples, clara e distinta, há algo de errado nela. O Brasil não é para principiantes. 


*Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica e Professor do PPGDR-Faccat.

**Estatístico, Mestre em Planejamento Urbano e Regional e Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica.

¹ Landes, D. The Unbound Prometheus, Cambridge: Cambridge University Press, 1969, pp. 42/3.

²Marcelo de Paiva Abreu, Crise, crescimento e modernização autoritária: 1930-1945 (p. 74), In: Abreu, M. P. A Ordem do Progresso.

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