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Água, Fogo e Inércia: Lula e a Distopia Climática

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Água, Fogo e Inércia: Lula e a Distopia Climática
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Por ANDRÉ MOREIRA CUNHA E ALESSANDRO DONADIO MIEB* O Brasil em Chamas Seca extrema e proliferação de grandes incêndios florestais: o Brasil está em chamas. O Instituto Nacional de Estudos Espaciais (INPE) monitora, por satélite, as queimadas no Brasil. Em 2024, já foram atingidos 224 mil Km2 até o final de agosto, o que equivale a quase o dobro da média histórica (2003-2024) de 137 mil Km2, sempre considerando-se o acumulado dos oito primeiros meses de cada ano. Para o consolidado anual, a média do período 2003-2023 foi de 330 mil Km2/ano. Em termos de ciclos políticos, a média dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (2003-2015) foi de 357 mil Km2/ano; nas gestões Michel Temer e Jair Bolsonaro (2016-2022) atingiu 273 mil Km2/ano; e no primeiro ano do atual governo, ficou em 372 mil Km2. Os incêndios de 2024 têm sido particularmente marcantes, tendo em vista a ocorrência da maior seca no país dos últimos setenta anos. De acordo com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais convive-se com o pior valor do Índice Padronizado de Precipitação e Evapotranspiração desde 1951 e a maior área atingida pela estiagem: 59% do território nacional. Seus efeitos também se fazem sentir na intensa deterioração da qualidade do ar em regiões atingidas ou não, no país e no exterior. Sobre as causas da seca, o INPE registra haver a interveniência de aspectos não diretamente controláveis por políticas públicas locais e nacionais, como o aquecimento global, com outros, que resultam de dinâmicas que poderiam ser objeto de ação governamental, como a expansão da fronteira de exploração econômica em diversos biomas.             O Fogo Incontrolável e a Inércia do Poder O Brasil ainda preserva importante parcela de suas coberturas florestais, primárias (originais) e secundárias (reflorestamento), e de sua biodiversidade, que se constituem em ativos estratégicos. O MapBiomas apurou que as florestas ocupam 58% do território do país. Há importante concentração desse manancial de recursos nas regiões que são mais sensíveis aos fenômenos adversos derivados da elevação das temperaturas médias e o avanço da fronteira econômica. Em relatório recente, a UNEP (United Nations Environment Programme) indica que os grandes incêndios florestais se originam da “... interação complexa de fatores biológicos, meteorológicos, físicos e sociais que influenciam sua probabilidade, comportamento, duração, extensão e resultado (ou seja, gravidade ou impacto).” (p. 8). Os modelos de simulação utilizados sugerem que algumas regiões serão particularmente mais afetadas pela maior incidência desses eventos, dentre as quais o sul da Amazônia, o Ártico e a Indonésia (p.10). Para a UNEP, os governos, isoladamente, possuem pouco controle direto sobre vários dos fatores que influenciam os grandes incêndios, como o aquecimento global ou as secas prolongadas. Ainda assim, poderiam atuar para mitigar seus efeitos e alterar determinados processos sociais, como a exploração econômica de biomas sensíveis. No caso do Brasil, as políticas governamentais das últimas décadas, priorizaram a ocupação do hinterland e a expansão da fronteira econômica da agricultura e da mineração, inclusive em regiões como Serrado, Pantanal e Amazônia. Tal vetor de crescimento une os períodos de ditadura e de democracia, bem como os governos de direita e de esquerda. Não foi diferente nos anos 2000, quando a crise climática ganhou maior relevo.   O Desenvolvimentismo Motoserra No anúncio do Novo PAC, evidenciou-se que a gestão Lula prioriza aspectos estratégicos que também orientaram a ocupação econômica do centro-norte do país desde os governos militares. Os problemas climáticos contemporâneos ou os potenciais positivos da “economia verde” seguem em posições hierarquicamente inferiores na agenda governamental. São priorizadas grandes obras de infraestrutura que, assim como no exemplo da usina hidroelétrica de Belo Monte,  aprofundam os corredores de acesso aos biomas mais sensíveis e expostos, como Pantanal e Amazônia, particularmente: “... a Hidrovia Araguaia-Tocantins e a Ferrogrão, projetadas para o transporte de soja do cerrado brasileiro para portos do Pará e outros estados do Norte, e a pavimentação da BR 319, que liga Rondônia ao Amazonas ...”. A exploração de petróleo na Margem Equatorial Norte reafirma o modelo energético responsável pela emergência da crise climática. As políticas de recuperação e/ou de preservação dos recursos naturais são por demais tímidas. Assim, por exemplo, o “Plano Floresta + Sustentável” tem a meta de plantar 4 milhões de hectares de florestas comerciais até 2030, vale dizer, ou 667 mil hectares/ano. Isso equivale a cerca de 1/3 do desmatamento médio anual do período 2019-2023, conforme relatado pelo RAD 2023 do MapBiomas. Trata-se de um objetivo incompatível com a reversão da trajetória atual de destruição, que está sendo potencializada pelas queimadas recorrentes e mais intensas. Conforme indicamos em artigo anterior, as políticas creditícias e tributárias mantêm os incentivos existentes ao modelo primário-exportador, intensivo na exploração das novas fronteiras para a mineração e a agropecuária. Há abundância de fontes de fomento que não discriminam adequadamente atividades e/ou regiões onde há maior destruição dos ecossistemas. Já os recursos disponibilizados para instrumentos como o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal (Lei nº 11.284/2006), o Fundo Clima (Lei 12.114 em 09/12/2009), ou as captações de títulos verdes, nos marcos do Arcabouço Brasileiro para Títulos Soberanos Sustentáveis, seguem insuficientes. Diante da contundência dos incêndios de 2024, o Ministro da Fazenda admitiu ser necessário colocar o tema no orçamento. Ao ser confrontado com o dilema entre a preservação do equilíbrio fiscal e a necessidade de combater a emergência climática, Fernando Haddad indicou que:  “Se é evento extraordinário que não vai se repetir, você tratar de maneira segregada não me parece que se desvia do foco do arcabouço fiscal ... Agora, se você começar a ter ocorrência cotidiana disso, se isso se tornar despesa recorrente, vai ter que ser feita uma adequação do Orçamento federal.” Trata-se da admissão do óbvio: a questão climática não foi prioritária até aqui e não possui espaço orçamentário adequado.   Um Pacto pelo Futuro ou Mais do Mesmo? A sociedade civil e os governos, em seus diversos níveis, buscam reagir ao agravamento da crise climática. Lideranças empresariais vieram a público, por meio de manifesto, indicar a necessidade de articulação entre os setores público e privado. Essas lideranças assumem ser necessário “... colaborar com o Executivo na estratégia de combate ao desmatamento ilegal e na recuperação de áreas degradadas. Precisamos contribuir com o Legislativo na criação de leis que disciplinem o licenciamento ambiental e protejam as florestas. Precisamos incentivar um Judiciário atuante na defesa do direito constitucional ao meio ambiente ...”. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) defendeu a importância de uma “... resposta imediata, robusta e coordenada entre todos os setores da sociedade e diferentes níveis de governo” por meio de “... ações integradas, envolvendo a prevenção ambiental e o fortalecimento da saúde pública...”. Os governos locais e federais têm sido incitados a agir com maior intensidade no combate aos incêndios por força da intervenção do STF. Esse liberou o uso de créditos extraordinários para o enfrentamento das queimadas, o que motivou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a articular um “pacote de novas medidas”. Nos últimos dias, além de visitar as regiões mais atingidas, o presidente anunciou o desejo de criar “Plano Nacional de Enfrentamento aos Riscos Climáticos Extremos”. Para tanto “... vamos estabelecer uma Autoridade Climática e um Comitê Técnico-Científico que dê suporte e articule a implementação das ações do Governo Federal junto com o governo estadual e junto com as prefeituras.”. Com a força incontrolável da “agenda negativa”, o presidente Lula parece querer se mover com maior força na direção de elevar o status político da temática ambiental. Ao fazer isso, no contexto atual, o governo parece reagir mais às pressões externas, do que por convicção de que a prioridade é necessária. Deixou-se escancarada a inércia do poder, tema explorado pelo jornalista Elio Gaspari, que indicou as razões para o adiamento da criação da Autoridade Climática. Para ele: “Contra a criação dessa entidade militaram dois grupos com interesses quase antagônicos. De um lado estavam os que pretendiam defender o meio ambiente, protegendo seus quadrados de poder na burocracia. De outro, estavam os interessados em preservar um estado de coisas que mantinha a defesa do ambiente no mundo do palavrório. Nenhum dos dois queria a Autoridade Climática. Prevaleceram e continuam detestando a ideia.” Não faltam boas ideias e, possivelmente, intenções ainda melhores por parte de lideranças empresariais e políticas. Todavia, até aqui, os problemas se acumulam de forma mais rápida que as supostas soluções. A equação política não facilita a vida do governo federal. Há importante poder de veto de segmentos da sociedade que “ganham”, pelo menos no curto prazo, com o avanço da fronteira econômica em biomas ainda preservados. O próprio governo federal mira na geração de impostos, empregos e renda com esse prisma imediatista e contribui para manter o status quo. “Agendas positivas” e resultados rápidos são sempre preferíveis aos investimentos no futuro em temas tão complexos como o das mudanças climáticas. O presidente Lula, com a habilidade que lhe é peculiar, conseguiu introduzir elementos novos e importantes na estrutura do Estado brasileiro para valorizar a questão ambiental, a despeito das pressões em contrário. Agora, trata-se de encarar uma realidade ainda mais desafiadora e que não cabe nos arranjos existentes. Para enfrentar os desafios que se colocam não bastam palavras ou novas estruturas estatais. Será necessário reorganizar as políticas públicas e alocar recursos orçamentários em volumes muito maiores, conforme já sinalizamos em artigos anteriores. As estruturas de incentivos fiscais, creditícios bem como os marcos regulatórios devem sofrer revisões no sentido de induzirem, de maneira efetiva, as atividades econômicas sustentáveis e, também, de punirem atividades incompatíveis com o adequado manejo dos recursos ambientais. Cabe o questionamento em relação a capacidade da sociedade brasileira em prosseguir procrastinando o enfrentamento da crise climática. As evidências indicam que, ao longo do século XXI, o país enfrentará crescentes desafios ambientais, com impacto severo sobre a atividade econômica e o bem-estar de sua população. Os espaços para as estratégias de acomodação de interesses conflitantes estão sendo reduzidos pela força das águas e do fogo. *Docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS Foto: Agência BrasilOs artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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ATENTADOS CONTRA A RAZÃO

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ATENTADOS CONTRA A RAZÃO
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De SOLON SALDANHA* Me impressiona como a extrema-direita gosta de sofrer atentados. Seus candidatos parecem atrair a presença de psicopatas e fico pensando se não seria pela afinidade de comportamentos. Muito interessante também é como esses episódios acontecem. Sempre há uma circunstância pra lá de inovadora e surpreendente. Como por exemplo a facada sem sequer uma gota de sangue, sofrida por Jair Bolsonaro pouco antes do pleito que o levaria à presidência, em 2018. Rendeu a desculpa perfeita para não comparecer a debate algum, alguns dias de descanso da cansativa campanha e milhares de votos frutos do “coitadismo”. Donald Trump, em meados de julho, teria sido outro a sofrer tentativa de assassinato, durante comício que fazia na Pensilvânia. Quando um tiro supostamente o atinge de raspão ele leva à mão até a orelha e a retira limpinha, como se vê nas imagens que correram o mundo. Então ele se abaixa e, algum tempo depois, levanta com “sangue” em ambas – na mão e na orelha. Claro que desta feita os disparos foram reais, tanto é verdade que uma pessoa da plateia morreu, antes que o atirador fosse abatido por agentes do serviço secreto. Agora, pensem comigo: a bala de um fuzil AR-15, como o encontrado com o atirador, tem quase o tamanho de um dedo. E se desloca na velocidade de 975 metros por segundo, o que equivale a uns dez quarteirões. Então, se tocasse de leve na cartilagem que forma a concha externa do nosso aparelho auditivo, o deceparia instantaneamente. Ele usou um curativinho de gaze, por poucos dias. Agora no domingo, coincidentemente pouco depois de ter sido divulgada uma pesquisa que mostra Kamala Harris, do Partido Democrata, cerca de cinco pontos percentuais na sua frente, nas intenções de voto, pronto: Trump sofre outro. Entretanto, esse não foi público como o anterior e sim bem privado. No seu campo de golfe particular, situado em West Palm Beach e longe dos olhos de quaisquer testemunhas, um homem teria sido visto cerca de 450 metros distante de onde ele estava e armado. Incrível é que o atirador não deu nenhum tiro, saiu do local caminhando e foi detido pelos seguranças mais adiante, desarmado. Ou seja, depois de facada sem sangue e bala de fuzil quase inofensiva, inventaram a “intenção atentatória”. Aqui no Brasil temos pelo menos um outro episódio que acabou sendo inserido no anedotário político, tamanho o seu absurdo. Quando José Serra disputava a presidência contra Dilma Rousseff, em 2010, teria sofrido uma “agressão covarde” em evento no Rio de Janeiro. Petistas foram acusados de arremessar contra a sua cabeça, com pontaria precisa, um objeto contundente. Foi retirado do ambiente pelos seus seguranças e encaminhado para fazer uma tomografia. A requisição foi de Jacob Kligerman, médico carioca que havia sido secretário de César Maia e presidente do Instituto Nacional do Câncer, para esse segundo cargo nomeado pelo próprio Serra. Imagens da cena foram recuperadas e reproduzidas com o uso de câmera lenta, mostrando que fora uma pequena bolinha de papel que o atingira. Pior ainda: o arremesso fora feito por um assessor do candidato. Nem integrantes de “Os Trapalhões” teriam sido tão criativos. Agora, tivemos também um fato no qual as vítimas foram trocadas de lado pela narrativa oficial. Este não ocorreu contra um candidato, mas em favor da manutenção de uma ditadura que claudicava. Em 30 de abril de 1981 estava ocorrendo um show musical no Centro de Convenções do Riocentro, na capital carioca, com cerca de 20 mil pessoas no local. Para justificar a manutenção do aparato de repressão então existente, setores do Exército Brasileiro e da Polícia Militar do Rio de Janeiro planejaram um atentado que, com certeza, teria terminado com muitos mortos. Seu objetivo era culpar grupos que se opunham ao sistema vigente e manter o governo na mão das Forças Armadas. Com cadeados, fecharam os portões de saída, enquanto se preparavam para detonar uma bomba. Vidas seriam perdidas com a explosão e também com as pessoas sendo pisoteadas na tentativa desesperada de fugir do local. Não deu certo devido ao fato de o artefato explosivo ter sido detonado acidentalmente no colo do sargento Guilherme do Rosário, que com ele estava dentro de um automóvel Puma, no estacionamento, esperando a ordem e o momento de agir. Ele perde a genitália e a vida. Ao seu lado, o capitão Wilson Dias Machado ficou gravemente ferido, mas sobreviveu. Jamais pode falar sobre o caso, tendo sido promovido posteriormente por “bravura”. Entre os vários outros suspeitos se encontrava o truculento general Newton Cruz. Patética foi a apresentação feita pelo Exército para a imprensa, dias depois, com projeção de fotos e a apresentação de uma perícia forjada. Um esquerdista teria aberto a janela do carro e jogado sobre o colo do sargento a tal bomba. Isso foi tão ridículo que resultou na renúncia do general Golbery do Couto e Silva, então Chefe da Casa Civil e tido como a “eminência parda” do governo. E o tiro – ou a bomba – saiu pela culatra, com o episódio acelerando a queda do regime militar.   *Jornalista e blogueiro. Texto publicado originalmente no Blog Virtualidades. Foto: Divulgação Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.  

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O Brasil visto por três estrangeiras

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O Brasil visto por três estrangeiras
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Por NUBIA SILVEIRA* Jemima Kindersley, Elizabeth Macquarie e Rose Freycinet. As três mulheres – duas inglesas e uma francesa –, esposas de oficiais da Marinha, visitaram o Brasil, acompanhando seus maridos, entre 1764 e 1820. Elas deixaram suas impressões sobre o país, ou melhor, sobre duas cidades, Salvador e Rio de Janeiro, em cartas detalhadas sobre o que viram e viveram. A beleza natural do país sempre é exaltada pelas viajantes, numa época em que os europeus não tinham informações sobre a colônia portuguesa. Os depoimentos destas três visitantes estão reunidos em Mulheres viajantes no Brasil (1764-1820), organizado e apresentado por Jean Marcell Carvalho França e editado pela José Olympo. Jemima esteve em Salvador nos meses de agosto e setembro de 1764, quando a Coroa portuguesa proibia e entrada de estrangeiros em seus domínios além-mar. Quem conseguia driblar as ordens da Monarquia, como Jemima, esposa do capitão Nathaniel Kindersley, funcionário da Companhia das Índias Orientais de Bengala, tinha seus passos totalmente vigiados. A inglesa conta que as autoridades locais designaram um oficial e um soldado para controlarem seus passos. Reclama por ser seguida até mesmo dentro da casa, em que se hospedou, pertencente a um cirurgião francês, “casado com uma portuguesa nativa”. “Na primeira noite em que dormi em terra, os vigias dormiram no corredor próximo ao meu quarto”, afirma a indignada Jemima. O relato da senhora Kindersley não é nada simpático ao governo local – “desconfiado e pouco hospitaleiro” – e aos portugueses – “muito reservados e hostis aos estrangeiros”. Para ela, os portugueses que migraram para o Brasil, vieram com “um sentimento muito diferente daquele que tem um inglês quando deixa o seu país para se estabelecer numa colônia”. E explica: “Nós ingleses temos sempre o desejo de voltar para casa, enquanto os portugueses se estabelecem com suas famílias por gerações e passam a ver o lugar como sua casa”. Nas sete cartas, escritas em Salvador, Jemima não deixa de falar o que pensa, tendo sempre um olhar crítico sobre a sociedade tropical. Mas tropeça na última carta, em que desculpa os portugueses de seus tantos vícios: “Os portugueses têm demonstrado grande humanidade e mesmo civilidade no tratamento dos nativos do país, os quais, ainda que conquistados, foram deixados em liberdade”. A segunda visitante foi, a também inglesa, Elizabeth Macquarie, que chegou ao Rio de Janeiro, um ano após a transferência da família real para o Brasil, abrindo os portos para visitantes e comerciantes estrangeiros. “No dia 6 de agosto de 1809, avistamos terra e, no dia seguinte, lançamos âncora no porto do Rio de Janeiro.” O que ela e os demais tripulantes viram foi uma imagem que encantou a todos: “a tarde estava clara uma brisa constante e suave impulsionava-nos e o sol punha-se atrás do Pão de Açúcar, tornando a cena ainda mais bela e impressionante”. Como fizera Jemima, 45 anos antes, Elizabeth não fala de sua vida familiar. Restringe-se a escrever sobre as belezas do lugar, as pessoas que conhece, com as quais convive socialmente, os passeios que faz e as dificuldades que enfrenta. Certa feita, ao lado dos capitães Macquaire e Cleaveland, passou por um grande susto: eles saíram a passeio numa “pequena e antiquíssima carruagem”, puxada por duas mulas e “conduzida por um preto com aparência de macaco”, que não falava inglês como eles não falavam português. O cocheiro os levou por um caminho suspeito, onde parou a carruagem. Começou, então, a falar em português e a gesticular, como se estivesse furioso. Uma multidão rodeou os visitantes, que não entendiam o que estava acontecendo. “Incapazes de compreender uma única palavra, ficamos paralisados no lugar onde estávamos, com muito medo.” Elizabeth diz ter pensado que a sorte estava contra eles e “o passeio seria um fiasco”. A francesa Rose Freycinet, muito mais alegre do que as inglesas, fala até demais sobre o marido Louis, comandante do navio Uranie. Sobre sua chegada ao Rio de Janeiro, em 6 de dezembro de 1817, afirma: “O tempo estava magnífico e pudemos deliciosamente repousar os olhos na bela vegetação desta parte do Novo Mundo”. Um oficial da Casa Real subiu a bordo e comunicou aos viajantes que “o rei acolheria os franceses da melhor maneira possível e providenciaria tudo o que lhes fosse necessário”. Teve mais sorte do que Jamima e Elizabeth. Rose ficou feliz em encontrar compatriotas, pessoas que a fizeram sentir-se à vontade e bem-vinda. Mas não gostou nada de saber de alguns costumes da terra, como o que mandava qualquer pessoa – “não importando a sua posição social ou idade” – ajoelhar-se, na rua, à passagem do rei, mesmo que fosse na lama, o que ela classificou de “constrangedora cerimônia”. O seu olhar sobre a família real não foi nada positivo. Em companhia de amigos, Rose teve a oportunidade de participar de uma cerimônia religiosa, em que Dom João VI e sua família estiveram presentes. Ela sentou-se em frente à realeza, podendo observá-los e analisá-los por um bom tempo. “O rei parece estar bem -- diz a francesa --, mas é um homem de pouca majestade. O príncipe é alto e bastante bonito, mas suas maneiras são péssimas e a sua pessoa, vulgar. Vestia-se, na ocasião, com um fraque marrom e uma calça de nanquim, traje bastante ridículo para as 8 horas da noite, numa grande festa pública. Ainda que mais simples, o traje do rei era bem melhor; além do mais, ele é um homem de idade, a quem ser permite mais.” Na descrição de Rose, ninguém merece elogios entre os nobres, nem mesmo a princesa austríaca Maria Leopoldina, que desposara Dom Pedro I, em maio de 1817.  “As maneiras da princesa real, a meu ver, em nada lembram a postura nobre e cerimoniosa que se cultiva na corte da Áustria; aqui, ao que parece, a princesa é descuidada tanto com seus trajes quanto com sua aparência.” As três autoras comparam o Brasil com seus países, em que a terra visitada as encanta por suas belezas naturais. A sociedade, porém, é vista como inferior às da Inglaterra e França. Nos relatos surgem preconceitos em relação aos portugueses, que consideram preguiçosos, sujos e grosseiros. As mulheres são criticadas pelo seu comportamento, dando a entender que são recatadas durante o dia, mas não à noite. Mulheres viajantes no Brasil (1764-1820) é de fácil e agradável leitura. Fica aqui a minha sugestão para quem tem curiosidade sobre o Brasil dos séculos XVIII e XIX. *Nubia Silveira é jornalista. Foto da capa: Divulgação. Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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Especialistas alertam que incêndios em vegetação são, em geral, intencionais.

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Especialistas alertam que incêndios em vegetação são, em geral, intencionais.
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Embora a seca intensifique os incêndios, a principal causa são queimadas intencionais para limpar áreas desmatadas Especialistas ressaltam que, embora o clima esteja extremamente propício à propagação do fogo, é necessária uma ação intencional para iniciar os incêndios. Mesmo em condições de seca e calor intensos, fontes acidentais, como bitucas de cigarro, cacos de vidro ou latas, têm impacto insignificante nas queimadas que destroem a fauna, a flora e afetam todo o Brasil. Christian Berlinck, especialista em ecologia do fogo do ICMBio, explica que para iniciar um incêndio é necessário um calor de aproximadamente 300°C. No entanto, medições indicam que cigarros raramente ultrapassam 150°C, e a maioria não chega a 100°C. Estudos conduzidos pelo grupo de Berlinck revelam que apenas um em cada 100 cigarros atinge uma temperatura suficiente para iniciar um pequeno foco de fogo. O mesmo ocorre com cacos de vidro e reflexos de latas, que em experimentos não ultrapassaram 100°C. Na Amazônia, os incêndios geralmente ocorrem em áreas desmatadas que foram "limpas" de troncos e galhos para grilagem ou expansão ilegal de propriedades rurais. Além disso, há casos em que o fogo é utilizado para evitar a fiscalização da extração ilegal de madeira. Em outros biomas, quando os incêndios não são ilegais, são moralmente questionáveis. Historicamente, o fogo tem sido utilizado para manejo de plantações, pastagens e queima de lixo, sendo a forma mais simples e econômica. No entanto, com o clima cada vez mais adverso, cientistas alertam há anos, sem sucesso, que essas práticas são inviáveis durante os períodos de seca, quando o fogo rapidamente se descontrola. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a Amazônia e o Cerrado registraram aumentos de 98% e 100%, respectivamente, nos focos de calor em comparação ao ano passado. Na Mata Atlântica, o aumento foi de 124%. No entanto, o Pantanal apresentou um crescimento explosivo de 1.946%. Não é surpreendente que o Mato Grosso do Sul tenha o maior aumento percentual entre os estados brasileiros, com um crescimento de 669% em relação ao acumulado até este período de 2023. A Amazônia, por sua vez, tem a maior área queimada, com aproximadamente 5,7 milhões de hectares.   Irá cabar com tudo? Karla Longo destaca que, embora o problema esteja mais evidente e frequente agora, a poluição causada pela queimada de vegetação natural é uma questão que persiste há décadas. Nesta época do ano, a poluição nas cidades brasileiras está mais associada aos restos carbonizados de florestas, campos e pantanais do que às emissões de veículos e indústrias. Ela ressalta também que os danos à saúde causados pelo fogo são suportados pela população em todo o país.   Com informações de O Globo Foto: Agência Brasil/Marcelo Camargo      

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O presidente em seu labirinto

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O presidente em seu labirinto
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Por JEAN MARC VON DER WEID* Introdução: Ao começar a escrever este artigo fui me dando conta de que o foco indicado no título estava errado ou, pelo menos, não devia ser prioritário neste momento. Queria, inicialmente, avaliar os problemas do presidente Lula na sua relação com o Congresso, mas a questão é mais ampla do que a crise permanente entre os dois poderes da República, neste governo. O problema não é conjuntural, embora existam agravantes específicos na relação entre Lula e, simbolicamente, Lira e Pacheco. O que está em jogo, e isto foi se instaurando paulatinamente, é a relação entre o Executivo e o Legislativo, permeada ainda pela relação deste último com o Judiciário. O que temos no presente é uma deformação estrutural no equilíbrio desejável entre os três poderes, em especial a apropriação indébita das funções do Executivo pelo Legislativo. Como chegamos a isso? Uma história tenebrosa. Olhando para a história das instituições, o poder Executivo sempre foi predominante no nosso presidencialismo hipertrofiado. Em particular, o Executivo sempre teve a responsabilidade de definir o Orçamento Federal. O predomínio do Executivo exacerbou-se durante os 21 anos de ditadura, que manteve sob controle os outros dois poderes, eventualmente intervindo na composição e na forma de atuação destes últimos. Esta extrema centralização do poder gerou na sociedade a necessidade de reequilibrar as forças, que se traduziu em uma forte redução do poder do Executivo na Constituinte de 1988. Não vou entrar nos detalhes da legislação então promulgada, mas apenas registrar que o Congresso passou a interferir pesadamente na definição do orçamento proposto pelo Executivo. Soma-se a esta nova distribuição de poderes um dado marcante na redemocratização: a pulverização dos partidos, fruto de anos de redução artificial da representação política em um bipartidarismo forçado, e a própria anulação do fazer político. Ao se tirar a tampa da panela de pressão com a revogação do Ato Institucional número dois, surgiram agremiações em profusão, em sua quase totalidade sem identidade programática e respondendo a composições de forças políticas locais que se somavam em partidos nacionais que eram pouco mais do que aglomerados oportunistas. Três exceções marcaram este período de reorganização partidária: o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT). Este último carregou uma mistura de adesões sem princípios, com definições programáticas de caráter nacionalista, muito centrado na figura de seu criador e líder carismático, Leonel Brizola. Os dois primeiros eram partidos com definições programáticas mais abrangentes, o primeiro mais à esquerda, exprimindo posições voltadas, sem muita precisão, à construção de um país socialista e o segundo mais voltado a um desenvolvimento econômico de caráter liberal, muito embora tivesse, inicialmente, pelo menos, posições reformistas do ponto de vista social. Não por acaso, o PSDB e o PT foram protagônicos ao longo de um largo período, de 1993 a 2016, disputando todas as eleições presidenciais. Também não por acaso, ambos os partidos não conseguiram eleger bancadas na Câmara e no Senado que dessem suporte coerente à execução dos programas de seus eleitos para a presidência da República. A fragmentação partidária não se manifestava apenas pelo número de partidos, mas também pelas inúmeras divisões internas em cada um. O maior deles, o PMDB, aglutinou antigos opositores ao regime militar oriundos de tudo quanto é nuance política, da direita (o clã Barbalho) ao centro-esquerda (Miguel Arraes), passando por políticos do centro democrático (Pedro Simon) e um grande número de fisiológicos que aderiram ao partido quando este foi para o governo Sarney. O sistema eleitoral herdado do regime militar e não alterado pela Constituinte privilegiou os políticos que se elegiam pelos chamados “rincões”. Em pequenos ou mais atrasados Estados, sobretudo do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, mas também em áreas rurais de outras regiões, o controle do eleitorado por oligarquias locais seguia vigente, como já fora antes no regime militar. E nestes Estados, o número de eleitores por deputado eleito era muito menor do que nos Estados mais populosos e desenvolvidos do Sudeste e do Sul. Este casuísmo eleitoral permitiu a dominância de políticos paroquiais, com “currais eleitorais” nos rincões. Nada disso faciliatava a formação de partidos com identidade política e programática nacionais. Nos seus 8 anos de governo, o presidente Fernando Henrique Cardoso teve que depender de alianças de partidos para poder governar com o apoio do Congresso. Isto gerou, entre os estudiosos da política, o conceito de “presidencialismo de coalizão”. FHC governou com um forte apoio de partidos menos definidos programaticamente, mas ideologicamente conservadores e identificados com o liberalismo, como o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e o Partido Frente Liberal (PFL). Estes partidos (e outros de menor expressão) não davam seu apoio a um programa do PSDB, mas buscavam um lugar ao sol nas benesses do poder. A distribuição de cargos e nomeações de parentes e apaniguados de deputados e senadores foi a moeda de troca para o apoio. O caso mais notório, porque exigia maioria de 2/3 do Congresso para aprovar um Projeto de Emenda Constitucional, foi a instituição da reeleição para cargos executivos. A compra de votos para assegurar a reeleição de FHC só não resultou em um processo judicial porque o controle dos instrumentos pelo executivo era forte. O PT, o PSB e o PDT ficaram clamando no deserto, denunciando a patifaria. Mas o mais importante é que se estabeleceu um precedente e os políticos fisiológicos de todos os lados começaram a lamber os beiços e afiar as garras. A eleição de Lula colocou o PT e os partidos que o apoiaram no segundo turno, PSB, PDT e PCdoB no governo, mas claramente não no poder. A maioria da Câmara e do Senado era de oposição conservadora, muito embora a vertente mais importante era a fisiológica e muitos estavam prontos a aderir; por um preço, é claro. A posteriori soube-se que o “primeiro-ministro” de Lula, José Dirceu, propôs a solução tucana para governar, chamando o PMDB e alguns partidos de centro direita para o governo, mas que Lula e o PT não toparam esta “compra de votos” no atacado. Esta proposta de frente de governo fazia sentido do ponto de vista pragmático, até porque o PT e o presidente Lula já tinham abandonado as propostas mais ousadas do programa da campanha antes mesmo da eleição, com o manifesto que ficou conhecido como “Carta aos brasileiros” e que poderia ser melhor intitulada como “Carta aos banqueiros”. A nomeação de Palocci (inspirador e provável autor da carta) como ministro da Fazenda e de alguns ministros ligados a setores econômicos fortes com apoio de bancadas importantes como Roberto Rodrigues e Luiz Fernando Furlan, vinculados ao agronegócio, mostravam uma intenção de buscar conciliar interesses de setores da classe dominante. Foi uma manobra mal concebida, pois mesmo com barretadas seguidas a estes setores, o reflexo no Congresso não era automático, faltava a mediação política. O governo Lula não teve dificuldades em aprovar seu primeiro projeto parlamentar importante, a Reforma da Previdência, já que o seu caráter de retrocesso de direitos era visto com simpatia pelo empresariado, pela mídia e pela maioria dos parlamentares. Para os setores mais à esquerda do PT, o choque foi grande e levou ao racha que criou o PSOL, mas o impacto foi mais aparente do que de fundo. O PT, inclusive várias de suas alas mais esquerdistas, entubou a crise, engoliu em seco e seguiu no governo, aceitando que era o preço a pagar para avançar com os programas sociais. Daí para frente foi preciso fazer mais para garantir os votos necessários ao governo. Foi quando surgiram os pagamentos dirigidos a alguns partidos e à deputados individualmente, que ficaram conhecidos como “mensalão”. Como o próprio presidente Lula admitiu mais tarde, o governo fez “o que todos fizeram antes”, ou seja, pagamentos a um “caixa dois”. Considerado um crime menor, esta forma de corrupção dos parlamentares, feita com recursos públicos, acabou gerando a primeira grande crise dos governos petistas, com direito a julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, que condenou um punhado de deputados e, sobretudo, três personagens importantes do PT: José Dirceu, José Genoíno e o tesoureiro Delúbio Soares. A eleição de Dilma Roussef não foi acompanhada por uma melhoria na força parlamentar dos partidos de esquerda, que continuaram amplamente minoritários. O problema de governar em minoria parlamentar continuou presente e o modelo de compra de apoios manteve-se semelhante, só que em escala maior. Recursos da Petrobras e outras empresas estatais foram desviados em larga escala para comprar, não mais no varejo, mas no atacado, envolvendo partidos fisiológicos que abundavam no Congresso. A moeda de troca eram contratos das estatais com empreiteiras poderosas que, é claro, ganhavam, através de superfaturamentos de projetos, muito mais do que pagavam a partidos e congressistas individuais. Tudo isso explodiu no inquérito chamado de Lava Jato, amplamente explorado pela mídia para destruir o governo Dilma, que estava fortemente hostilizado pelo empresariado por suas orientações heterodoxas na economia. Apesar disto, Dilma se reelegeu (batendo o tucano Aécio Neves no fotochart) e teria completado o seu segundo mandato não fosse o rompimento com o personagem chave do fisiologismo, o presidente da Câmara Eduardo Cunha. Os parlamentares beneficiários da distribuição de benesses não teriam dado ouvidos ao clamor da mídia incensadora do nefando Sérgio Moro, se não tivesse havido o impasse entre Cunha e o PT e a decisão do primeiro de aderir ao golpe. Casuísmos legais (as chamadas “pedaladas fiscais”) e as articulações do vice- presidente Michel Temer, somados aos movimentos de massa da direita renascida nas manifestações de 2013 e a gritaria cínica da mídia (que não fez nada nem de longe parecido nos escândalos anteriores do Banrisul e outros) criaram o clima para a defenestração de Dilma. Os fisiológicos no Congresso farejaram o fim da era petista e completaram o quadro do impeachment da nossa primeira presidente. Dilma ainda tentou deter a debandada, cedendo à ofensiva parlamentar para ampliar o controle da execução do orçamento, tornando obrigatórias as emendas individuais e de bancada. Mas foi muito tarde. Não discuto aqui o cinismo de todos estes personagens, a começar pelo Moro, explorando e extrapolando um caso real de corrupção. Outros casos existiram antes sem este estardalhaço e desenlace, mas a composição das forças políticas e econômicas era outra e ignorou as manobras escusas de Sarney e FHC. Também foi outro o quadro político no impeachment de Collor, já que este não tinha oposição política nem ideológica nas classes dominantes ou na mídia. Collor cai por soberba, por tentar ser mais do que podia e sem fazer as concessões necessárias ao fisiologismo. Tentou pressionar o Congresso, apelando para o “povo”, mas não tinha base para tanto. Jânio Quadros já tinha pagado com o seu mandato uma jogada semelhante, mas a renúncia o livrou de um impeachment. Temer governou, no seu interregno, de acordo com banqueiros e empresários e fez um estrago nos direitos sindicais e trabalhistas e não teve problemas em arregimentar os partidos de direita para ter apoio no Congresso. Como ex-presidente da Câmara, ele era versado na arte de distribuir benesses. Apesar de flagrado em negociações de corrupção com o dono da JBS, ele livrou-se de qualquer percalço até deixar a presidência. O trauma do impeachment (o segundo em 15 anos) deu mais fôlego ao Congresso, em um movimento de empoderamento que foi num crescendo no governo do energúmeno, Jair Bolsonaro. Apesar de ter uma bancada de seguidores surpreendentemente forte nas eleições de 2018 embora espalhados em várias legendas. Bolsonaro não tinha um partido forte que o apoiasse e tentou governar através de alianças com grupos de interesse e ignorou os partidos. Queria governar com as bancadas BBB (Boi, Bala e Bíblia), suprapartidárias, mas estas só se uniam em seus interesses específicos. Tentou pressionar o Congresso, apelando diretamente a seus seguidores, mas teve mais derrotas que vitórias, fora a Reforma da Previdência. Com a queda vertiginosa de apoio na mídia convencional e uma crescente oposição à sua postura na pandemia, Bolsonaro acabou se entregando nas mãos de Artur Lira para não ser impichado e o empoderamento do Legislativo frente ao Executivo acelerou-se. Bolsonaro, apesar da forte e sinistra base parlamentar que dispunha, não encontrou eco para suas manobras golpistas. O instinto dos ratos deve ter acometido os fisiológicos que puderam sentir o cheiro de queimado. Entregar o poder ao candidato a ditador era dar um tiro no pé, deve ter calculado a maioria. Melhor um Lula enfraquecido no governo, passível de ser chantageado pela maioria parlamentar, do que um Bolsonaro com apoio militar e miliciano, disposto a assumir o poder total. E assim chegamos ao labirinto no seu formato atual. A que ponto chegamos! As emendas individuais dos parlamentares não são uma novidade, mas as regras da sua definição e liberação vêm sendo modificadas ao longo dos últimos 10 anos. Inicialmente os valores eram relativamente pequenos, condicionados a negociações com ministérios para definir escopo e prioridades e sujeitos à vontade do Executivo para serem liberados. E viraram moeda de troca para votações no Congresso. As emendas individuais, hoje, aumentaram muito em valor, tornaram-se impositivas e não passam mais por negociações sobre conteúdo e prioridades com o Executivo. Esta mudança, aparentemente, é de caráter democrático, já que igualava o acesso a todos os parlamentares, com os mesmos valores, anulando o balcão de negócios do executivo na sua relação com o Congresso. Na prática, no entanto, o efeito desta modalidade de peça orçamentária foi nefasto para o país. Não se trata mais do Congresso alterar a Lei Orçamentária Anual, direito assegurado na Constituição. O projeto orçamentário do Executivo responde a uma lógica macroeconômica e social inspirada em uma estratégia de desenvolvimento e um diagnóstico das carências maiores da população. As alterações introduzidas pelo congresso tem sido, frequentemente, uma série de casuísmos para privilegiar setores da economia e da população, pervertendo a matriz de programação oferecida pelo Executivo. Apesar disso, o escopo da LOA se mantém, mais ou menos aleijado, nacional. As emendas individuais (e as outras que analisaremos adiante) ferem o espírito do funcionamento do Executivo nacional, com uma crescente apropriação de recursos para projetos pulverizados, dirigidos para aplicação nas bases eleitorais de cada parlamentar, em temas e públicos escolhidos por eles. Os congressistas argumentam que eles conhecem melhor do que o executivo as necessidades do povo, mas a lógica dos projetos nas emendas sempre foi a visibilidade e sua conseguente apropriação eleitoral. E, não esqueçamos, a lógica de facilitar o financiamento de empresas executoras próximas aos proponentes. Alguns chamaram este desvio de “municipalização do orçamento”, mas o epíteto me parece incorreto. Um orçamento municipal trabalha, ou deveria trabalhar, em um escopo abrangendo a totalidade dos problemas da população que nele vive. Se elaborado com participação da vereança, ele traduz uma visão de diferentes setores que se expressam politicamente nas eleições locais. As emendas individuais não têm nada a ver com o orçamento municipal, mas com o interesse dos parlamentares que as definem. É uma extrema pulverização da utilização dos recursos. Por outro lado, a emenda individual tornou-se um poderoso instrumento de manipulação das eleições, com vantagens cada vez maiores para os que buscam reeleição em comparação com os outros candidatos. Estamos em pleno processo de formação de “currais eleitorais” de novo tipo e os parlamentares de hoje assumem o posto dos antigos “coronéis”, oligarcas que controlavam uma base de eleitores com a distribuição de prendas em cada pleito. Finalmente, mas não por último, este tipo de emendas, com recursos dirigidos a prefeituras ou, mais frequentemente, a organizações não governamentais controladas ou próximas dos parlamentares que as formularam, tornaram-se instrumentos de corrupção direta, com desvio de recursos, superfaturamentos, favorecimento de empresas executoras. Uma supermáquina de apropriação indébita de recursos públicos, corrupção diluida em milhares de emendas ao longo dos anos. As emendas individuais foram seguidas pelas emendas de Bancada e de Comissão (forma de organização temática do Congresso). supostamente, estas emendas deveriam aprovar projetos de caráter nacional ou regional, com temas que aparecem nas LOAs ou não. De fato, estas emendas acabaram servindo para novas pulverizações de recursos, desta vez em negociações internas em cada partido ou em cada comissão parlamentar, sem qualquer referência quer às prioridades definidas nas LOAs, quer a qualquer outra lógica estratégica para o país. Elas serviram para reforçar o poder dos dirigentes de Bancadas e de Comissões, em balcões de negócios para garantir apoios aos chefes. Logo a emenda de Bancada tornou-se também impositiva, retirando qualquer capacidade de negociação do executivo entorno a suas prioridades orçamentárias. Não contentes com este formato e buscando despistar possíveis investigações do Tribunal de Contas da União, os parlamentares criaram as emendas de Relator (também conhecidas como emendas secretas) e as emendas “PIX”. Nestas não há qualquer transparência: não se sabe quem fez a proposta, quem recebeu o dinheiro, qual a natureza do projeto nem quem o executa. É mole ou querem mais? Tem mais. As emendas de Relator, estão totalmente sob o controle do relator da LOA, hoje sob as asas dos presidentes da Câmara e do Senado. Trata-se de um espetacular instrumento de controle político das casas parlamentares por seus presidentes, dando a Lira e Pacheco o poder de pressionar o executivo como nunca no passado. No frigir destes ovos, acabamos por chegar ao descalabro atual, quando os parlamentares controlam um orçamento (pulverizado em valores e em foco) de 50 bilhões de reais por ano, enquanto o governo federal tem apenas 70 bilhões para investimentos não carimbados constitucionalmente ou por alguma legislação. Enquanto isso, a Reforma Tributária proposta pelo governo federal foi profundamente deformada pelos parlamentares, para isentar setores da economia com os quais tem relações ou apoio financeiro. Com isso, a fonte de recursos, já bem minguados pelas emendas, fica ainda mais precária, já que os parlamentares decidiram privilegiar, por exemplo, o agronegócio, com amplas isenções de impostos. Por um lado o Congresso asfixia o executivo enquanto, por outrol lado,suga seus recursos sem dó nem piedade. Como escrevi no começo deste artigo, isto não é apenas um problema do Lula ou do governo petista. Será o problema de qualquer governo que pretenda cumprir o seu papel constitucional. Estamos no pior dos mundos com este legislativo que se locupleta com os recursos públicos e, sem qualquer constrangimento, cria dificuldades para o executivo governar. E denuncia qualquer limitação na ação do governo, como se não tivesse nada a ver com ela. Não estamos em um regime parlamentarista, onde um primeiro-ministro escolhido pelo Congresso apresenta um projeto orçamentário cuja responsabilidade é do próprio parlamento. Em um regime parlamentarista, esta mixórdia orçamentária seria claramente de responsabilidade do Congresso e os eleitores saberiam de quem cobrar as desgraças. No nosso regime presidencialista atrofiado, os eleitores cobram as desgraças do executivo, sem noção de que o legislativo é o grande responsável por elas. Para escapar deste labirinto vai ser preciso um tsunami eleitoral capaz de criar uma base parlamentar que decida se empenhar em uma reforma política profunda, redefinindo as relações de força entre os poderes da República. A eliminação de todas estas emendas casuísticas seria um passo fundamental para reestabelecer a capacidade do Executivo governar, mas outras questões teriam que vir à baila e todas elas espinhosas por derrubar privilégios parlamentares acumulados ao longo do tempo. Seria preciso, por exemplo, redefinir quantos deputados teria cada Estado, seguindo a lógica republicana de termos um só coeficiente eleitoral em todo o país, ou seja, cada deputado seria eleito pelo mesmo número de eleitores. Se adotada esta norma, e mantido o número atual de deputados, o rateio significaria diminuir o número de deputados em Estados menos populosos e aumentá-lo naqueles com mais eleitores. Imaginem a gritaria! A alternativa seria ampliar o número total de deputados, em uma Câmara que já é muito numerosa (e dispendiosa). Outras regras de difícil aprovação teriam que ser aprovadas, como cláusulas de barreira mais restritivas para diminuir a fragmentação partidária. Ou a redefinição do processo eleitoral, adotando sistemas mais racionais como o sistema proporcional misto, com voto em listas partidárias e em candidatos individuais. A lista das reformas a serem discutidas e implementadas para aperfeiçoar o nosso sistema político e eleitoral é enorme e esbarra sempre na contradição de fundo: quem teria que cortar na carne são os próprios congressistas, eleitos neste sistema viciado de hoje. No meio deste caos, é importante ressaltar o papel desejável do Judiciário, em particular do Supremo Tribunal Federal. O STF, por iniciativa do ministro Flávio Dino, suspendeu as emendas, primeiro as de Relator e Pix e, depois mesmo as individuais e de bancada. Aposição foi endossada pelo plenário, com o argumento da falta de transparência e falta de critério na definição dos abjetivos, temas e escopo das emendas. No entanto, o STF não se debruçou na entorse aplicada na legislação constitucional que dá ao executivo o direito de definir o ordenamento orçamentário, gantindo-se a apreciação das duas casas na votação da LOA. O “acordo” para normalizar e regulamentar as emendas, após negociações entre os três poderes, restringiu-se a discutir a necessidade de critérios “técnicos” e regras de transparência, mas nada foi feito para evitar a presente diluição dos gastos orçamentários, que quase igualam os do executivo, em projetos paroquiais. A retaliação do Legislativo contra o Judiciário aparece em vários projetos de lei que vão desde a roubar o papel do STF como árbitro final do que é ou não legal no país até controlar a liberação de verbas pedidas pelo judiciário. Noves fora propostas de impeachment contra ministros que não agradam os parlamentares. A luta de foice do legislativo para ampliar o seu poder de mando no país e dominar o executivo e o judiciário não tem prazo para terminar e o que está em jogo é algo mais profundo: qual o regime político que devemos adotar? Na prática, estamos longe do que define a Constituição e aquilo que mais de um referendo confirmou. O nosso regime é presidencialista, ou deveria ser. Estamos vivendo um crescente processo paulatino de nos tornarmos um regime parlamentarista bastardo, onde o legislativo tem todos os bonus e nenhum dos ônus. E não há reação do STF em relação a isto. Dar a volta neste rumo é difícil de realizar, mas algo terá que ser feito ou a crise institucional que atrofia o executivo nos levará para um buraco ainda maior do que aquele onde estamos.   *Ex-presidente da UNE, entre 1969 e 1971; Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983; E Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016 Milit   Foto: Freepik Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.    

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