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Opinião

O pluriversal à sombra do universal

O pluriversal à sombra do universal

Artigo por RED
14/10/2023 05:30 • Atualizado em 16/10/2023 09:58
O pluriversal à sombra do universal

De BARBARA GLOWCZEWSKI¹

Tradução de Thiago Prusokowski (UFRGS)

O que muda em nossa forma de sentir e pensar o mundo quando pensamos a partir dos territórios em luta? Barbara Glowczewski retoma as contribuições recentes das antropologias decoloniais por ocasião do lançamento em francês do livro Sentipensar con la tierra: Nuevas Lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia [Sentipensar com a terra: Novas Leituras sobre o desenvolvimento, território e diferença].

Resenha de Sentir-penser avec la terre. Une écologie au-delà de l’Occident, de Arturo Escobar, Seuil, Paris, 2018.

Os mundos colonizados pelo Ocidente produziram nas últimas décadas inúmeros textos críticos de Ciências Humanas e Sociais que são raramente citados na França, mesmo quando seus autores(as) provêm de territórios ultramarinos franceses e são traduzidos(as) para o inglês e estudados(as) nas universidades dos países do Sul Global. Entre 2007 e 2010, a revista La revue internationale des livres et des idées havia tentado divulgar tais autores(as) subalternos(as), promovendo, entre outros, os estudos ditos pós-coloniais ou subalternos, que enriqueceram os estudos literários na França, mas que foram ignorados ou rejeitados por muitos acadêmicos das Ciências Humanas e Sociais. 

Às vezes, a rejeição se manifesta pela desconfiança de posturas supostamente comunitaristas ou essencialistas dos(as) autores(as) originários(as) de diásporas — do tráfico negreiro aos territórios ainda colonizados — que reivindicam a história e a memória cultural de seus ascendentes. Apesar da consolidação dos movimentos afro-europeus, como o  CRAN (Conselho Representativo das Associações Negras), na França, dos Kanakas de Nova Caledônia, dos Ma’ohi da Polinésia Francesa ou dos ameríndios da Guiana Francesa, que lutam por formas políticas autônomas, pelo reconhecimento de suas línguas e pelo status jurídico para administrarem eles mesmos seus territórios e suas decisões econômicas, muitos intelectuais ainda pleiteiam um universalismo da República indivisível, incapaz de reconhecer a especificidade das realidades complexas que afetam as populações em questão e as soluções singulares que elas propõem.

Nessa situação, em que um universal exclui o reconhecimento das diferenças, a tradução do livro do antropólogo colombiano Arturo Escobar para o francês (Sentir-Penser avec la terre) chega em momento oportuno. Seu renome, como o de outros pensadores do Sul Global, atravessa fronteiras, visto que suas ideias têm origem em lutas concretas que, por todo planeta, buscam mudar a lógica capitalista de destruição dos territórios e dos modos de vida dos povos que neles vivem, lógica esta que cava os fossos da miséria e da exclusão em todas as cidades do mundo. Ainda que Escobar lecione nos Estados Unidos hoje em dia, sua teoria é inspirada em seu engajamento de trinta anos junto a indígenas e afrodescendentes da América Latina: “No plano teórico, considera-se que as cosmovisões e práticas das comunidades indígenas, afrodescendentes e camponesas podem contribuir para a construção de um modelo de civilização alternativo. Trata-se nada menos do que resgatar o sentido da vida’” (p. 61). Dessa forma, ele vai ao encontro do antropólogo David Graeber, que lembrava, em Fragmentos de uma antropologia anarquista, que as Ciências Sociais haviam sido fundadas, a princípio, para analisar as organizações sociais e as estruturas de dominação na esperança de melhorar a vida em sociedade, construindo um mundo melhor. No entanto, com o tempo, esse projeto utópico de transformação social foi esquecido em razão da institucionalização dos saberes e das disciplinas.

A linha teórica de Escobar é indissociável de uma forma de companheirismo dos povos em luta com quem ele trabalha e que, frente à opressão dos Estados e das multinacionais, reinventam formas de vida coletiva, enraizadas em territórios. Escobar menciona terras próximas a comunidades de milhares de afrodescendentes na Colômbia: em Yurumanguí e em Curvaradó, as lutas para recuperar terras coletivas e as disputas na Justiça contra o assassinato de 148 de seus líderes entre 1990 e 2012; em Toma, o movimento de reparação coletiva pela escravidão e pelos deslocamentos causados há décadas pela cultura do óleo de palma, pela guerra e pela construção de centrais hidrelétrica nessa região. Nesse sentido, para Escobar, a pesquisa antropológica situa-se em uma ontologia política que se alimenta da pluralidade dos modos de vida coletivos existentes e procura fragmentar uma certa hegemonia etnocentrada dos saberes acadêmicos. Assim, ele denuncia o Ocidente pela colonização moderna ainda em curso e pela história das ciências construídas sobre os dualismos cultura/natureza, humanos/não humanos, branco/não branco, homem/mulher que, em nome dessa lógica “universal” de exclusão assimétrica, engolem e esmagam os povos que lutam por universos regidos por lógicas diferentes (o pluriverso). Ele apresenta, em seu livro Sentipensar con la tierra, que acaba de ser traduzido para o francês, cinco correntes inovadoras nesse sentido: 1) a descolonização epistêmica da MCD  (Modernidade/ Colonialidade/ Decolonialidade), processo em transformação explicado pelos tradutores no prefácio; 2) as alternativas ao “desenvolvimento”, entre as quais a noção de buen vivir (os humanos vivendo em coletividade em harmonia com seu meio ambiente); 3) o pós-extrativismo, que propõe uma transformação econômica e social (interrompendo a destruição do planeta pelos grandes projetos de extração de minério); 4) a busca por um novo modelo de civilização (levando em consideração a redefinição de bens comuns pelas comunidades indígenas, afrodescendentes e camponesas) e 5) “novos pensamentos e práticas ontológicas ‘pluriversais’ articulados ao redor da relacionalidade da comunalidade (p. 51)”. 

O título do livro vem do conceito de sentipensar introduzido em 1986 pelo sociólogo colombiano Orlando Fals Borda², promotor da corrente de pesquisa-ação que se espalhou pela América Latina nos anos 1970. Escobar se refere a Nandy e Onfil Batalla para conclamar a “desmistificar a modernidade sem, no entanto, remitificar as tradições” (p. 64). Dito de outra forma, não se deve cair na armadilha de um dualismo neoevolucionista que opõe tecnologia global e local tradicional, mas sim mostrar o que existe em termos de respostas locais criativas de sociedades de tradições diversas frente às pressões globais, como as do extrativismo ou dos monopólios agroalimentares, para viabilizar a vida nas cidades ditas “modernas”. A exemplo de outros pesquisadores da América Latina, ele emprega a noção de sistema comunal indígena para “deslocar progressivamente a economia capitalista e a democracia representativa liberal para formas comunais de economia e de autogoverno que assegurem o pluralismo cultural como base de uma autêntica interculturalidade entre os diferentes sistemas culturais” (p. 66). Ele se insurge contra a interpretação essencialista do comunalismo, adotando a noção de “trama comunitária”, cunhada pela socióloga e ex-guerrilheira Raquel Gutiérrez Aguilar (p. 68), e citando o Colectivo Situaciones, responsável por espalhar a noção de “comunalidade”, principalmente na Bolívia dos meados dos anos 2000. Como no México zapatista, trata-se de valorizar autonomias locais e regionais, presentes também nas zonas urbanas, por meio das lutas “guiadas por um princípio de auto-organização cujo objetivo é a construção de formas de poder não-estatais, constituindo-se em microgovernos de bairros ou em antipoderes disseminados no espaço que manifestam formas de territorialidade alternativas às do Estado”. O objetivo não é conquistar o Estado, mas desinstituí-lo e “subverter as formas de poder instituídas e naturalizadas” (p. 69-70).

Essa subversão do poder instituído, admitido como uma natureza imutável evidente, pode ser exercida em todos os níveis das práticas sociais, educativas, econômicas, financeiras e mesmo de saúde. Assim, o feminismo comunitário, forjado pelo grupo Comunidad Mujeres Creando Comunidad, define, segundo Escobar, seu projeto de “despatriarcalização da vida” como uma “reconceitualização do gênero enquanto categoria relacional de denúncia — o que induz sua decolonialização (…) e estabelece também um modelo interpretativo da ‘comunalidade’” (p. 71). Esse pensamento feminista indígena, que rompe com certos feminismos ocidentais, assemelha-se ao movimento das mulheres curdas que conseguiram, por meio de suas lutas, transformar o papel das mulheres e, por consequência, o dos homens. Uma das tradutoras de Senti-penser avec la terre, Anne-Laure Bonvalot, professora universitária de literatura em Montpellier³, detalha em uma bela entrevista de rádio que, para Escobar, o papel do antropólogo é “conhecer sem alterizar”, mostrando que “as linguagens da Antropologia são situadas”. Nesse sentido, sua antropologia — ao mesmo tempo acadêmica, militante e enraizada em cada território — é bastante impregnada da corrente decolonial que atravessa todos os países da América Latina, sobretudo a partir da Filosofia da Libertação da década de 1990. Seja no Norte ou no Sul, os estudos pós-coloniais, mais tarde decoloniais, permitiram que muitos atores sociais se reapropriassem de sua história dolorosa, cruzando frequentemente as questões raciais com aquelas de gênero e de desigualdades sociais. Essa interseccionalidade inicial foi, por sua vez, reavaliada a partir da multiplicidade de situações locais que permitiram complexificar os debates, que se radicalizaram nas posturas ecofeministas e nas lutas por justiça social e ambiental, principalmente na denúncia de crimes de ecocídio do extrativismo intensivo praticado por empresas mineradoras ou outras indústrias de grande porte que destroem simultaneamente o meio ambiente e seus habitantes. O sinal de alerta dos debates em torno do Antropoceno, como era geológica da capacidade humana de destruir o mundo, suscitou um afluxo de termos que destacam a heterogeneidade do homem nessa destruição: Capitaloceno extrativista para uns, Cthulhuceno tentacular para Donna Haraway, “cena da supremacia branca” para Nicolas Mirzoeff4, ou ainda Plantationoceno para Anna Tsing, que mapeia a epidemia globalizada do modelo das plantações coloniais — como o óleo de palma e a banana nas Antilhas —, que continuam a afetar todas as formas de vida, impondo-se como economia mundial de um mundo em ruínas. Muitas iniciativas locais e transnacionais surgiram frente à violência do impacto capitalista e neoliberal que se acelera, produzindo novas fraturas sociais, exclusões e agravamento da pobreza cada vez maiores, tensões étnicas e fundamentalismos religiosos, guerras, atentados e matanças selvagens, migrações por sobrevivência e fechamento de fronteiras.

Contra o “There is no alternative” (TINA) de Margaret Thatcher, uma multiplicidade de alternativas se espalha por todos os lugares e se interconecta em rede: There are many alternatives (TAMA)5. Desde 2005, as lutas ecoterritoriais se difundiram e seus atores estabeleceram novas redes de alianças transnacionais de base a partir de experiências locais que se interconectam para inventar novas solidariedades e maneiras de lutar em nível global. Como lembra Escobar, a noção de Buen Vivir inspirada no termo Sumac Kawsay, da cosmovisão autóctone dos quéchuas, é um conceito não antropocêntrico a respeito das relações dos humanos com os não humanos, visíveis e invisíveis, que teve um impacto imenso na vida política da Bolívia e do Equador, onde está prevista inclusive na Constituição6. O mesmo ocorreu com Pachamama, entidade feminina dos Andes que encarna a Terra e que, ao fim de inúmeros debates entre os indígenas dos Andes e os da floresta, os militantes marxistas e feministas, tornou-se um instrumento estratégico comum de luta política em nível nacional7.

O reconhecimento de tais conceitos relacionais dos humanos com os não humanos — tanto visíveis como invisíveis — para proteger a Terra e seus povos territórios tornou-se internacional. Por um lado, inspirou o encontro de delegações de 33 países em 2010 em Cochabamba, na Bolívia, e deu início ao movimento pelos direitos da Terra, concebida como mãe natureza. Por outro, esse reconhecimento chegou à ONU, onde muitas sessões, que recebem delegações autóctones do mundo inteiro, começam por um ritual de homenagem à Pachamama8. Dezenas de campanhas pelo reconhecimento de certos locais tidos por naturais (mas também culturais para as populações envolvidas) — tais quais rios, florestas ou montanhas —, como seres vivos e pessoas jurídicas tiveram êxito na América Latina, assim como no Pacífico, especialmente na Nova Zelândia e na Austrália, onde trabalho como antropóloga junto aos aborígenes há quarenta anos9. O seu sentipensar com a Terra faz eco à ZAD de Notre-Dame-des-Landes, uma ocupação inventiva de uma zona rural de 1.650 hectares na França onde o governo pretendia construir um novo aeroporto, a qual permitiu criar uma convivência, um “buen vivir”, de uma inteligência impressionante, de reelaborações constantes de formas de vidas comunais, ainda que, ou talvez porque sentipensadas em meio a posicionamentos dissidentes variados, por vezes bastante conflituosos10. A partir dos novos desafios que surgem após o abandono do projeto de construção do aeroporto e a destruição violenta de metade das moradias da ZAD em maio de 2018, é possível que os zadistas se pluriversalizem ainda mais na troca — eles e elas construíram uma Ambazada —, estendendo as alianças já existentes para os territórios em luta no campo ou nas cidades da Europa e de outros lugares, para os afrodescendentes e povos autóctones do planeta. Para os estudos decoloniais, a descolonilização ainda está em curso, visto que nos quatro cantos do mundo os efeitos da colonização continuam e suas vítimas se rebelam contra ela: na África, onde os antigos colonizadores estão presentes sob formas econômicas e militares; na Europa, para onde continuam a afluir imigrantes repelidos tanto pelos efeitos pauperizantes da história colonial quanto por novos conflitos; nos Estados Unidos, onde o racismo estrutural e policial permanece tão violento; ou ainda no caso dos povos minorizados pela colonização que buscam sua autonomia ou formas de soberania, como nos territórios ultramarinos franceses.

A noção de “decolonialidade” é definida como um processo a ser colocado em prática, em todos os territórios e no pensamento, não como um pensamento de essencialismo estratégico, mas de filosofia pragmática e política das relações e das singularidades que incluem práticas existenciais não antropocentradas. A antropologia de Escobar convida a acompanhar lutas territoriais, valorizando os saberes locais que compartilham cosmovisões antigas ao mesmo tempo que se inventam frente às violências de Estados e de multinacionais. O autor convoca ao reconhecimento de uma pluralização dos mundos e olhares dos “povos territórios” em oposição àquilo que ele chama de “Mundo-1” produzido pela modernidade ocidental e capitalista. A resposta de Escobar ao universo monológico é o pluriverso que se en-age (segundo a noção de Varela) e os estudos das transições, que ele desenvolve em três vertentes:

  1. os estudos pluriversais, que propõem a questão das tendências pluriversais na teoria social e nas universidades;
  2. os estudos da transição, que examinam os movimentos nos nortes e nos suis (especialmente contra o extrativismo);
  3. o design ontológico e de transição, design comunal (a partir do local, da nova mídia a serviço do pluriverso), que Escobar desenvolveu recentemente em seus novos trabalhos11.

Em Sentir-penser la terre, Escobar define os estudos pluriversais como um projeto político de transformação epistemológica, uma concepção que estabelece que os estudos pluriversais “não pretendem de forma alguma substituir os estudos críticos sobre o capitalismo e a modernidade emanados de campos de conhecimento estabelecidos, como a economia política, os estudos culturais e a ecologia política. Os estudos pluriversais adicionam a esses uma outra abordagem, a da ontologia política”, cujo objetivo é “tornar visíveis as outras maneiras de conhecer e de fazer mundo que existem no planeta. Elas visam a fazer entrever outros mundos, outras possibilidades de re-existência” (p. 35). Para Escobar, os estudos pluriversais “talvez devam caminhar com esses humanos e não-humanos — com o Sonho da Terra, os povos e os movimentos sociais — que, em uma profunda relacionalidade, continuam, contra ventos e marés, a imaginar e a tramar outros mundos” (p. 36). 

Escobar recorda, em Sentir-penser avec la terre, que a teoria dos pluriversos vem de William James, que falava de universo plural, e também de astrofísicos que, para dar conta da multiplicidade dos espaços-tempos paralelos, falam de multiverso ou pluriverso. Na França, muitos pensadores destacaram esse conceito. Edgar Morin (1977, 1980, 1986)12 preconizava um pluriverso metodológico que dá conta de uma realidade multidimensional. Christoph Eberhard (2013) propõe Oser le plurivers. Pour une globalisation interculturelle et responsable [Ousar o pluriverso. Por uma globalização intercultural e responsável]13. Jean-Clet Martin, filósofo deleuziano, define-o, em seu ensaio Plurivers: essai sur la fin du monde [Pluriverso: ensaio sobre o fim do mundo]14, como “agenciamento, instalação heterogênea que não leva a uma verdade”, o que permite pensar diversas verdades ao mesmo tempo, como fazem os astrofísicos15. Escobar, em razão de seu engajamento comunal nas lutas territoriais e no campo antropológico, tem uma abordagem mais pragmática do pluriverso que a abordagem filosófica de Martin. A dinâmica e a práxis relacional de Escobar remetem aos conceitos de evento, de devires e de multiplicidade rizomática de Deleuze e Guattari, evocando ao mesmo tempo o sonho do Todo-Mundo Arquipelágico da crioulização de Édouard Glissant. Desde a década de 1970, também me inspiro muito nos trabalhos de Deleuze e Guattari, sobretudo na cartografia ecosófica da caosmose desse último. Desde meus primeiros trabalhos de campo, em 1979, tracei um paralelo entre o espaço-tempo dos astrofísicos e os espaços-tempos totêmicos do Sonho dos Aborígenes (Jukurrpa em Warlpiri), que liga em uma topologia complexa os itinerários terrestres de seus ancestrais totêmicos com o cosmo interestelar, a Via Láctea e as duas galáxias das Nuvens de Magalhães.

A noção de pluriverso também ressoa de maneira muito instigante com as cartografias aborígenes de lugares sagrados, de narrativas e de versos de cantos rituais por definição não centrados, mas também com a maneira como pude observar, ao longo de décadas, a incrível criatividade de que os aborígenes deram prova por toda a Austrália: em situações de sedentarização forçada em reserva, de desmantelamento de famílias e comunidades, de racismo estrutural, de violências policiais e carcerárias, de sufocamento burocrático e de destruição das terras por explorações extrativistas de minério e de gás por fraturação hidráulica16. Assim, os aborígenes conseguiram mudar leis para poder reivindicar suas terras ancestrais coletivas com base na sua espiritualidade ancestral, terras estas que os ligam a todas as formas de vida. Além disso, conseguiram impor ao mercado de arte contemporânea obras inspiradas em suas cartografias totêmicas. E, a despeito dos diversos conflitos que os dividem frente às imposições do Estado e às pressões das multinacionais, eles continuam a inventar formas inéditas de resistência aos governos estaduais e federal que, após mais de vinte anos de financiamento de experiências comunitárias autogeridas, recentralizaram, em 2007, as administrações e organizações aborígenes, suprimindo ou interrompendo o financiamento de um grande número de suas instâncias autônomas. 

Em todo o planeta, ao lado de diferentes povos e movimentos, um grande número de antropólogos mostrou que reconhecer e afirmar diferenças — de gênero, étnicas, culturais, sociais ou históricas — não é necessariamente promover o essencialismo, o exotismo vergonhoso ou mesmo o relativismo américo-anglo-saxão que impediria qualquer visão comparativa e transversal. O desafio é sempre situar as singularidades e seus devires. Escobar oferece pistas para reconhecer o sentido das alianças que se formam entre os povos da América Latina e outros, em lutas que se multiplicam, incluindo a França, com as alternativas fundiárias propostas pela ZAD Notre-Dame-des-Landes, e a mobilização contra o consórcio russo-canadense da Montagne d’or, promovida pelos ameríndios da Guiana Francesa por meio do coletivo Or de question17. Os tradutores que prefaciaram Pensée-sentir avec la terre, todos membros do periódico Revue d’Études décoloniales (RED), criado em 2016, iniciaram em 2017 o grupo de tradução colaborativa La Minga, justamente porque esse termo quéchua designa um “trabalho coletivo de utilidade social com vista a um bem comum”18. Como diriam os zapatistas, trata-se de lutar por “um mundo em que existirão muitos mundos: lutar pela defesa do pluriverso” (p.95), ao invés de afirmar “que há apenas um mundo no mundo”, o mundo-1 ou unimundo (p. 161). Não se trata de instituir existências locais em uma lógica de Estado19 (como no caso dos modos de existência de Latour ou de suas interpretações da ZAD), mas de imaginar uma outra forma de articular os territórios: “Longe de ser arcaico, o projeto de re-existência de todos esses grupo étnicos e camponeses é uma solução para enfrentar as mudanças climáticas e a crise da biodiversidade” (p.111).


1 Publicado originalmente em https://www.terrestres.org. 15/11/2108. Tradução realizada com o consentimento da autora e revisada por Patrícia Reuillard.

2 Orlando Fals Borda, Resistencia en el San Jorge, Carlos Valencia Editores, Bogotá, 1984.

3 Entrevista com Anne Bonvalot “Penser demain, et si on regardait ailleurs?, Matières à penser avec Dominique Rousset, France Culture, 2019.

4 Glowczewski B. e C. Laurens, 2018 “Le conflit des existences à l’épreuve du climat. Ou l’anthropocène revu par ceux qu’on préfère mettre à la rue ou au musée”, in Catherine Larrère et Rémi Beau (eds), Penser l’anthropocène, Presses de Sciences PO, Paris 2015, Collège de France, gravado: http://www.fondationecolo.org/l- anthropocene/video

5 Festival-colloque “TAMA – There Are Many Alternatives », à l’Université Paris Diderot-Paris 7 du 18 au 20 octobre 2017, organizado por Archipel des Devenirs com o Service Culture de l’Université; Nations alternatives, Alternatives à la nation, Hors pistes, Centre Pompidou, 19 janv-4 février 2018.

6  Rolando Vasquez, Towards a Decolonial Critique of Modernity? Buen Vivir, Relationality and the Task of Listening, in Capital, Poverty, Development, Wissenschaftsverlag, Mainz, 2012.

7 D. Landivar e E. Ramilien, “Reconfigurations ontologiques dans les nouvelles constitutions politiques andines”, Tsantsa 20, 2015.

8 B. Glowczewski, “Debout avec la terre. Cosmopolitiques aborigènes et solidarités autochtones, Multitudes, 65, 2016.

9 B. Glowczewski, “Souveraineté aborigène”, Vacarme, 2017.

10 “Résister au désastre: des Aborigènes à Notre-Dame-des-Landes”, conferência no Campus Condorcet, 17 nov; 2017: https://vimeo.com/256233441.

11 Arturo Escobar: Designs for the Pluriverse // Clark University Atwood Lecture, Départment de géographie, 16/3/2017: https://www.youtube.com/watch? v=8Ouy7aN6XPs.: “Autonomy… involves communal ways of being, the creation of the conditions of their continued self-creation (autopoiesis cf. Varela). Designs for the pluriverse: Radical Interdependence, Autonomy, and the Making of Worlds (March 2018).

12 Edgar Morin 1977 La methode 1. La nature de la nature; 1980 La methode 2. La vie de la vie; 1986 La methode 3. La connaissance de la connaissance, Seuil, Paris.

13 Christoph Eberhard, Oser le plurivers. Pour une globalisation interculturelle et responsable. Paris, Connaissances et Savoirs, coll. “Sciences humaines et sociales”, Paris, 2013.

14 Jean-Clet Martin, Plurivers: essai sur la fin du monde, PUF, Paris, 2010; Conferência gravada no Institut Tout monde, fon 2010 par Kreolfeeling, introduzida por G. Robillard em um seminário sobre a crioulização dos imaginários e dos pensamento: http://frayagesdeladerive.blogspot.com/2011/09/plurivers-essai-sur-la-fin-du-monde.html.

15 http://strassdelaphilosophie.blogspot.com/2012/09/plurivers-et-modalites- dexistence.html#!

16 Glowczewski, B., “Souveraineté aborigène”, op. cit.

17 Ver último número da revista Z.

18 Anne-Laure Bonvalot, Roberto Andrade Perez,  Ella  Bordai, Claude  Bourguigon Rougier e Philippe Colin

19 Cf. contribuição de B. Latour no livro Éloge des mauvaises herbes (dir. J.  Lindgaard), Paris, LLL, 2018. Voir https://lundi.am/Bruno-Latour-le-conseiller- sans-Prince-Ou-l-homme-qui-avait-peur-de-ne-plus

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