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TRILHÕES, BILHÕES, JUROS E O PENTE FINO

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TRILHÕES, BILHÕES, JUROS E O PENTE FINO
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Por PAULO KLIASS* A reiterada obsessão manifestada - dia sim, outro também - pelo Ministro Fernando Haddad com a implementação da austeridade fiscal extremista vai criando um conjunto amplo de problemas para a agenda governamental. A adesão unilateral aos diagnósticos e às propostas do campo do financismo provocam consequências sérias e danosas para qualquer programa de natureza desenvolvimentista do governo. Afinal esta era uma das grandes esperanças depositadas pela maioria da população brasileira ao confiar um terceiro mandato para o Presidente Lula em outubro de 2022. Ao convencer o seu chefe a respeito da importância de apresentar um roteiro baseado na adoção do bom mocismo e na incorporação do receituário neoliberal como diretriz de ação do governo, o responsável pela pasta da Fazenda impõe a lógica da paralisia da administração pública federal. Trata-se de travar qualquer iniciativa que envolva a necessidade de recursos orçamentários que estejam fora da órbita da contenção exigida pelo Novo Arcabouço Fiscal. Essa foi a intenção subjacente ao desenho da Lei Complementar 200/23, concebido por Haddad em estreita articulação com o Presidente do Banco Central (BC) nomeado por Bolsonaro e com alguns presidentes da banca privada. A revogação do Teto de Gastos da era Temer foi condicionada à introdução das novas regras de austeridade. Mais à frente, o Ministro da Fazenda convenceu o Presidente da República a respeito da necessidade de se buscar a mítica meta de “zerar o déficit primário em 2024”. Essa procura tresloucada por um objetivo praticamente impossível de ser alcançado em termos de política econômica faz do Brasil um país singular. Afinal, ao impor uma trajetória que caminha contra a corrente daquilo que se pratica na grande maioria dos países, seu governo se compromete de moto próprio com uma rigidez de austeridade fiscal que já foi há muito tempo abandonada pelas próprias nações mais desenvolvidas. O arcabouço é um calabouço fiscal! Ora, ao colocar em movimento as diferentes peças das políticas públicas nesse tabuleiro de xadrez mal ajambrado, parece que só existe mesmo a saída do auto xeque. Essa é a explicação para as sucessivas tentativas de trazer para a pauta do Palácio do Planalto algumas medidas visando à retirada de pisos constitucionais para despesas com saúde e educação, além da desindexação dos benefícios previdenciários em relação ao salário mínimo. Ao incorporar para si a lógica austericida de que os orçamentos da área social são fontes de “gastança generalizada”, os responsáveis pela economia no governo patrocinam uma verdadeira contaminação financista em um mandato que pretendia realizar 40 anos em 4 e fazer mais e melhor do que havia feito entre 2003 e 2010. Ocorre que a narrativa da necessidade de instaurar a austeridade para receber da turma da Faria Lima a certificação de um governo efetivamente marcado pela responsabilidade fiscal se converte em um verdadeiro tiro no pé de Lula. Tanto é que o Presidente foi convencido a promulgar a Lei nº 14.973/24, que contém dispositivos claramente contrários aos interesses da grande maioria da população. Por exemplo, estão presentes ali elementos que autorizam a cassação de direitos previdenciários sem as necessárias etapas prévias de averiguação e defesa de envolvidos em supostas irregularidades na concessão de tais direitos. No entanto, toda esta parafernália antidemocrática e que pode estar na base de medidas autoritárias e redutoras de direitos só veio à tona em razão da cruzada de Haddad em prol de uma austeridade perdida. O Ministro precisa levar em frente cortes nos orçamentos deste ano e do próximo para que seja possível cumprir a meta de zerar o déficit primário. Como as promessas pouco sérias de elevação da receita não foram efetuadas, só lhe restou a opção de cortar nas políticas sociais. Afinal, reconhecer o equívoco da estratégia e encaminhar alguma proposta de aceitar um déficit em 2024 e 2025 não lhe passa pela cabeça de forma alguma. O que diria a turma do financismo face a tal confissão de irresponsabilidade? Cortes nos pobres e bilhões para juros. A única certeza é que a solução apresentada pelo andar de cima é sempre a mesma. Cortar na carne dos pobres. E lá vem o governo Lula implementar cortes nos valores - ditos “extravagantes” pelos escribas a mando da finança - recebidos pelas famílias que são contempladas pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC). Uma loucura! Trata-se de um valor mensal de um salário mínimo atribuído a famílias que contem com pessoas portadoras de deficiência ou que tenham 65 anos ou mais de idade sem nunca ter contribuído para a previdência social. E para assegurar o enquadramento a renda desta família não pode ser superior a ¼ de um salário mínimo per capita. Pois são exatamente estes “privilegiados” que passam a ser os criminalizáveis da vez e que receberão uma operação pente fino, com o intuito de acabar com essa “gastança absurda” (sic). O argumento vergonhoso é que o governo precisa cumprir a meta do arcabouço e, para tanto, necessita arranjar de onde cortar R$ 26 bilhões do orçamento para zerar o déficit primário. Ocorre que as verdadeiras cifras são outras. Afinal, já foi dito que governar é estabelecer prioridades. Ao que tudo parece indicar, aquelas que Haddad estabelece não levam em conta a realidade econômica e financeira do setor público como um todo. Não há um único movimento em direção à busca de fontes de recursos localizados no topo da pirâmide da desigualdade ou no corte de despesas com esse pessoal que vive às custas da farra financista do Estado brasileiro. Apenas no mês de julho passado, o Tesouro destinou ao pagamento de juros da dívida púbica mais de R$ 80 bi - algo equivalente ao triplo do que se pretende cortar em direitos sociais ao longo do ano todo. A área econômica afirma a todo momento que não há recursos e que por essa razão se faz necessária uma política de austeridade fiscal para buscar o equilíbrio nas contas públicas. Mentira! Os recursos existem e estão à disposição do governo. Tanto é que ao longo dos últimos 12 meses foram transferidos R$ 870 bi a título de despesas financeiras para o cumprimento da obrigação de juros aos detentores de títulos da dívida púbica. O detalhe é que tais gastos são classificados como “não-primários” e, portanto, não entram no cálculo do superávit primário. Mera tautologia metodológica. O fato concreto é que os valores existem: eles saíram da contabilidade do Tesouro Nacional e foram depositados nas contas dos setores privilegiados, os verdadeiros responsáveis pela gastança, aqueles que vivem às custas da farra fiscal em favor do financismo. Vamos a alguns exemplos de dimensão trilionária. Recursos existem e são trilionários. A famosa Conta Única do Tesouro Nacional junto ao Banco Central apresenta, em sua última divulgação, um saldo credor superior a R$1,7 trilhão. Trata-se de recursos consolidados que o governo mantém para realizar operacionalmente todas as suas despesas. Mas o discurso oficial sempre se “esqueceu” da existência de tal fonte e criou normas para que não houvesse apuração sistemática do montante que sempre termina por desnudar o argumento falaciosos da “falta de recursos”. A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) é o órgão encarregado de apurar e cobrar as dívidas tributárias não pagas ao governo federal. Em geral, trata-se de um enorme estoque de valores devidos e sonegados por pessoas físicas e pessoas jurídicas. No entanto, o percentual mais expressivo é atribuído a grandes conglomerados empresariais. O total da chamada Dívida Ativa da União é estimado em R$ 2,9 trilhões. Ao contrário do pente fino prometido contra os mais pobres, o que se faz neste caso é o lançamento de generosos planos anuais de negociação de tais montantes (os conhecidos REFISs), com anistia a parte das dívidas e parcelamento dos valores não pagos em 15 ou 20 anos sem cobrança de juros. Ainda no que se refere à prioridade na alocação dos gastos orçamentários, vale recordar o impacto macroeconômico de longo prazo provocado pela rubrica financeira, ou seja, pelo cumprimento dos serviços da dívida pública em nosso País. O governo sempre reafirma que não tem recursos, mas paga pontualmente os valores relativos aos juros dos títulos da dívida pública. Desde que a série passou a ser apurada e divulgada de forma sistemática pelo Tesouro Nacional o montante impressiona pelo seu volume. Entre janeiro de 1997 e julho de 2024, por exemplo, foram alocados R$ 10 trilhões a esse título. E ainda tem gente subordinada a Lula que aponta o dedo para os gastos do BPC como sendo os responsáveis pelo suposto desequilíbrio nas contas púbicas. Mas o governo insiste em reproduzir o discurso e as políticas preconizadas pelo financismo. Deixa de lado a busca de recursos junto ao grande capital e aos grupos do topo da concentração de renda e de patrimônio para alcançar melhores resultados fiscais. Mas mantém-se impiedoso e rigoroso na busca de soluções que apenas agravam a já difícil situação dos mais pobres e dos mais desfavorecidos. Uma completa inversão de valores democráticos e republicanos, além de se converter em um caminho perigoso para a própria popularidade do Presidente da República. *Doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal. Foto: Agência Brasil Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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DAR SEGURANÇA ÀS NOSSAS VIDAS

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DAR SEGURANÇA ÀS NOSSAS VIDAS
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  Por VICENTE RAUBER* Segurança passou a ter um significado mais amplo. É poder continuar vivendo, de preferência com qualidade de vida. Exagero? A quantos desastres climáticos ainda sobreviveremos? No Rio Grande do Sul e especialmente em Porto Alegre, suportaríamos atravessar mais três inundações em 8 meses? Impossível? É melhor não apostar! A natureza está completamente desequilibrada, clama por sua regeneração! Prevenir é o melhor remédio! É necessário ter responsabilidade e realizar as atividades indispensáveis aos sistemas de drenagem e proteção contra cheias. Diques, comportas, casas de bombas e canalizações requerem manutenção permanente. Em Porto Alegre isto não é realizado ou, na melhor das hipóteses, não é realizado adequadamente nos últimos 4 anos! Não por acaso temos enormes alagamentos até em chuvas menores como as recentes. É a insuficiente limpeza de bocas-de-lobo, canalizações, galerias e arroios que provoca esta situação e não os insistentes fakes apresentados pela Prefeitura. É urgente recompor os Sistemas de proteção contra Cheias e de drenagem pluvial. Nos outros municípios, estes sistemas devem ser completados e colocados nas dimensões adequadas ou mesmo concebidos, projetados e construídos. E mantidos adequadamente. As águas merecem mais respeito. Sem elas não vivemos. Em nada combinam com lixo. Os resíduos  sólidos precisam ser reusados, reciclados em tudo quanto for possível. Óleo de cozinha usado deve ser separado e retornar à indústria para reprocessamento. Erva mate e cafés usados são adubos para hortas, jardinagens e agricultura. E o restante dos resíduos sólidos deve ser usado para compostagem de adubos ou tratado adequadamente em aterros sanitários com aproveitamento da gás metano gerado. Arroio não é Valão. Os municípios precisam e devem praticar permanentemente programas de educação ambiental nas comunidades e escolas. É necessário preparar bem melhor nossas cidades para os distúrbios climáticos. Mas não podemos aceitar esta situação como “novo normal”. Precisamos urgentemente construir um novo normal sustentável. Precisamos reduzir a emissão de Gases de Efeito Estufa – GEEs -, responséveis pelo sobreaquecimento global. Especialmente nos Estados e na União é necessário reduzir e, até tentar eliminar, as queimadas, derrubadas de florestas e destruição dos biomas, criminosas em grande parte. No Brasil são responsáveis por mais de 45% de toda a geração de GEEs. Em segundo lugar vem a agricultura e a pecuária, especialmente os seus equivocados métodos utilizados, caros, pouco produtivos e destruidores dos solos, que respondem por 25% dos GEEs. Devem ser substituídos pela ABC – Agricultura de Baixo Carbono -, aprovada em 2009, em Copenhague, na COP-15, com participação do Brasil. É possível produzir mais e melhor, com menos custos e sem destruir a qualidade dos solos. Em nosso Estado é necessário recompor a legislação ambiental, indevidamente atacada. Os essenciais Comitês de Gerenciamento de Bacias Hidrográficas precisam imediatamente ter condições de funcionamento para o cumprimento de suas finalidades. E, assim como o Nordeste brasileiro pode nos ensinar, devemos investir fortemente na reservação de águas, para o enfrentamento de nossas secas anuais e desenvolvimento das regiões. É nos municípios, onde a vida acontece, que podemos realizar grandes transformações. Obviamente continuam válidas as observações sobre enfrentamento da destruição dos biomas e o modo de produção do setor primário. Nos grandes centros urbanizados, como Porto Alegre, dois terços dos GEEs são produzidos pelos combustíveis fósseis, especialmente gasolina e diesel através do transporte. É preciso racionalizá-lo mais e valorizar profundamente a introdução de veículos elétricos em todas as modalidades. Teremos grande redução dos GEEs e praticamente redução total da poluição de gases venenosos e ruídos. A saúde e o meio ambiente agradecerão. Será uma das grandes conquistas de nossa época. Saneamento e meio ambiente podem fazer a grande diferença no meio urbano. Representam um excepcional investimento: Cada Real aplicado em água potável, coleta e tratamento de esgotos, coleta, reuso, reciclagem e tratamento de lixos, drenagem pluvial e proteção contra cheias poupa três Reais em sáude, além de propiciar desenvolvimento, postos de trabalho e renda e grande qualidade de vida. Nas cidades devem ser valorizadas ações integrantes do conceito de “cidades esponja”, que são a retenção das águas excedentes nas chuvas maiores. Já no inicio dos anos 90 iniciamos a implantação de bacias de amortecimento, locais onde são direcionadas as águas excedentes, podendo ser utilizadas em lavagens ou liberadas no sistema de drenagem posteriormente. Acrescentamos mais alguns aspectos essenciais do meio ambiente. Muito mais áreas verdes devem ser obtidas: (i) com a efetivação de praças e jardins já definidos no Plano Diretor como áreas verdes; (ii) nas áreas de risco, que devem ser reassentadas em locais seguros através de programas sociais permanentes de habitação; (iii) nas beiras de arroios e outras águas, recompondo a vegetação ciliar; (iv) ao longo das vias públicas, principalmente grandes avenidas; (v) nunca permitindo terras nuas, sejam públicas ou privadas. Devem ser incentivados, nos bairros, programas comunitários de efetivação das calçadas intercalando vegetação e lajes. (vi) No meio rural, em meio às plantações e campos da pecuária. As ações de saneamento e meio-ambiente reduzem fortemente a geração dos GEEs e são extraordinárias na captação dos GEEs, não permitindo a sua chegada à camada de Ozônio. Em dias ensolarados de verão, a diferença de temperatura junto ao asfalto e em parques como a Redenção chega a 10ºC. No caso, vale a pena estudar o caso de Medellin (Colômbia), ex-capital do tráfico, hoje referência internacional com a melhoria de seu clima e qualidade de vida, com seus mais de trinta corredores verdes. E o que cabe a nós cidadãos neste momento: analisar quais candidatos(as) tiveram e tem compromisso público com estas mudanças e elegê-los(as). Em Porto Alegre, entendemos que Maria do Rosário e Tamyres melhor representam esses compromissos. Podemos rapidamente construir cidades menos caras e com a segurança e qualidade de vida que merecemos. O Planeta agradecerá! *Engenheiro especialista em Planejamento Energético e Ambiental e ex-diretor do DEP (Departamento de Esgotos Pluviais), DEMHAB (Departamento Municipal de Habitação), CEEE, Petrobras/Refap e Banrisul Foto: Porto Alegre (RS), 19/06/2024 - Casas destruídas na ilha da Picada após chuvas e novos alagamentos. Foto: Bruno Peres/Agência Brasil Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.      

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O RESGATE DE JOÃO SIMÕES LOPES NETO

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O RESGATE DE JOÃO SIMÕES LOPES NETO
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Por  LOURENÇO CAZARRÉ* O resgate de João Simões Lopes Neto Filho e pai de juristas, o advogado Carlos Francisco Sica Diniz deu publicação, recentemente, ao maior e mais demorado processo de sua longa e bem-sucedida carreira: a folha-corrida de alguém chamado João Simões Lopes Neto. Os autos somam 439 páginas e serão lidos – tenho certeza – com gosto e paixão por todos os que amam o criador dos Contos gauchescos, hoje multidão. Essa abertura de resenha, apelando para a advocacia, arte que não domino, me ocorre depois de ler no posfácio do livro João Simões Lopes Neto, uma biografia -, de autoria de Sica Diniz e agora já em segunda edição – as seguintes afirmações: “Diniz, além de rastrear as quase já desaparecidas pegadas do escritor, bebeu… em novas, fecundas e privilegiadas fontes. Perseverou na procura pelo que restara dos seus papéis. Agiu como atuante e desprendido advogado que não poupa esforços para perseguir os meios de defesa do seu constituinte”. Primeira leitura Li duas vezes a primeira edição dessa biografia, que veio à cena faz vinte anos. A primeira leitura eu a atravessei logo após obter o exemplar, autografado para mim pelo autor, em agosto de 2003. A segunda leitura, muito mais aprofundada, ocorreu entre dezembro de 2019 e julho de 2020, quando rabisquei, em parceria com meu filho Érico, um roteiro cinematográfico sobre a movimentadíssima vida do neto do Visconde da Graça. Em plena pandemia, reli com muito cuidado aquela primeira edição, que tinha, digamos, apenas 312 páginas. Por que apenas? Porque nós, ledores de JSLN, queríamos muito mais, no que fomos atendidos, agora, pelo biógrafo. Considerando que os tipos da primeira edição eram de corpo maior, pode-se ter uma ideia de quanto material foi ajuntado. O livro cresceu em mais de 30 por cento, creio eu.   Roteiro Preciso fazer aqui uma breve pausa para os meus comerciais. O roteiro para um filme sobre Simões Lopes nasceu de um projeto do Érico, cineasta formado na Universidade de Brasília. Sabedor de que o nosso conterrâneo era um tocador de mil instrumentos, ele me sugeriu que escrevêssemos algo sobre o homem e não sobre o ficcionista. Por quê? Ora porque há dezenas de teses competentes sobre o trabalho literário de Simões, enquanto eu, vagal, preguiçoso, que não apresentei tese, não tenho sequer um mestrado em literatura. Assim, Érico e eu centramos o nosso trabalho nas inúmeras atividades – cívicas, culturais, educativas, teatrais, políticas, comerciais, jornalísticas e industriais -, muitas delas fracassadas, de um cidadão apontado como azarado por muitos dos que o conheceram. Para fazer esse trabalho, lemos o livro de Diniz com vagar e atenção dobrada, assinalando com marca-texto as muitas passagens que mais nos despertavam o interesse. Consultamos ainda os livros de Carlos Reverbel e de Ivette Massot sobre aquele homem que gostava de ser chamado de capitão da guarda nacional, embora sua performance marcial, na sanguinária Revolução de 1893, tenha sido discretíssima, para não dizer que foi nenhuma. Artinha de leitura e reportagens Voltemos ao livro de Sica Diniz. Acredito que os dois capítulos que mais despertarão o interessante dos fruidores dessa nova edição sejam os que tratam do Artinha de Leitura, livro descoberto apenas em 2008, e das reportagens de Simões – quando ele chega ao jornalismo, já maduro – sobre os subterrâneos da Princesa do Sul. Não vou me profundar sobre as peripécias da surpreendente descoberta do Artinha de Leitura, que dariam, apenas elas, matéria-prima para um belo curta-metragem. Por favor, leiam! Simões, que toda sua vida fora um colaborador não-remunerado de jornais, chega em 1913 ao jornalismo profissional. O que era passatempo torna-se meio de vida quando ele, depois de ter vendido sua residência, mora com parentes. Querendo fazer o mesmo que tantos grandes jornalistas faziam em Paris e no Rio de Janeiro (aqui devemos apontar João do Rio), Simões sai às ruas de Pelotas para tratar de assuntos que nunca dantes chegaram às folhas. Vai a um cortiço, reproduz uma conversa de malandros e chega às bandas do forno do cisco (que quando miúdo eu chamava de forno do lixo). São reportagens surpreendentes. Aliás, é também notável o exercício que Simões faz para registrar a linguagem coloquial, como falada na época pela população mais pobre da Atenas rio-grandense. Linha sucessória Quero registrar aqui, de forma ligeira, um dos trechos que mais me surpreendeu nesta biografia. Vem ele já na introdução, quando Diniz traça um breve quadro da linha sucessória da literatura gauchesca, nele enquadrando o nosso patrício. Hidalgo, Ascasubi, Estanislao del Campo e José Hernandez, todos eles lidos e recenseados pelo grande Jorge Luís Borges. Fiquemos com o exemplo de Hernandez que, no Martin Fierro, escreve: “Tuve en mi pago en un tempo, hijos, hacienda y mujer. Pero empecé a padecer, me echaron a la frontera, y que iba hallar al volver? Tan solo hallé la tapera”. Simões: “Eu tive campos, vendi-os; frequentei uma academia, não me formei; mas, sem terra e sem diploma, continuo a ser… Capitão da Guarda Nacional”. Leituras mais finas Diniz publica breves resumos de todos os contos e lendas de JSLN, apontando, para cada um deles, aqueles críticos que apresentaram as leituras mais finas, mais reveladoras, mais percucientes. Infância O livro de Diniz começa na ensolarada infância vivida no imenso sobrado da Estância da Graça, de onde Joãozinho só saiu aos 11 anos, para estudar na cidade. Lá, ele monta seu petiço Vermelhinho, brinca com o cordeirinho Romeu e bate os campos à caça de ninhos passarinhos com Simeão, seu irmão de leite, que o acompanhará até o fim da vida. Pão cotidiano O mais tocante trecho do livro, no qual o escritor Carlos Francisco mais burila seu texto, está, sem dúvida, nas últimas páginas, nos tenebrosos e patéticos meses finais, quando um empobrecido, adoentado e precocemente envelhecido Simões (50 anos) arranca do ramerrão jornalístico o pão cotidiano para ele, sua esposa, dona Velha, e para a filha Firmina. Maturidade Autor de muitas e divertidas peças de teatro quando jovem, o maior contista do Continente de São Pedro só produziu suas grandes obras depois dos 40 anos. Começa com o “Negrinho do Pastoreio” em 1908. Nos anos seguintes, criará Blau Nunes, o contador de causos do Pampa que servirá depois de molde para Guimarães Rosa fundir o seu Riobaldo. Ecologista antes do tempo Ao longo da vida, como já dissemos, o irrequieto Simões enfiou-se em todos os tipos negócios e dedicou-se por incontáveis anos à Biblioteca Pública, à União Gaúcha e à Associação Comercial. Foi precursor ecológico ao criar o Dia da Árvore, defendeu os animais de maus tratos e foi até mesmo um incentivador do ciclismo. Criou uma coleção de cartões postais sobre temas patrióticos e imaginou e editou a valiosíssima Revista do Centenário de Pelotas. Suas qualidades, segundo seus amigos, eram: generosidade, discrição e, principalmente, modéstia. Enfim, o sucesso Quando menino, por ser muito inteligente, todos previram um belo futuro para ele. Mas nada de grandioso que imaginaram para ele se realizou. Ou falando melhor: só se tornou realidade décadas depois de sua morte. Talvez possamos indicar 1949, quando sai a edição crítica preparada por Aurélio Buarque de Holanda para a editora Globo e sua carreira literária finalmente deslancha. Por fim, João Simões Lopes Neto tem a felicidade de ser biografado por aquele que talvez seja o mais apaixonado dos seus leitores. Aliás, o mais apaixonado dentre os inumeráveis integrantes das vastas legiões que hoje cultuam o criador de “Negro Bonifácio”, “No Manantial” e “Salamanca do Jarau”. Essas palavras são de Fausto José Leitão Domingues, outro rastreador de pistas deixadas pelo “rapsodo bárbaro”, que era como Manoelito de Ornelas se referia ao maior escritor pelotense. Eu não saberia definir melhor que Domingues – que desvendou a vida escolar do jovem João Simões – a ciclópica missão de Sica Diniz. Para os desatentos devemos lembrar que João Simões Lopes Neto foi um dos maiores escritores gaúchos e, no cenário nacional, o mais destacado dos autores de um ciclo que alguns historiadores da Literatura chamam de Regionalismo e outros de Pré-modernismo. *Jornalista e escritor Publicado originalmente em 13Horas. Foto: Divulgação Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.  

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O POVO QUE O MUNDO ESQUECEU

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O POVO QUE O MUNDO ESQUECEU
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Por CELSO JAPIASSU* Eu canto porque encanto Mas não sou santa De nenhum canto E se o mundo tem cantos Pra percorrer Percorro os cantos Querendo viver   (Canto Cigano)   Eles têm origem misteriosa, pois parecem ter vindo da Índia, mas alguns estudiosos dizem que não. Teriam vindo da antiga região da Caldéia, no território onde hoje se encontra o Iraque. É certo, no entanto, que há novecentos anos começaram a chegar à Europa percorrendo o caminho dos Balcãs, passando pela Bulgária. Hoje estão espalhados pelos vários países do Continente europeu e também pelo mundo. São quase invisíveis, perambulam pelas ruas das grandes cidades, as mulheres com seus vestidos longos abordam os turistas e oferecem a leitura e a revelação do futuro. Marginalizados e alvos de fortes preconceitos, procuram a subsistência da forma que lhes for possível, nem sempre por meios absolutamente legais. São os ciganos, também chamados nas diversas regiões do mundo de romi, boêmios, gitanos, romnichals, calons, calés ou calós.  O termo cigano é considerado por alguns deles como um insulto. Sua população na Europa é estimada em 11 milhões de pessoas, o que representa um número superior à população de Portugal ou o dobro dos habitantes da Noruega, por exemplo. Representam o maior grupo entre as minorias existentes.   Na França   Durante o governo do Presidente Nicolas Sarkozy, começaram a ser expulsos da França. O pretexto foram os protestos às vezes violentos que fizeram depois da morte pela polícia de um jovem cigano que não parou durante uma operação policial. Sob o protesto dos movimentos e partidos de esquerda, embora com o apoio de 79% da população, Sarkozy justificou a expulsão como uma ação de reintegração dos ciganos em seus países de origem. Um eufemismo. Como incentivo à saída da França, o governo ofereceu 300 euros a cada adulto e 100 euros a cada criança. Muitos aceitaram e depois retornaram ao país.   Na Alemanha   Considerados como uma raça inferior pela Alemanha nazista, seu destino pode ser de alguma forma comparado ao dos judeus. Fichados pela polícia, eram obrigados a usar no peito, como distintivo, um triângulo marrom. Foram perseguidos e mortos. Aproximadamente 500 mil foram assassinados nos campos de concentração do regime. Toda a sua história é uma sucessão de perseguições, abusos e de forte rejeição dos povos que lhes negam a integração.   Na Alemanha, ainda hoje lutam para serem aceitos numa sociedade que os discrimina. Num espaço entre o Parlamento e o Portão de Brandemburgo, em Berlim, foi erguido em 2012 o Memorial aos Sinti e Roma da Europa Trucidados sob o Nacional-Socialismo. “Sinti” é o termo usado para designar os membros de um dos três troncos em que se divide o povo cigano. Os outros são os “romi” e os “caló”. A língua falada pelos sinti é um dialeto da língua romani cujo vocabulário tem grande influência do alemão.   Na cerimônia de inauguração do memorial, a chanceler Ângela Merkel disse que "cabe à Alemanha e à Europa dar apoio ao povo roma, onde quer que ele viva, não importa qual seja o país".   Na Itália   Em 2018 o neofascista Matteo Salvini, enquanto Ministro do Interior, ordenou o recenseamento da população cigana para providenciar sua expulsão do território italiano. Segundo declarou, pretendia “verificar a presença de campos ilegais para elaborar um plano de expulsão”. Calcula-se que a Itália tenha em torno de 180 mil roma e sinti, uma das menores populações ciganas da Europa. Metade deles possui cidadania italiana e tem empregos nas diversas cidades e regiões do país.   A Associazione 21 Iuglio, de defesa dos direitos dos ciganos, denunciou uma manobra de Salvini, pois seu Ministério fez o levantamento de todos os campos de refugiados, ciganos ou não, com o objetivo de expulsá-los a todos. Sabe-se da obsessão dos partidos da extrema direita europeia, entre eles a Liga, de Salvini, em relação aos imigrantes e refugiados.   Na Hungria   “Eles estão a reproduzir-se como ratos, como parasitas”, foi o comentário mais replicado nas redes sociais húngaras em 2019, referindo-se aos ciganos. A Hungria é governada hoje pelo mais radical líder neofascista da Europa, Viktor Orbán, amigo do peito de Jair Bolsonaro e seus filhos. Ele conseguiu implantar uma ditadura de fato no país, fazendo uso e pretexto da epidemia do coronavírus.   Estimulado pelo governo, o racismo é crescente na Hungria e multiplicam-se os crimes relacionados ao preconceito. Há uma espiral de ataques violentos contra as comunidades ciganas. Há pouco, grupos neofascistas mataram seis pessoas dessa etnia, feriram vários, incendiaram casas e espalharam o terror em Budapeste.   A população cigana representa em torno de 10 por cento dos dez milhões de habitantes da Hungria. O governo Orbán tem aumentado a segregação, a começar das escolas primárias. Nevsija Durmish, responsável pelo programa de húngaro da Fundação de Educação Romani, diz que a segregação se manifesta de diversas formas. "Desde a colocação desproporcionada de alunos ciganos em escolas especiais para crianças deficientes, passando por aquelas destinadas apenas a ciganos, até à separação de turmas específicas de ciganos nas escolas comuns".   A história dos ciganos é uma saga de violência, fuga e perseguições. A União Europeia, nos seus fundamentos, não reconheceu a sua existência e muito menos os seus direitos. Deixou-os de fora do estado de bem-estar social, sem emprego, saúde, educação e liberdade de circulação. *Poeta, articulista, jornalista e publicitário Foto: Depositphotos Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.      

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Pesquisa DataSenado revela que maioria da população não tem posicionamento político

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Pesquisa DataSenado revela que maioria da população não tem posicionamento político
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Fonte: Agência Senado Uma pesquisa realizada este ano pelo DataSenado mostra que a maior parte da população brasileira com direito ao voto não se considera politicamente nem mais à direita, nem mais à esquerda, nem mais ao centro. Das mais de 21 mil pessoas entrevistadas, 40% não escolheu qualquer uma dessas alternativas, enquanto 29% se disseram mais à direita, 15% mais à esquerda e 11% mais de centro. O restante dos entrevistados disse não saber ou preferiu não responder. Na avaliação da diretora da Secretaria de Transparência do Senado, Elga Mara Teixeira Lopes, a pesquisa mostra que a maioria dos eleitores não se identifica com nenhum dos polos políticos. — Isso mostra que nessa campanha eleitoral municipal não é a coloração política, não é a polarização política o tema mais importante no cérebro do brasileiro. Para o eleitor, neste ano conta os problemas do município, a capacidade dos candidatos de apresentar solução e sua capacidade gerencial — avaliou a diretora. A avaliação de José Henrique de Oliveira Varanda, coordenador da pesquisa, segue na mesma linha. Para ele, os dados mostram que a população brasileira não está tão polarizada ideologicamente, pelo menos não em 2024, mesmo sendo um ano de eleições municipais. — Sobre o cenário político brasileiro, sobretudo agora nessas eleições municipais, o que essa pesquisa revela, majoritariamente, é que a população brasileira não é tão polarizada quanto se pensa ou se argumenta. Pelo menos não em relação a esses polos mais demarcados como pessoas de direita, pessoas de esquerda ou pessoas de centro — resume Varanda. Para o coordenador, os números mostram que essa parcela da população que prefere não se classificar de maneira polarizada pode influenciar de maneira significativa o resultado de eleições ao decidir seu voto de forma menos ideológica. — Uma parte relevante da população ou não é tão politizada ou não considera, não enxerga exatamente essas "caixinhas" — diz Varanda. Pesquisa DataSenado Panorama Político 2024: Posicionamento político do brasileiro O Instituto de Pesquisa DataSenado completa 20 anos neste ano e a pesquisa Panorama Político é feita desde 2008. Em 2024, foi realizada entre os dias 5 e 28 de junho, com 21.808 pessoas entrevistadas por telefone, em amostra representativa da população brasileira com 16 anos ou mais, ou seja, de quase 170 milhões de pessoas (169.840.184). Os dados divulgados foram calculados com nível de confiança de 95%, de acordo com o DataSenado. Foram entrevistadas pessoas dos 26 estados e do Distrito Federal em entrevistas com duração média de 13 minutos. O documento também mostra as porcentagens de escolha para cada unidade federativa. Recorte por gênero Majoritariamente, as brasileiras com mais de 16 anos não se identificam com nenhuma ideologia política (46%) ou se declaram de centro (9%). Entre elas, 14% se disseram mais à esquerda e 24% mais à direita. Entre os homens, 34% disseram se identificar mais com a direita, 15% com a esquerda, 12% com o centro e 34% com nenhuma das opções. — Há uma diferença marcante de gênero. Os homens se enquadram mais nos polos políticos, já que apenas 34% não se considera em nenhuma das três opções de posicionamento político e 5% não souberam ou preferiram não responder; enquanto nas mulheres esse número de pessoas menos interessadas em política vai para 46% e aquelas que não souberam ou preferiram não responder em 7% — diz Varanda. Recorte racial O posicionamento dos brasileiros que se autodeclaram de raça branca ou amarela é de 35% de independentes, 32% à direita, 15% à esquerda e 12% no centro. Somando pessoas pretas, pardas e indígenas, o resultado ficou em 26% à direita, 14% à esquerda, 9% de centro e 44% em nenhuma das opções. Renda  Quanto maior a renda, menor o percentual de eleitores que se consideram neutros com relação à ideologia política, segundo o DataSenado. Entre as pessoas com renda familiar de até dois salários mínimos, 47% não escolheu direita, esquerda nem centro, enquanto nas famílias com renda acima de seis salários mínimos, o percentual ficou em 21%.   Crenças Entre os católicos, 39% optaram pela neutralidade, 28% pela direita, 15% pela esquerda e 10% pelo centro. Entre os evangélicos, 35% se disseram mais à direita, 9% mais ao centro, 8% mais à esquerda e 42% nenhuma das opções. Entre os entrevistados que declararam ter outras religiões ou não ter religião, 21% escolheram esquerda, 21% escolheram direita, 13% ficaram no centro e 41% nenhuma das opções. Urnas eletrônicas Sobre as urnas eletrônicas, para 86% dos eleitores de esquerda e 36% dos eleitores de direita, os resultados das urnas eletrônicas são confiáveis; 61% dos eleitores à direita e 12% dos à esquerda disseram discordar que os resultados das urnas são confiáveis. Dos eleitores de centro, 67% disseram confiar nas urnas e 32% disseram não confiar. Entre os independentes, 61% confiam e 35% não confiam. — Os de esquerda confiam mais no resultado das urnas eletrônicas. Mais que o resto da população como um todo, enquanto os de direita discordam bastante dessa afirmação de que o resultado das urnas eletrônicas em eleições é confiável. (...) é um desafio para o nosso sistema eleitoral, para a nossa democracia, porque essa é uma crença que é importante, é basilar para apoiar a democracia, o pleito, o resultado e tudo que se desdobra depois disso — avalia Varanda. Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado) Fonte: Agência Senado Charge da capa: Ivan Cabral

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