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Queimadas! [2]

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Queimadas! [2]
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Por JEAN MARC VON DER WEID Como este desastre ecológico continuado afeta cada um? Enquanto a fumaça não irrita os olhos, a garganta e os pulmões de crianças a idosos das zonas metropolitanas na ou próximas da costa brasileira parece que o fogo que devora milhões de hectares da vegetação de vários biomas não acontece neste país e sim em outro continente ou outro planeta. Estamos em plena crise ambiental e nem o governo, o Congresso, a imprensa e os candidatos ao próximo pleito municipal estão sensibilizados com a extrema gravidade da situação. Foi preciso que a cidade de São Paulo fosse classificada em primeiro lugar entre 120 do planeta com a pior qualidade do ar durante dias seguidos para que houvesse alguma reação, mesmo assim, ninguém (ou quase), fora do círculo estreito dos ambientalistas e cientistas está denunciando as implicações do mar de chamas para o futuro próximo do país e muito menos apontando as responsabilidades. As queimadas e desmatamento são algo corriqueiro e crescente no Brasil desde que os militares resolveram “integrar para não a entregar” a Amazônia, desde os anos 70 do século passado. Foram 200 milhões de hectares desmatados e queimados nos últimos 40 anos, desde que a ocupação das “novas fronteiras agrícolas” se acelerou. 73 milhões destes hectares se localizam na Amazônia. Em momentos de maiores incêndios cientistas e ambientalistas gritam, alguns deputados discursam, governos tergiversam e a imprensa especula. A opinião pública continua ignorando as causas e consequências destes fatos assustadores e dormindo em berço esplêndido, embora a lua e as estrelas (e até o sol) fiquem apagados ou opacos por um tempo pela fumaça. Comecemos pelos impactos deste prolongado processo de destruição. Queimadas e desmatamento estão provocando uma mudança climática no Brasil, mais acelerada do que na maior parte do planeta. As ondas de calor estão ocorrendo em todo o mundo, devido ao aquecimento global para o qual as emissões de gases de efeito estufa e redução da captura de carbono provocadas pelo nosso desmatamento e queimadas contribuem significativamente. Somos o sexto maior emissor de CO2, e o nosso aporte para a destruição do planeta provém principalmente das queimadas e desmatamento. Mas o primeiro impacto deste aquecimento é aqui mesmo e mais intenso do que em outras partes do mundo. Enquanto no resto do planeta o aumento das temperaturas médias está batendo os fatídicos 1,5º Celsius este ano, prevê-se que já em 2025 a Amazônia vai registrar um aumento de 2,5º C. Estes números parecem coisa pouca para os leigos, mas eles significam máximas de temperatura superando os 40º C com muita frequência ao longo do ano e não apenas nos meses de verão. Para quem não vive em ambientes controlados pelo ar refrigerado isto significa mais do que um incomodo, mas uma ameaça concreta para a saúde, sobretudo para crianças, idosos e trabalhadores em espaços abertos. Em quase todo o país a previsão é de aumentos acima da média mundial: mais 2,5º C no Nordeste, mais 2º C no Centro-Oeste e mais 1,5º C no Sudeste. Apenas no Sul o aumento previsto (1º C) está abaixo da média mundial. O segundo efeito grave do processo de desmatamento e queimadas é a queda no volume das chuvas e talvez ainda mais grave, na sua grande irregularidade. Como vimos este ano, Porto Alegre foi afogada em um ano em que o resto do país vive uma seca prolongada por dois anos consecutivos, sem perspectiva de alívio na próxima estação chuvosa. As previsões para o ano que vem indicam reduções dos índices médios de precipitações de —–, na Amazônia, ——-, no Nordeste, 15% no Centro-Oeste, 10% no Sudeste. No Sul as precipitações crescem 5%. O sistema dos “rios voadores” que irrigam o Sul, Sudeste e Centro-Oeste com umidade produzida pela evapotranspiração da floresta amazônica está sendo desequilibrado pela destruição do bioma. As regiões que concentram 80% da nossa produção agrícola (quase totalmente dependente de água de chuva) estão sujeitas a perdas de 10 a 30% da produção, dependendo da cultura e da região. O impacto sobre a economia será enorme, tanto na balança comercial como no preço dos alimentos. A fome, problema mal resolvido no Brasil mesmo em períodos menos ambientalmente desfavoráveis, vai afetar muito mais gente do que a que padece hoje. O desequilíbrio climático, com menos chuvas, temperaturas mais altas e menor umidade do ar, já está provocando a redução da vazão dos nossos rios, sendo que o mais afetado é o São Francisco, com 60% de vazão reduzida nos últimos 30 anos. Os efeitos aparecem no abastecimento de várias cidades, inclusive com algumas já em racionamento e outras com a piora da qualidade da água. A redução na geração de energia elétrica já é elevada em 9 usinas, cinco delas no São Francisco (Sobradinho, Apolônio Sales, Paulo Afonso, Luiz Gonzaga e Xingó). Todo mundo vai sentir no bolso o custo das bandeiras vermelhas do Operador Nacional do Sistema que vai acionar as termoelétricas, aumentando a nossa contribuição para o uso de combustíveis fósseis com o consequente aumento das emissões de CO2. O ar irrespirável em São Paulo dá manchete de jornal nas metrópoles, mas as cidades do norte e centro-oeste já são afetadas ano a ano há muito tempo. E é bom ir se preparando para uma repetição cada vez mais frequente deste “mau tempo” daqui para frente. E quem são os responsáveis por este estado de coisas? Segundo a maioria dos jornais e comentaristas das televisões a causa mais citada é o “aquecimento global”, sem que se aprofunde quem são os responsáveis por este fenômeno. Pode-se dizer que há, na imprensa brasileira, um passo adiante na compreensão do problema pois, pelo menos, não se nega o aquecimento global. Mas para muita gente, este é um fenômeno natural, independente do fator humano. Entre evangélicos é comum uma posição resignada do tipo “é a vontade de Deus”, ou ainda “Deus nos pune por nossos pecados”. Nada mais paralisante do ponto de vista da necessidade de se fazer alguma coisa. No Congresso, mas também nas Assembleias Legislativas, no executivo federal, mas também nos Estaduais e nas prefeituras e Câmaras Municipais, prevalece uma paralisia e um descaso com a catástrofe que nos assola agora e nos ameaça no futuro, a não ser para pedir dinheiro federal para medidas paliativas. A poderosa bancada ruralista não dá um pio para discutir a crise, a não ser para pedir verbas compensatórias para as perdas do agronegócio. Pior do que isso, os ilustres parlamentares têm engatilhados 20 projetos de lei desmontando a nossa já muito esburacada e ignorada legislação ambiental. É a “boiada passando”, tal como nos tempos de Bolsonaro e seu criminoso ministro do Meio Ambiente, Ricardo Sales. Dentre as avaliações mais frequentes escutadas nas TVs, aparece o conceito do “agronegócio bom”, aquele da propaganda (“agro é tec…”). Segundo vários comentaristas, há um setor “moderno”, “sustentável” e “amigo do meio ambiente” e ele tem sido chamado a se manifestar por mais de um âncora de programas de televisão. Não se aprofunda quem seria, por oposição a este setor, o agronegócio “mau”, o predador do meio ambiente. Seria ele o responsável pelas queimadas e desmatamentos? Ninguém diz isso com todas as letras, fica subentendido na maior parte dos casos. Alguns números podem nos ajudar a pensar sobre este nosso agronegócio. As propriedades com mais de mil hectares somam 51.203, segundo o censo de 2017, e ocupam 167 milhões de hectares. Mas o nível de concentração de terras é ainda mais espantoso: apenas 2.450 proprietários rurais com áreas superiores a dez mil hectares ocupam 51,6 milhões de hectares! O primeiro grupo dos maiorais do agronegócio representa apenas 1% do total de produtores rurais, patronais ou familiares. O segundo representa 0,05% do total de produtores. Em termos de localização, perto de 75% destes grandes produtores do agronegócio estão no Sudeste, Sul e Centro-Oeste. São as grandes lavouras de soja, milho, cana de açúcar, café, laranja, algodão. Na Amazônia e no Cerrado encontram-se os maiores criadores de gado, com perto de 65% do rebanho bovino nacional. O agronegócio se apresenta ultra concentrado em termos de propriedade de terras, mas esta concentração é ainda maior em termos de capital e de valor da produção. Apenas 25 mil destes superprodutores são responsáveis por 60% do valor básico da produção (VBP) agropecuária. Esta concentração de poder econômico se reflete em concentração de poder político. A elite econômica do agronegócio domina as entidades do setor, inclusive a Confederação Nacional da Agricultura, mais convencional, e a Associação Brasileira do Agronegócio, mais recente e dinâmica. Este poder econômico é utilizado para financiar campanhas de publicidade de grande impacto e, sobretudo, eleger a maior bancada temática do congresso nacional: a bancada ruralista. Com Bolsonaro, o poder executivo tornou-se uma espécie de apêndice dos think thanks do lobby do agronegócio, adotando toda a agenda do setor. Lembremos que o agronegócio não é apenas o setor primário, composto de fazendeiros e criadores, mas inclui as indústrias de insumos (agrotóxicos, sementes, fertilizantes e maquinário) e de processamento e os serviços correlatos. Há poderosos lobbies como as associações dos criadores de gado zebu ou de nelore, ou a Aprosoja, Abiove, etc. Mas algumas grandes empresas têm papel destacado, entre elas os grandes frigoríficos, sobretudo a JBS, maior processadora de carnes do mundo. E são eles que definem as políticas para os biomas que estão queimando há meses. Tanto os criadores de gado como os produtores de soja e algodão, na Amazônia e no Cerrado, se beneficiam do processo de grilagem que acompanha a ocupação destes territórios. É a terra mais barata do mundo fazendo a nossa carne ser um dos produtos do agronegócio mais competitivos no mercado internacional. As terras griladas, quase todas de propriedade da União, não custam nada aos ocupantes desde longa data. Forjam-se documentos para “legalizar” as vendas das terras desmatadas e queimadas ilegalmente e, de tempos em tempos, sucessivos governos anistiam estes crimes. Criadores de gado compram as terras e as exploram até o bagaço, vendendo os bois para o “agronegócio bom”, para engorda em áreas não desmatadas recentemente. E os frigoríficos, o setor mais poderoso do agronegócio brasileiro, compram boi barato e exportam ou vendem a carne para o mercado interno, tudo devidamente certificado. Deve ser o setor mais rentável do agronegócio aqui e em todo o mundo. E o que passa com os criadores de gado em outras regiões, muitos deles com tecnologia de ponta e até manejos sustentáveis do seu plantel? Sua carne é mais cara, mas de melhor qualidade e alcança melhores preços até na Argentina. Estes empresários são respeitadores do meio ambiente e capazes de se ajustar às regras novas da União Europeia com rastreamento para impedir a compra de carne oriunda de áreas desmatadas desde 2020. E por que não lutam por uma legislação nacional que obrigue esta prática? Trata-se de uma solidariedade com os agrotrogloditas da Amazônia, Cerrado e Pantanal? Desconfio que este setor dito “moderno” tem interesse na persistência da criação de gado nas áreas desmatadas. Colocada em prática a legislação da UE no ano que vem, e com os chineses, americanos e ingleses discutindo medidas semelhantes, vai haver um bloqueio das exportações de carne bovina brasileira, aquela que não vai conseguir a certificação. É mais da metade das nossas exportações de carne que vai ficar retida no mercado interno e os preços nacionais vão cair. Por outro lado, quem tiver carne certificada vai poder aproveitar o aumento do preço da carne no mercado internacional (derivado do bloqueio) e o nosso agronegócio pecuário “bom” vai nadar de braçada por um bom tempo. Me parece um cálculo bastante razoável para explicar o silêncio cúmplice dos setores “modernos” do agronegócio e a falta de ação por uma legislação sobre o rastreamento. O rastreamento da carne deveria ser uma legislação nacional aplicada com rigor e emergência para deter o desmatamento e queimadas na Amazônia, Cerrado e Pantanal. Ocorre que o governo não quer enfrentar o agronegócio no Congresso e prefere criar mais um organismo ambiental, chamado de “Autoridade Climática”. Nem discuto a importância deste instrumento, mas até ele começar a existir e operar o caldo pode estar entornado de vez. No Brasil é sempre assim: frente a uma emergência cria-se uma comissão que vai discutir o que fazer, enquanto já se sabe há muito tempo que a medida capaz de conter o processo de desmatamento e queimadas é o rastreamento do gado e a certificação da carne. As ameaças de controle pelo Ibama ou ICMBio e Polícia Federal são irrisórias, mesmo se multiplicados os seus funcionários por milhares. É muito grileiro desmatando e queimando com a proteção ou não da milícia do tráfico de drogas e que também atua no garimpo ilegal. E eles contam com a cumplicidade da justiça local, dos policiais civis e militares, de governadores e prefeitos. O estrangulamento destes processos criminosos só será eficaz com medidas que impeçam a colocação dos seus produtos no mercado. Por outro lado, os bancos públicos e privados poderiam entrar na dança, exigindo o rastreamento para financiar frigoríficos e criadores de gado. No caso dos bancos privados isto não cobra sequer uma lei específica, só uma resolução administrativa. Não basta para fazer discurso em visitas “preocupadas” às áreas sinistradas, como o Lula é mestre em fazer. Os cientistas dizem que mais dois ou três anos com os índices atuais de desmatamento e queimada a floresta amazônica vai colapsar. Não é um colapso localizado, este já ocorreu em todo o “arco de fogo” que vai do norte do Mato Grosso, o sul do Pará, o Tocantins, o Matopiba, Rondônia e Acre. Estamos falando de um processo de degeneração de todo o restante da floresta, que levará à transformação da grande planície úmida, cortada de rios enormes, em uma savana arbustiva e seca e, com o tempo, em um deserto. É preciso pensar em um outro efeito iminente deste desastre: o deslocamento da população para as cidades dos três biomas citados e que vai se estender para as grandes metrópoles do sudeste e sul. Algumas dezenas de milhões de brasileiros vão se transformar em refugiados climáticos e aumentar a miséria urbana no país. O Nordeste, por razões climáticas mais gerais, também se encaminha celeremente para passar de semiárido para árido, mesmo sem a intensidade dos desmatamentos tratados neste artigo. A previsão de aumento de temperatura média da ordem de 3º C na região vai implicar na perda de 30% da produtividade da agricultura, afetando principalmente a familiar. Estamos diante da forte probabilidade da retomada das crises sociais oriundas das secas, crises essas que perduraram até os anos 70. No passado, fugindo das secas, os “retirantes” a migravam para um “Sul” muito amplo, das cidades metropolitanas do Sudeste até as zonas rurais do Paraná e de São Paulo. Para onde irão os  novos retirantes? O agronegócio brasileiro sempre foi adepto do uso indiscriminado do fogo para expandir suas lavouras e pastos. Hoje o desastre é proporcional ao poderio adquirido por este setor. Ele sabe muito bem que no rastro deste avanço ficam dezenas de milhões de hectares (entre 80 e 100) de “áreas degradadas”, mas enquanto houver terras a grilar e florestas a queimar o processo vai continuar. E depois? Ora, depois eles vão embarcar para Miami e gozar os dólares amealhados. Mal sabem que o aumento dos oceanos provocado pelo aquecimento global que eles ajudam a ampliar vai engolir o paraíso dos ricos brasileiros. *Economista e ambientalista. Ex-Presidente da União Nacional dos Estudantes entre 1969 e 1971. Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983. Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016. Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta. Foto: Theatro São Pedro, foto do acervo do Teatro. Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia. Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.  

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Sobre Ernesto Geisel: os méritos do general e algumas comparações com Lula

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Sobre Ernesto Geisel: os méritos do general e algumas comparações com Lula
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PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.* Na minha longa experiência como colunista, aprendi que não é recomendável publicar artigos em sequência. Entre um e outro artigo, acontecem mil coisas, vem uma torrente de outros artigos e notícias, e o leitor do texto inicial já nem lembra dele ou perdeu o interesse pelo tema. Mesmo assim, é exatamente o que vou fazer hoje – retomar um aspecto do artigo que publiquei recentemente em homenagem aos 70 anos do suicídio de Vargas (“70 anos da morte de Getúlio Vargas”, agosto de 2024, XXX.) A razão é que nesse artigo um ponto causou surpresa, quando não repulsa: a referência ao general Ernesto Geisel como um dos quatro grandes Presidentes da República da nossa história, junto com Getúlio, Lula e Juscelino Kubitschek. Prometi explicar um pouco melhor a inclusão de Geisel nessa pequena lista, pois sabia que ela seria controvertida. Estou aqui cumprindo a promessa. O tema é vasto e o tempo do leitor, curto. Vou abordar apenas três aspectos do seu governo – economia, política interna e relações internacionais. Os méritos da sua presidência, que foi de março de 1974 a março de 1979, são muitos e me parecem inegáveis, mas não deixarei de apontar erros e pontos fracos. Vou mesclar leituras e estudos com lembranças pessoais dessa época. Farei comparações com o governo Lula e outros governos posteriores a Geisel. Mas será uma apertada síntese, como dizem os advogados. Em todo caso, “alerta de textão”, como diz a gurizada. Nacional-desenvolvimentismo no governo Geisel Geisel foi um presidente desenvolvimentista e nacionalista, mais do que qualquer outro da ditadura militar. E mais do que qualquer outro dos presidentes da República que vieram depois – com as exceções de Lula e Dilma. Geisel retomou, assim, a tradição de Getúlio e JK – não só em economia, mas também nas relações internacionais do Brasil. Sobre política econômica e muitos outros aspectos da atuação de Geisel recomendo vivamente ao leitor ou leitora que consulte o livro “Ernesto Geisel”, editado pelo Centro de Pesquisa e Documentação (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas – um trabalho primoroso, baseado em longo depoimento do ex-presidente, tomado em 1993 e 1994, e cuidadosamente revisto por ele. Nessa revisão, Geisel acrescentou, em especial, longo trecho em defesa da intervenção do Estado na economia. No seu período de governo, destaca-se o II Plano Nacional de Desenvolvimento, baseado na ampliação e diversificação do parque industrial brasileiro, especialmente o setor de bens de capital. O meu primeiro emprego, menciono en passant, foi como estagiário do II PND e dou meu modesto testemunho do dinamismo do Ministério do Planejamento na época, sob comando de João Paulo dos Reis Velloso. Era um Brasil que confiava em si mesmo e no seu potencial de desenvolvimento. Havia muitos problemas não resolvidos e que sequer foram realmente enfrentados – em especial a péssima distribuição de renda e riqueza –, mas a economia crescia rapidamente e gerava empregos. O PIB cresceu 7% ano em média, resultado não igualado nos governos posteriores. O II PND se baseava no chamado tripé – o Estado, o setor privado nacional e o setor privado estrangeiro. Uma economia mista, portanto, com forte presença das empresas estatais, mas aberta ao capital estrangeiro. Incluía-se, também, um apoio à indústria privada nacional, por meio do BNDE e outros instrumentos. O meu segundo emprego, aliás, foi como estagiário do BNDE e pude ver como o banco agia com entusiasmo no cumprimento da missão de apoiar o desenvolvimento de setores estratégicos da economia nacional privada. E ressalto: o apoio era a empresas privadas nacionais. Os engenheiros, economistas e advogados sob cuja orientação eu trabalhava resistiam ferozmente a qualquer tentativa de empresas estrangeiras se travestirem de nacionais para obter financiamento de longo prazo a taxas favorecidas junto ao BNDE. O argumento, naquele tempo, era o de que filiais e subsidiárias de empresas estrangeiras podiam recorrer ao capital de suas matrizes e tinham acesso mais fácil ao mercado internacional de crédito. Não deviam e nem precisavam, portanto, buscar apoio nos bancos públicos brasileiros. A essa altura do texto, já se percebe por que economistas nacional-desenvolvimentistas têm razões de sobra para apreciar o que foi feito no período Geisel. Basta comparar com o que aconteceu em governos posteriores em matéria de compromisso com o desenvolvimento, com o último da ditadura militar, o governo Figueiredo, e com o governo Sarney (exceção feita ao breve interregno do ministro da Fazenda Dilson Funaro, do qual também participei, já na condição de economista). Já nem peço a comparação com os governos antinacionais de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso. No Lula II e Dilma I, foi retomada a tradição nacional-desenvolvimentista. E Lula III faz agora nova tentativa, depois do fracasso dos governos imediatamente anteriores. A gestação da crise da dívida externa A bem da verdade, entretanto, é preciso ressaltar que as enormes dificuldades dos governos Figueiredo e Sarney resultaram, em parte, de erros estratégicos cometidos no governo Geisel. Diante do primeiro choque do petróleo em 1973, período em que o Brasil era muito dependente das importações desse produto, Mario Henrique Simonsen, ministro da Fazenda, o já mencionado João Paulo dos Reis Velloso, e Paulo Lira, presidente do Banco Central, resolveram permitir que a perda de termos de troca se refletisse em desequilíbrios perigosos no balanço de pagamentos em conta corrente e um acentuado aumento da dívida externa líquida do país. Os três eram economistas de grande valor, o que não impediu que se dessem conta desses problemas a tempo. Deu-se então a famosa “reciclagem dos petrodólares”, realizada por bancos comerciais privados americanos, europeus e japoneses. Isso levaria à crise da dívida externa da década de 1980, agravada pela forma como Delfim Neto, no governo Figueiredo, respondeu ao segundo choque do petróleo em 1979 e ao choque de juros promovido pela Reserva Federal dos Estados Unidos a partir de 1980. Uma questão essencial: o governo Geisel não percebeu a importância de acumular um volume mais expressivo de reservas internacionais como forma de autoproteção. Quando veio o segundo choque do petróleo e a alta das taxas de juro internacionais, houve inesperado aumento das necessidades de financiamento externo da economia brasileira. A liquidez internacional, em especial a oferta de crédito bancário privado, que muitos supunham infinitamente elástica, secou abruptamente. E o Brasil teve que recorrer ao FMI, perdendo soberania e autonomia de decisão. Ressalvo que não era tão fácil perceber plenamente esses riscos na época. Ainda me recordo de assistir no Rio de Janeiro, por volta de 1979, uma interessante palestra do economista John Williamson, que ficou célebre como pai do “Consenso de Washington”. Durante a apresentação e no trabalho escrito que serviu de base a ela, Williamson sustentou que as reservas internacionais do Brasil (cerca de US$ 13 bilhões) estavam altas demais... Na verdade, a equipe econômica do governo Geisel se deixou seduzir por esse tipo de balela. Quase imediatamente depois das lições ministradas por Williamson, as reservas brasileiras se mostraram dramaticamente insuficientes. O resultado foi o colapso da economia – “a construção interrompida” a que faria referência Celso Furtado. Meu encontro com Geisel e algumas comparações com Lula Mesmo assim, os méritos do governo Geisel na área econômica me parecem inegáveis. O presidente tinha certa sabedoria na condução da política econômica. Tive o privilégio de conhecê-lo por volta de 1979/80. Geisel, já ex-presidente, veio almoçar na casa do meu pai onde ficamos os três conversando. Eu, com 24 ou 25 anos, praticamente não dei um pio, limitando-me a fazer algumas perguntas. Da conversa ficaram duas coisas importantes na minha memória. Primeira: referindo-se à forma de lidar com o Ministro da Fazenda, Geisel frisou que, em todo governo, todos os ministros querem gastar, e só um, o da Fazenda, quer economizar. E cabe ao Presidente, disse ele, prestigiar esse um – sob pena de colocar o governo a perder. Assim faz o presidente Lula, que sempre apoia o ministro Haddad. Segundo aspecto da conversa com Geisel, esse não presente no governo atual: é imprescindível, destacou ele, que o Presidente tenha dentro do governo acesso a mais de uma opinião em matéria econômica. Lamentou que o seu sucessor, o general Figueiredo, tenha ficado na mão de um só superministro da economia, Delfim Neto. Geisel lembrou, por contraste, que ele contava com três vozes influentes e independentes entre si: os acima mencionados Simonsen na Fazenda, Velloso no Planejamento, além de Severo Gomes, o Ministro da Indústria e Comércio. Quando havia uma questão econômica importante, ele convocava esses ministros, abria um debate, ouvia os argumentos, as concordâncias e discordâncias – e então tomava ele mesmo as decisões. Nesse ponto, Lula segue uma abordagem diferente. Só tem Haddad como ministro influente e de confiança para questões econômicas. Talvez ele devesse criar, como sugeriu o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega, uma assessoria especial da Presidência, no Palácio do Planalto, semelhante ao Council of Economic Advisors da Presidência dos Estados Unidos. Ela poderia funcionar nos moldes da assessoria especial para assuntos internacionais, comandada pelo ex-ministro Celso Amorim, que conta com o auxílio de uma equipe de diplomatas e outros assessores. A dimensão política interna Volto a Geisel. Ele foi um ditador, um dos cinco presidentes do regime estabelecido pelo golpe militar de 1964. E, no entanto, é preciso notar, também, que foi ele o responsável pela “distensão lenta, segura e gradual”, nas suas próprias palavras. Essa “distensão” levaria ao fim da ditadura. Geisel enfrentou, inclusive, resistência feroz à abertura política por parte da “linha dura” das Forças Armadas, como recapitulei no artigo anterior sobre Getúlio Vargas. Repare, leitor ou leitora, num ponto que me parece crucial, ainda que controvertido: a “distensão” veio, no meu modo de ver, essencialmente de cima para baixo, por iniciativa do presidente Geisel, que teve a percepção de que a ditadura militar não deveria e nem poderia se eternizar. Não veio de baixo para cima, por pressão de setores da sociedade civil. Eu mesmo, como aluno de economia e liderança estudantil, participei dessa pressão de baixo para cima cuja ponta-de-lança era a agitação anti-ditadura em algumas universidades. Em 1977, esse movimento estudantil, dormente desde 1968, ressurgiu com certa força, sobretudo na USP e na PUC do Rio de Janeiro, onde eu estudava e integrava o grupo de líderes políticos na faculdade. Lembro bem da espionagem espantosamente detalhada do SNI nas nossas reuniões de diretório, da convocação para depoimento de alguns de nós no DOI-CODI (um órgão de repressão), dos helicópteros militares sobrevoando ameaçadoramente o campus da PUC, enquanto uma grande massa de estudantes bradava em coro, em resposta a um de nós que gritava num megafone: “Jornalista Vladimir Herzog” – “Presente!”; “Operário Manoel Fiel Filho” – “Presente!” – em referência que até hoje me emociona a dois “subversivos”, como diziam os militares, que haviam sido assassinados nas dependências do Segundo Exército. Por conta desses assassinatos e outros problemas, aliás, Geisel demitiu em 1976 o general Ednardo D’Ávila, o comandante do Segundo Exército, como lembrei no artigo anterior. Mas não me iludo. A pressão dos estudantes e de outros setores não teria sido nem de perto suficiente para levar à democratização. O mérito principal é de Geisel. E não me parece justo, acrescento, atribuir a ele a responsabilidade integral por todas as violências políticas que ocorreram durante o seu governo. Isso não equivaleria, pergunto, atribuir a Lula a responsabilidade por todos os escândalos de corrupção que ocorreram na Petrobrás e outras áreas durante os seus governos? Também na área política a sabedoria de Geisel parece evidente. No depoimento ao CPDOC, sem que tivesse sido perguntado a respeito, referiu-se a um futuro Presidente da República nos seguintes termos: “Presentemente, o que há de militares no Congresso? Não contemos com Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar”. E destacou que Bolsonaro, na época deputado federal, era um dos insensatos que queria voltar à ditadura militar. Nacionalismo e relações internacionais Na área internacional o governo Geisel também se destacou positivamente, sob a égide do que ele chamou de “pragmatismo responsável”. Com Geisel voltou a política externa independente, uma retomada da tradição de Getúlio e uma antecipação da política que Lula faria de 2003 em diante. Alguns exemplos, listados rapidamente para não alongar mais um artigo já extenso demais. Embora anticomunista, Geisel reconheceu a China de Mao Tse Tung e abandonou as relações com Taiwan em 1974 – isso anos antes o que os Estados Unidos o fizessem – um “primeiro sinal de que o Brasil teria uma política externa independente”, como notou Celso Amorim em entrevista recente. Geisel reconheceu, além disso, a independência e estabeleceu relações com os regimes marxistas de Angola e Moçambique em 1975. E abandonou um acordo militar com os Estados Unidos em 1977, porque o governo Carter passara a condicionar financiamentos à supervisão dos direitos humanos no Brasil. Outro ponto crucial: Geisel não aderiu ao Tratado de Não Proliferação Nuclear, intensamente patrocinado pelos Estados Unidos e pela União Soviética. A adesão só ocorreria durante o governo entreguista de Fernando Henrique Cardoso. Ainda mais importante, também na área nuclear: o acordo Brasil/Alemanha Ocidental, realizado no governo Geisel, que resultou no programa nuclear brasileiro e na criação de uma empresa estatal para executá-lo, a Nuclebrás. Meu pai foi o principal negociador desse acordo e o primeiro presidente da Nuclebrás. Esse programa nuclear sofreu, como seria de prever, forte oposição dos Estados Unidos e dos seus aliados brasileiros, de um lado, e da União Soviética e seus aliados brasileiros, de outro. O governo Geisel resistiu a essas pressões e tocou o programa nuclear para frente. Ele só viria a ser interrompido no governo Figueiredo como consequência da perda de soberania associada à crise da dívida externa. *** A questão é polêmica, reconheço, mas concluo com uma pergunta: todas essas considerações econômicas, de política interna e de relações internacionais não seriam suficientes para incluir Geisel no rol dos maiores Presidentes da República da nossa história?   Uma versão resumida deste texto foi publicada na revista Carta Capital.   *Paulo Nogueira Batista Jr. é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Publicou pela editora LeYa o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém, segunda edição, 2021. E-mail: paulonbjr@hotmail.com - Canal YouTube: youtube.nogueirabatista.com.br - Portal: www.nogueirabatista.com.br Foto da Capa: Presidentes Ernesto Geisel e Luiz Inácio Lula da Silva - Crédito: Divulgação PR Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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A VIOLÊNCIA POLÍTICA NUM MUNDO CADA VEZ MAIS DISTÓPICO

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A VIOLÊNCIA POLÍTICA NUM MUNDO CADA VEZ MAIS DISTÓPICO
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Por PAULO TIMM* O episódio da “cadeirada” do candidato a Prefeito em São Paulo, Datena/ PSDB , num debate entre candidatos na TV Cultura daquele Estado, está não só repercutindo, aliás negativamente, como suscitando maiores reflexões sobre a violência política. A violência física, bofetões e cadeiradas, a propósito, são o corolário da violência verbal, que por sua vez resulta, no campo político, da radicalização de opiniões e situações. O extremismo, enfim, é, sempre, o resultado de polarizações extremadas , desembocando, inclusive, em atos de terrorismo que marcam a História da Humanidade desde priscas eras. Este é, também, o último recurso de populações e grupos sujeitos à processos de dominação, os quais, impossibilidades de reverberar e encaminhar demandas correspondentes à sua liberdade ou sobrevivência, desembocam em atitudes até suicidas. A revolta dos escravos liderados por Spartacus, na antiga Roma é um clássico deste processo. Esse tipo de revolta teria levado o grande abolicionista brasileiro, Luiz Gama, a sustentar, num processo em que defendia escravos que haviam assassinado seu amo, que “todo aquele que mata o seu ‘Senhor’, o faz em legítima defesa’. Na antiguidade, os romanos também enfrentaram a ira dos zelotes judeus na ocupação de suas terras: os grupos mais extremistas eram chamados de Sicários, que usavam táticas violentas e furtivas atacando os centuriões com pequenas adagas escondidas sob suas vestes. No mundo moderno, os anarquistas costumavam manifestar sua contrariedade com o mundo burguês emergente com bombas e atentados. Um deles gerou, na Sérvia, a I Guerra Mundial. Nações colonizadas – e neo colonizadas - também desembocaram no uso da violência como manifestação de seu descontetamento. A Grande Marcha da China, que acabou na Revolução liderada por Mao Tse Tung em 1949, teve início como reação nacional à barbárie da ocupação japonesa de seu território. Várias revoluções do século passado também obedeceram á esta lógica, como a Luta pela Independência da Argélia, na década de 1960, a Revolução Cubana, e vários outros processos de luta pela auto-determinação no resto do mundo, dos quais não se pode esquecer da questão palestina. Ultimamente, porém, a violência vem ocorrendo, também, em países ditos democráticos e com altos níveis de institucionalização da sociedade e encaminhamento de solução pacífica de conflitos. O caso dos Estados Unidos é um exemplo. A violência grassa não só no campo da Política, vitimando Presidentes e ameaçando candidatos, como se espraia sobre toda a sociedade que vê no direito de usar e abusar das armas um instituto libertário. Agora mesmo, dois atentados já se registraram contra Donald Trump. Nestes casos, a violência não resulta propriamente do última recurso contra formas de dominação autoritária e excludente. Trata-se de um processo mais complexo de acúmulo de frustrações e ausência de auto-contenção social quando, à banalidade da vida em comum se sucede a “banalidade do mal” e desta para a “banalidade da loucura”. Um dos principais fatores neste processo é uma espécie de anomia na perda posições e dificuldades de grupos internos para acompanharem transformações estruturais da economia e sociedade. É o que está acontecendo em várias partes do mundo ocidental, primneiro como resultado da globalização, que levou à degradação de vastas áreas industrais, depois, agora, com o reescalonamento em escala mundial das plantas industriais como resultado da recuperação da ideia de construção de um mínimo de soberania nacional sobre produtos e serviços estratégicos. Isso está reanimando um discurso de ódio oportunisticamente explorado pela extrema direita. Curiosamente, como demonstrou um autor argentino recentemente, ela recorre a consignas e formas de luta da velha esquerda, hoje institucionalizada, como proselitismo ant-sistema, empolgando as massas com o uso de Redes Sociais hoje disponíveis. Acabam manipuladas por interesses ocultos que sequer eles próprios, protagonistas, muitas vezes desconhecem. Dissemina-se então o ódio , a violência verbal e até física. Pessoas contaminadas por estes discursos perdem a capacidade de agir civilizadamente e chegam até ao terrorismo e assassinato. Vide aquele caso no Paraná, em que um possesso bolsonarista invade uma festa particular e assassina o aniversariante. Aliás, ontem foi posto em liberdade... A cadeirada, enfim, gera suas reflexões Aí, pois, entramos num mundo distópico, como afirma Ualid Rabah, líder dos palestinos no Brasil, após as explosões, ontem, de pagers, supostamente planejadas por Israel, sobre supostos dirigentes do Hezbollah, um partido organizado no Líbano, com assento no seu Parlamento. “Mundo, mundo vasto mundo...” *Paulo Timm é economista, professor universitário, jornalista e editor. Foto: Divulgação Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.  

Internacional

Hezbollah chama explosões no Líbano de “declaração de guerra” e acusa Israel de massacre

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Hezbollah chama explosões no Líbano de “declaração de guerra” e acusa Israel de massacre
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Da Redação, com informações do site RT Brasil Nos dias 17 e 18 de setembro de 2024, uma série de explosões devastadoras sacudiu o Líbano, gerando uma grave crise humanitária e colocando a região em alerta máximo. O líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, reagiu com firmeza, acusando Israel de estar pohttps://rtbrasil.com/noticias/5730-declaracao-guerra-hezbollah-explosoes-libano/r trás dos ataques, que ele chamou de "massacre" e "declaração de guerra". Em discurso televisionado, Nasrallah afirmou que as explosões tinham como alvo civis libaneses e que os ataques foram premeditados para causar o maior número de mortes possível em um curto espaço de tempo. De acordo com o líder do Hezbollah, Israel pretendia matar ao menos 5.000 pessoas em questão de minutos, atingindo áreas densamente povoadas como hospitais, mercados e residências. Ele descreveu o ataque como um "grande golpe humanitário e de segurança" sem precedentes na história do Líbano e possivelmente no mundo. "O inimigo queria matar milhares de pessoas em poucos minutos", afirmou Nasrallah, ressaltando que o Hezbollah já está conduzindo investigações internas para esclarecer os detalhes e responder ao que chamou de "agressão criminosa". A explosão de bombas pelo Líbano deixou um saldo de mais de 30 mortos e milhares de feridos, incluindo mulheres e crianças. Em meio à dor e destruição, o Hezbollah prometeu uma resposta contundente contra o que consideram um ato de terrorismo de Israel. Embora o governo israelense não tenha assumido a autoria dos ataques, informações divulgadas pelo The New York Times indicam que Tel Aviv estava envolvida. Fontes da inteligência israelense descreveram a operação como altamente coordenada, com dispositivos prontos para serem detonados em locais estratégicos no momento apropriado. O impacto das explosões foi devastador não apenas em termos de perdas humanas, mas também no aumento das tensões geopolíticas na região. O Pentágono manifestou seu temor de que o conflito entre Israel e o Líbano possa escalar rapidamente para uma guerra de grandes proporções. Com o Hezbollah prometendo vingança e o governo libanês intensificando seus esforços diplomáticos, a situação se torna cada vez mais delicada. A comunidade internacional observa com apreensão, temendo que um confronto aberto entre Israel e o Hezbollah leve o Oriente Médio a um novo ciclo de violência. Enquanto isso, a população libanesa enfrenta um cenário de destruição, incerteza e medo. As explosões atingiram áreas civis, destruindo infraestruturas essenciais, agravando a crise econômica e humanitária já enfrentada pelo país. O Hezbollah, que tem uma forte presença no sul do Líbano e é considerado uma das principais forças políticas e militares do país, está agora mobilizando seus recursos para responder às agressões, em um clima de crescente militarização. A acusação de Nasrallah de que Israel deliberadamente atacou alvos civis não é uma novidade no contexto do conflito entre os dois países, mas a intensidade e a amplitude dos ataques recentes marcaram um novo patamar de hostilidades. Com as explosões ocorrendo em sequência, a população libanesa foi pega de surpresa, o que aumenta o sentimento de vulnerabilidade e revolta. Além disso, a falta de uma resposta oficial de Israel sobre o envolvimento nos ataques gera ainda mais especulação e tensão. Para muitos libaneses, o silêncio de Israel só reforça a narrativa de que o país está por trás das explosões e planeja novos ataques. O temor de que a situação se agrave e novos bombardeios ocorram levou milhares de pessoas a deixarem suas casas em busca de segurança. O Líbano, já marcado por crises políticas, econômicas e sociais nos últimos anos, agora enfrenta mais um desafio à sua estabilidade. As explosões e as acusações mútuas entre Israel e Hezbollah podem provocar uma nova onda de violência que tem o potencial de desestabilizar ainda mais a região, já fragilizada por conflitos históricos e interesses geopolíticos globais. O futuro imediato do Líbano e do Oriente Médio depende agora das respostas militares e diplomáticas que virão nas próximas semanas. Com informações do site RT Brasil. Foto da capa: Hassan Nasrallah - líder do grupo xiita Hezbollah. Crédito AP

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A Constituição prevê que a propriedade tem função social

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A Constituição prevê que a propriedade tem função social
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Por LUIZ ALBERTO DE VARGAS Assim, na forma da lei, pode se configurar a responsabilidade dos proprietários de imóveis pelos danos ambientais que derem causa, como pode ser tipicamente a propagação de incêndios que, iniciados em na área da propriedade, por culpa ou dolo do proprietário, prejudiquem terceiros. Assim, se a casa do vizinho ou a pracinha da comunidade forem atingidos porque o vizinho resolveu, no fim de semana, queimar o lixo no quintal, a Justiça não tem dúvidas de que o descuidado vizinho será penalizado, civilmente e até criminalmente, se for o caso. Aqui, em qualquer lugar do mundo minimamente civilizado. Tente “queimar folhas do quintal de sua propriedade” nos Estados Unidos e quase imediatamente ouvirá o característico som do carro de bombeiros chamado por vizinhos escandalizados pela falta de responsabilidade comunitária e ambiental de quem não sabe que, até mesmo no país mais capitalista do mundo, a propriedade tem limites e não pode ser exercida de modo abusivo pondo em risco os demais. O que assistimos no Brasil nos dias de hoje é surreal: o país está literalmente pegando fogo, as matas estão sendo destruídas, os prejuízos materiais são enormes, o comprometimento ambiental é incalculável, os efeitos sobre a saúde da população pela poluição atmosférica causada pelos incêndios preocupam os especialistas. O fogo se espalha assustadoramente e a fumaça parece ter obliterado a vista dos governantes. Todos perguntamos: quem colocou fogo no país? Quem vai pagar pelo maior crime ambiental de nossa história do país? E, principalmente, como vamos garantir que isso não aconteça de novo no ano que vem? Já alguns anos, ouvimos dos mesmos proprietários rurais que agora negam qualquer responsabilidade na crise ambiental a afirmação arrogante que têm direito a dispor livremente de sua propriedade (“se é meu, posso fazer disso o que eu quiser”); que as leis ambientais são um peso burocrático que atrasa o agronegócio e o progresso do país; que os alertas ambientais são exagerados, quando não suspeitos de beneficiar interesses estrangeiros; que as queimadas são uma forma tradicional e eficiente de manejo e não oferecem qualquer risco. Há dois anos, não assistimos, nas redes sociais do centro-oeste, uma campanha de incentivo às queimadas, chegando-se ao cúmulo de se propor um “mês do fogo”, como uma forma de resistência dos proprietários do agronegócio contra as multas da fiscalização ambiental? E, principalmente, podemos deixar escondido na fumaça que arde em nossos olhos a responsabilidade dos políticos que, mais do que se omitir, entusiasticamente apoiaram um “modelo de negócios” baseado na destruição das matas nativas e sua substituição pela pastagem para o gado e pela soja, criando um passivo ambiental que já está sendo pago por todos nós, como mostram as enchentes no Rio Grande do Sul e as secas no resto do país? Um modelo de negócios destrutivo do futuro que, no presente, não faz mais do que enriquecer poucos proprietários e causar imensos prejuízos aos seus concidadãos. Chame-se isso de qualquer coisa, menos de capitalismo, modernidade, liberalismo ou progresso. O que vemos é o avesso do Estado de Direito. É, sim, o caos instalado por uma minoria de irresponsáveis. É a farra dos proprietários. *Desembargador do Trabalho na TRT 4 Foto: Divulgação ALEP/PR Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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Reflexões sobre a guerra de Israel contra o povo palestino

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Reflexões sobre a guerra de Israel contra o povo palestino
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Por TADEU VALADARES* O fato de nossas desgraças serem em grande medida sistêmicas é, de certa forma, motivo de desespero, já que pode ser extremamente difícil mudar os sistemas. Mas também é motivo de esperança”. (Terry Eagleton, Esperança sem otimismo, p. 180). “Every person born into the world represents something new, something that never existed before, something original and unique…If there had been someone like her in the world, there would have been no need for her to be born” (Martin Buber citado em John Diamond, Narrative means for sober ends, p. 78). “Il n´y a pas lieu de parler de réconciliation entre nous et les Arabes d´Eretz Israel, ni maintenant, ni dans un avenir proche”. (Vladimir Z. Jabotinsky, Le Mur de Fer, 1923). “After the formation of a large army in the wake of the establishment of the state, we will abolish partition and expand to the whole of Palestine” (Ben-Gurion. In: Simha Flapan, The Birth of Israel. p. 22). “If we stop the war now, before all its goals are achieved, this means that Israel will have lost the war, and this we will not allow” (Benjamin Netanyahu. Entrevista recente à CNN). “… quando invece lo sforzo delle forze revoluzionarie è insuficiente per prendere il potere, e allo stesso modo insuficiente è la forza della reazione a riassicurare il vechio potere, allora “avviene la distruzione reciproca delle forze in conflitto com l´instaurazione della pace dei cimiteri, magari sotto la vigilanza di una sentinella straniera”. (Massimo L. Salvadori citando Antonio Gramsci em Gramsci e il problema storico della democrazie, Einaudi, 1970, p. 138). Comecemos por simplesmente registrar notícias circuladas nesta segunda-feira, 18 de março, a respeito da guerra imposta há mais de cinco meses pelo estado de Israel ao povo palestino em Gaza. Haaretz, o mais importante jornal israelense, destacou que: (i) em Gaza a situação é de fome catastrófica. O total de famintos passa de 1 milhão e 100 mil pessoas; (ii) o Secretário Geral da ONU, Antonio Guterres, denunciou esse estado de coisas com sombrio comentário: “Este é o número mais alto de pessoas enfrentando fome catastrófica jamais registrado”. Em nenhum outro lugar isso ocorreu; em nenhum outro momento, realçou Guterres; (iii) o Ministro para Assuntos de Política Externa da União Europeia, o espanhol Joseph Borrell, opinou, um tom abaixo na escala harmônica, que “Israel está provocando fome em Gaza”; e (iv) a reação da chancelaria israelense foi típica: “É tempo de o ministro Joseph Borrell parar de atacar Israel e reconhecer nosso direito de autodefesa contra os crimes do Hamas”. Passemos do plano declaratório a dados estatísticos que conformam um conjunto macabro: (a) de 7 de outubro até 18 de março, 31.726 palestinos, 2/3 deles mulheres, crianças e idosos, pereceram em Gaza. Vidas ceifadas pela máquina de guerra israelense, escândalo que a Corte Internacional de Justiça, apresentada a queixa da África do Sul, aceitou considerar com vistas a, no devido tempo longo, definir se a guerra contra a população de Gaza é genocida ou não. Por enquanto, a Corte, obedecendo aos ritos processuais, admitiu apenas a plausiblidade de que crime de genocídio esteja sendo cometido por Israel. (b) os desaparecidos sob escombros são mais de 7 mil; e o total dos feridos – também eles em sua imensa maioria mulheres, crianças e idosos – era, dia 18, quase 74 mil. Até alguns dias, portanto, a guerra imposta a Gaza vitimou 112.518 palestinos. Essas cifras que são muito mais do que números (pensemos na frase de Martin Buber), significam que cada uma das vítimas, tanto as palestinas como as israelenses, é ou foi um mundo total ou parcialmente destruído. A essa realidade entre estatística e buberiana há que agregar: desde o início da guerra isaelense mais de 400 palestinos foram assassinados na Margem Ocidental. Como se não bastasse, o ministro da Segurança Nacional, Ben-Gvir, anunciou que a partir do início das operações em Gaza foram emitidas mais de 100 mil autorizações para aquisição de armas. Pensemos nos colonos israelenses na Cisjordânia e na permanente cumplicidade entre eles e as forças israelenses que dominam os territórios ocupados. Pensemos no que esse tipo de notícia nos diz quanto à violência colonial que também se abate, embora com menos intensidade, na Cisjordânia sob ocupação. Para completar o quadro: em 7 de outubro passado, os combatentes do Hamas, da Jihad Islâmica e de outros pequenos grupos anticoloniais que resistem à opressão israelense recorrendo à luta armada – direito-limite dos povos colonizados, reconhecido pela Assembleia Geral das Nações Unidas em especial por meio da resolução 37/43 – realizaram sua maior e mais importante operação insurgente. O resultado – espantoso para todos nós, mas especialmente traumático para o Estado sionista, a sociedade israelense e as chamadas forças de defesa – foi a morte de 1.200 pessoas, entre civis e militares; ferimentos em mais de 3.000; e aprisionamento de contingente de militares e civis que hoje, após as trocas havidas durante o primeiro cessar-fogo, é estimado em 129 pessoas. Esses dados nos indicam que o total de mortos e feridos israelenses é de 4.329; que o total de mortos e feridos palestinos alcança 112.518 pessoas; que a proporção entre uns e outros é de 26 mortos ou feridos palestinos para cada morto ou ferido israelense. Também nesse tétrico balanço comparece a desproporcionalidade brutal da reação de Israel aos ataques dos grupos armados que operam a partir de Gaza. Guerra de escarmento, guerra de punição e expulsão coletiva da população a pretexto de eliminar o Hamás e os outros grupos armados, coisa aparentemente impossível. Passemos às notícias circuladas em 19 de março por The Guardian, jornal de referência que pode ser considerado ‘pendant’ do israelense Haaretz. Naquela data, o cotidiano britânico informou que as continuadas e significativas restrições impostas pelos militares israelenses à entrada de ajuda humanitária em Gaza, somadas à maneira implacável como as forças sionistas continuam a conduzir suas operações bélicas, poderiam estar sinalizando a operacionalização de estratégia centrada na imposição de morte por fome. O jornal fala em ‘starvation’ e, com o característico comedimento britânico, sugere que ‘starvation’, no caso, parece ser crime de guerra. Ainda segundo The Guardian, o Programa Alimentar Mundial – a maior agência humanitária do planeta – estima que um mínimo de 300 caminhões com alimentos deveria ingressar diariamente na Faixa de Gaza para atender de maneira muito precária às necessidades imediatas da população faminta. No dia 17, observa o periódico, 18 caminhões receberam autorização da potência ocupante para ingressar naquele território. Sabemos, os que se informam, que a insuficiente quota de 300 caminhões/dia é preenchida apenas de raro em raro. Outra notícia importante: a ideia, flutuada pelos EUA e outros aliados e parceiros ocidentais, de reinstituir a Autoridade Palestina na Faixa de Gaza, mereceu reação imediata de Benjamin Netanyahu: “Trazer a Autoridade Palestina para Gaza é trazer uma entidade comprometida com a destruição do Estado de Israel. Não há diferença entre sua meta e a do Hamas. É uma entidade que educa para o terrorismo; que recompensa atos terroristas. A ambição da inteira liderança palestina, qualquer que seja sua forma, é a eliminação dos sionistas.” Importante, nesse contexto, correlacionar as manifestações extremistas de Benjamin Netanyahu desde 7 de outubro último com os resultados das pesquisas de opinião realizadas em Israel após iniciada a guerra contra o povo palestino em Gaza. Um exemplo talvez seja mais do que suficiente. Em 21 de fevereiro passado, transcorridos mais de quatro meses da guerra declarada por Tel Aviv, o Instituto Democracia de Israel realizou pesquisa de opinião que lhe permitiu detectar o seguinte: 63% dos judeus israelenses se opõem à criação de Estado palestino. Isso, obviamente, dá uma medida da rejeição da grande massa da população judia de Israel à “solução dos dois estado”’, ideia que, lançada 87 anos atrás (Relatório Peel, 1937), foi encampada pela ONU quando do reconhecimento do Estado de Israel em 1948 e da partilha da Palestina histórica. No longo caminho que levaria à criação de dois estados, o máximo alcançado foi inscrito nos fracassados processos de Oslo I e II (1993 e 1995). A ideia da criação de dois estados, quando a área em princípio destinada à consagrar a territorialidade palestina se tornou coleção de bantustões, volta a flutuar depois de seu evidente naufrágio. A imaginação criadora de políticos e diplomatas reduziu-se a esforços retóricos. De acordo com a mesma pesquisa, 71% dos entrevistados acreditam que o eventual estabelecimento de um Estado palestino manteria ou aumentaria o ‘terrorismo’; 51% dos indagados consideram improvável uma vitória completa das forças israelenses na guerra iniciada por Israel em 7 de outubro; mas em fevereiro passado 75% dos cidadãos judeus israelenses (a opinião dos ‘árabes israelenses’, cidadãos de segunda, é naturalmente outra) aprovavam a planejada operação militar contra Rafah, território reduzidíssimo onde se concentraram, para escapar da matança iniciada em outubro, mais de 1.5 milhão de palestinos. Esse, em linhas gerais, o ‘estado de espírito’ nada sionista-buberiano que há tempos anima ampla maioria dos nacionais israelenses. À luz desses dados, e da fé no uso de força cega que esse ‘estado de espírito’ confirma, há que registrar: (1) a guerra genocida contra a população de Gaza – por mais que em termos jurídicos continue no limbo do plausível, junto com Soderini e as crianças não-nascidas – tem tudo para durar muito mais do que nós, todos horrorizados, possamos imaginar; (2) essa é uma guerra já perdida por Israel ao menos em duas frentes: a da batalha pelos corações e mentes da chamada ‘opinião pública mundial’ e a da mobilização das ruas por movimentos sociais, partidos, sindicatos e mais, críticos do estado sionista. A batalha pela conquista da ‘opinião pública global’ inclui sua fração ocidental, de fato a única verdadeiramente importante para Israel. Tal batalha parece perdida para o estado sionista, apesar de todos os esforços dos que, sionistas ou não, apoiam a guerra. Na segunda frente, de caráter complementar-operacional ‘vis-à-vis’ a primeira, o conjunto dos movimentos contrários à guerra e às práticas militares de Israel, também dá sinais de ser vitorioso nas ruas. Dito em outros termos, a dinâmica das mobilizações em favor de Israel, contraposta à que pede sua condenação política, ética e moral, junto com a imediata cessação da guerra, ganha força, espaço e público à medida que a barbárie continua a imperar em Gaza. Os argumentos sionistas, não sem motivos, perdem densidade à luz da realidade marcada pelos massacres diários amplamente difundidos nas várias mídias. No limite e no prazo longo, o apoio popular à Palestina, aos de Gaza e aos da Cisjordânia pesará decisivamente. Por enquanto, isola mais e mais o estado sionista e os governos e movimentos que o apoiam. Mesmo no plano simbólico, sempre tão difícil de conceituar com precisão, é fácil perceber: esvai-se o mito da democracia israelense, ao mesmo tempo em que se afirma visão contraposta, a que entende o estado sionista como encarnação de uma das últimas expressões históricas do colonialismo europeu de povoamento, no caso de Israel agravado, tal como na África do Sul ‘boer’, pela dimensão aparteísta de fundo étnico. Em suma, na luta ideológica Israel já não tem como eficazmente se contrapor às críticas de fundo tanto político quanto ético e moral. Isso está ocorrendo, com intensidade e ritmos distintos, tanto nos EUA quanto no Canadá, Reino Unido, Irlanda, Europa continental, Austrália e Nova Zelândia. Em alguns desses países e regiões, a derrota ‘in fieri’ começa a ficar clara. Em outros, ainda se encontra no estágio de acumulação de forças. De todo modo, o vetor final parece estabelecido: o futuro se configura extremamente negativo para Israel. Essa tendência geral se aplica com ainda maior força, naturalmente, a todo o mundo árabe, a todo o mundo islâmico, aos países em que minorias muçulmanas são importantes. Nesse registro, pensemos na África, sobretudo. Mas esse mesmo movimento, ainda que comparativamente bem menos potente, também está presente na América Latina. Apesar disso, e a despeito dos primeiros ‘sinais de insatisfação’ emitidos ao longo das últimas semanas por líderes ocidentais (Biden, Borrell, Macron, etc.), o ‘crescendo’ da mobilização popular de fato não chegou a se aproximar minimamente de seu objetivos maiores: a cessação da guerra e a criação da espantosa possibilidade de se estabelecer a paz. A questão é tão intratável que nem mesmo hipotético segundo cessar-fogo com seis semanas de duração, medida que efetivamente nada resolve, foi até agora conssensuado. Mesmo que venha a se concretizar, a adoção da medida por si mesma nada resolve, apenas interrompe o massacre. No plano estritamente jurídico, o processo aberto pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça muito provavelmente conduzirá, em 2, 3, 4 anos ou mais, à condenação de Israel pelo crime de genocídio. Mas no plano estritamente jurídico o crime ainda não é crime, o genocídio não passa de hipótese plausível. No plano do real cotidiano, por outro lado, o plausível já se metamorfoseou, dada a brutalidade dos fatos, em genocídio escancarado. Passemos a outro nível de análise. Em texto anterior, postado no site A Terra é Redonda menos de duas semanas atrás, utilizei como epígrafe outra frase de Vladimir Jabotinsky, o mais importante, o mais claro e o mais duro formulador de uma variante específica de sionismo, a revisionista, antípoda do sionismo filosófico em muito idealista, humanista, ético, cultural e moral defendido por Buber e Scholem. A variante revisionista de sionismo, em sua dureza e pureza, tornou-se progressivamente mais forte na Palestina histórica e, depois, no estado de Israel. Mas a conquista da primazia ideológica foi lenta, o sionismo revisionista havendo sido minoritário desde a década de 20 do século passado até ao menos a guerra de 1967. A partir de então cresceu muito, embora só viesse a alcançar o poder executivo dez anos depois, quando Menachem Begin, sionista revisionista histórico, tornou-se primeiro ministro. Para Vladimir Jabotinsky – cujas ideias estrategicamente decisivas foram elaboradas num texto curto, datado de 1923 e intitulado A muralha de ferro – um acordo entre os judeus em Eretz Israel e o ‘povo árabe” (Jabotinsky não reconhecia um povo palestino, apenas o povo ou a nação árabe) não era premente. Ao contrário, deveria ser evitado a todo custo. Prioritário era construir a Muralha de Ferro – sinônimo de força militar e capacidade estratégica incontrastáveis – capaz de impor a vontade de poder sionista ao povo árabe, isto é, ao povo árabe em Eretz Israel e ao restante da nação árabe circunvizinha. Essencial: a Muralha teria de ser forte em tal escala que tornasse impossível qualquer ameaça ou mesmo influência árabe. Só então, para Vladimir Jabotinsky, um acordo entre os dois povos seria possível e necessário. Só quando a correlação de forças viesse a ser totalmente favorável ao povo judeu, só quando fosse definitivamente quebrada a espinha dorsal da resistência do povo árabe, o lado sionista se disporia a efetivamente ‘negociar a paz’. Noutras palavras, a ideia fundamental – a Muralha de Ferro como sua metáfora – era fortalecer Israel ao máximo em termos estratégico-militares internos, enquanto que, no plano externo, os sionistas construiriam alianças pragmáticas com uma ou outra das grandes potências ocidentais com interesses geopolíticos permanentes, de caráter colonial, no Oriente Médio. Assim, se pensarmos em Maquiavel, de certa forma ocorreria um feliz encontro entre ‘virtú’ (a muralha interna) com ‘fortuna’ (as alianças pragmáticas que reforçassem, no plano geopolítico mais amplo, a dominância sionista). Assim procedendo, a população judia na Palestina da década de 1920 e o futuro estado de Israel estariam em condições de afinal impor um ‘acordo’ entre uma parte imensamente forte e outra praticamente indefesa. Vladimir Jabotinsky, reconhecido pela extrema direita sionista como seu ‘maître penseur’, é o fundador do sionismo revisionista, mas também foi um dos criadores da Hagannah em 1920. Essa linha do sionismo combateu todas as outras, com exceção do ‘sionismo político’ de Herz e seguidores. Ao longo de décadas, o sionismo revisionista se bateu de maneira encarniçada contra os demais integrantes do seu próprio arco ideológico, dos humanistas à Buber aos trabalhistas autointitulados socialistas, e, por óbvio, arremeteu contra os marxistas antissionistas que conseguiram transferir cerca de 40 mil judeus de esquerda para Eretz Israel durante a segunda aliá (1904-1914). Mas o principal adversário dos revisionistas foi o sionismo trabalhista liderado por Ben-Gurion, inimigo jurado de Vladimir Jabotinsky. Ben-Gurion, em fala sintomal, apelidou Jabotinsky de Vladimir Hitler. A menção a Vladimir Hitler não é gratuita. De fato, para boa parte dos historiadores, Vladimir Jabotinsky e o sionismo revisionista eram ou bem uma expressão adaptada do fascismo mussoliniano ou, para os mais lenientes, uma forma de protofascismo europeu. Para Michael Stanislavsky (Zionism – a very short introduction, p. 48): “Although he himself never crossed the line to full-fledged fascism … the youthful minions of his massively popular movement adopted the black-shirt uniforms of right-wing parties of the day, repeating his mantra that ‘all a Jewish boy needs to learn is to speak Hebrew and shoot a gun”. O contorcionismo apologético de Stanislavsky parece-me evidente, sua salvadora distinção entre protofacismo e fascismo ou nazismo tem o seu quê de refinamento acadêmico, mas afinal não se sustenta. Recordo, leitura minha de décadas e décadas atrás, que Curzio Malaparte, em Kaputt, se refere a Vladimir Jabotinsky como ‘o judeu favorito de Mussolini’. Sem dúvida, a disputa mais importante no interior do sionismo foi a que se deu entre os revisionistas, por um lado, e os trabalhistas, por outro. Mas deixando a dimensão pessoal de lado, o relevante é que tanto os sionistas revisionistas quanto os trabalhistas – os primeiros abertamente, os outros de maneira mais calculada, em geral encoberta – obedeceram à lógica da Muralha de Ferro. Ambos a implantaram. Os trabalhistas, na era Ben-Gurion do Israel inicial; os revisionistas, sobretudo a partir de 1977. Begin, o primeiro dos primeiros-ministros revisonistas. Benjamin Netanyahu, a encarnação mais recente. Essa é, de maneira algo sumária, a tese defendida pelo historiador israelense Avi Shlaim em sua obra maior, lançada em 1999 sob o título A muralha de ferro, Israel e o mundo árabe. O longo texto, mais de 700 páginas, mereceu uma atualização do autor, artigo circulado em 2002: “A Muralha de Ferro Revisitada”. Para Avi Shlaim, depois de um certo tempo, depois, no meu entender, de 1967, mas sobretudo depois de 1977, tanto os revisionistas quanto os trabalhistas passaram a pensar Israel e sua relação com o ‘povo árabe’ a partir do eixo central conformado pelas ideias de Vladimir Jabotinsky devidamente atualizadas. Hoje, tudo parece indicar que a metáfora da Muralha é compartilhada pela maior parte da elite sionista israelense, das forças armadas, da academia, e também pela mídia que conta e, mais importante de tudo, pelo eleitorado de Israel, isto é, pela fração do povo formada pelos cidadãos de primeira classe, os judeus israelenses, sejam eles sionistas ou não. Certo, minorias continuam a existir. Minorias continuam a criticar. Minorias persistem na oposição. Mas a caravana da maioria é que atravessa o deserto. A tese de Shlaim, chave que em muito ajuda a explicar o que ocorre no Estado e na sociedade israelense atuais. Contribui para entendermos o porquê de a intransigência de Israel ‘vis-à-vis’ a Palestina e seu povo ser completa, nisso Benjamin Netanyahu sendo apoiado pela massa dos cidadãos judeus, incluídos os que o querem ver fora do poder e, se possível, na prisão. A agressividade permanente de Israel contra os vizinhos árabes – nem falemos do Irã –o, e a virulência sem limites contra o povo palestino também são iluminadas pela metáfora de Vladimir Jabotinsky. Entretanto, claro, isso deve ser realisticamente matizado. A oposição é frontal entre Israel, estado e sociedade, e os povos árabes, mas o pragmatismo que a um só tempo marca as elites árabes e sua congênere israelense permite entendimentos sólidos e duradouros entre elas. O maior exemplo, a relação entre Israel e o Egito pós-Nasser. Seu maior projeto, o que estava sendo concretizado via acordos Abraão. No fundo do palco, o desejo sionista revisionista, hoje sionista em geral, de construir o Grande Israel às expensas do povo palestino. No fundo do palco, a imensa distância árabe entre elite do poder e povo. Porque aceito, inda que parcialmente, a interpretação elaborada por Avi Shlaim, é-me difícil acreditar que o Israel de hoje, o de Benjamin Netanyahu, e o Israel de amanhã, provavelmente o de Benny Gantz, sejam substantivamente diferentes. A visita de Benny Gantz a Washington e sua mensagem a Camila Harris e Joe Biden, similar às de Benjamin Netanyahu. Isso proclama que Netanyahu e Ganz são partes de um mesmo todo, o todo claramente pensado por Vladimir Jabotinsky, o todo metaforizado pela Muralha. Se estou no certo em alguma medida, então, até mesmo por derivação, é de se esperar que nenhuma liderança sionista atual tenha flexibilidade política, ideológica e até mesmo axiológica para satisfazer as demandas mínimas, eleitoralmente angustiadas, dos seus principais aliados e parceiros ocidentais. De certa maneira, também o Ocidente, não apenas Israel, tornou-se prisioneiro da Muralha de Ferro. Para o Ocidente estendido, esse que vai da América do Norte à Oceania, passando pela Europa, por Israel, pelo Japão, pela Coreia do Sul e outros aliados e parceiros, o nome atual desse cárcere com muros altos talvez seja “cumplicidade ocidental no genocídio em Gaza”. E se fechamos ainda mais o círculo da mentalidade revisionista, tudo fica mais claro: a psicologia de massa do eleitorado israelense, traduzida nas pesquisas de opinião pública circuladas pós-7 de outubro, denota algo desesperador. As pesquisas dizem aos gritos que a grande maioria dos judeus israelenses se tornou, estejam eles conscientes disso ou não, sionista revisionista na maneira de ver e pensar o mundo, por trabalhistas que muitos deles se proclamem. O complexo da Muralha de Ferro tornou-se artigo de consumo corrente. A Muralha se constituiu como parte indeclinável da psique nacional israelense fundada nas ideias antagônicas de cerco e de expansão. Porque penso assim, vejo com profunda frustração que o futuro da questão palestina – a ‘questão árabe’ de Vladimir Jabotinsky – não tem como, no prazo de muitos meses ou mesmo de poucos anos, alcançar o seu momento superior, a definitiva libertação palestina do jugo colonial sionista, sucessor do jugo colonial britânico. Porque penso assim, a tesoura do realismo cortando rente as asas do desejo, continuo a situar ainda muito longe aquilo por nós todos desejado, o desenlace vitorioso da luta secular da Palestina por sua autodeterminação. A guerra genocida imposta à população de Gaza decerto fará avançar o processo a um custo humano incalculável. Mas a vitória decisiva ainda se esconde por trás da linha do horizonte. Por isso mesmo, a luta do povo palestino por sua libertação nacional se tornou o exemplo mais duro, na escala planetária da arena internacional, de equilíbrio catastrófico a ser positivamente transformado. Em meio à catástrofe em curso, fiquemos com nossa única certeza: a libertação nacional do povo palestino é inelutável. Viva a Palestina livre! Libertas quae sera tamen! *Embaixador aposentado. Foto: REUTERS/Liesa Johannssen Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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