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O G7, os BRICS, a guerra e a paz

O G7, os BRICS, a guerra e a paz

Artigo por RED
16/07/2024 12:12
O G7, os BRICS, a guerra e a paz

Por Flávio Aguiar*

O mês de junho nos brindou com dois encontros-chave que abordaram a conjuntura geopolítica: o dos ministros de Relações Exteriores dos BRICS, na Rússia, e o dos chefes de estado do G7, na Itália. Ambos foram parte de cadeias de encontros correlatos: o dos ministros, parte de uma série de encontros temáticos realizados também na Rússia que, neste ano, exerce a presidência do grupo; o dos chefes de estado foi o pontapé inicial de dois outros encontros, o da Suíça sobre a guerra na Ucrânia, ainda em junho, e o da OTAN, nos Estados Unidos, no mês de julho.

Os dois encontros em tela terminaram com o lançamento de comunicados oficiais. Entre eles houve várias semelhanças e uma diferença fundamental. As semelhanças ficaram por conta de muitos dos temas abordados, como mudança climática, desenvolvimento sustentável, a Palestina e o Oriente Medio, saúde e alimentação, condições de trabalho e questões de gênero, dentre uma infinidade de outros. A diferença fundamental ficou por conta do sumo que se extrai de cada um, ao se espremer a retórica de ambos. No caso dos ministros dos BRICS, o sumo é a paz; no caso dos chefes de estados do G7, o sumo é a guerra.

 

Cúpula do G7 em Borgo Egnazia, Itália, 13-15 junho 2024.

Comecemos pelo segundo. A declaração do G7, do começo ao fim, é uma declaração informal de guerra à Rússia. Digo “informal” porque nele não consta uma declaração formal de guerra, embora a Rússia seja o alvo número um da belicosidade que emana do comunicado. Já de começo se declara abertamente a obscura intenção de aplicar futuros dividendos das reservas russas congeladas no Ocidente, sobretudo na Europa, em benefício do armamento militar e da
futura “reconstrução” da Ucrânia. Digo “obscura” porque obscuros são os caminhos que esta aplicação de dividendos deve percorrer. Afinal, estes futuros dividendos são dados como uma das garantias do empréstimo de 50 bilhões de dólares que está sendo adiantado à Ucrânia. Ou seja, aplicando-se uma lógica aristotélica, pode-se levantar a hipótese de que estes dividendos passarão pela Ucrânia e terminarão sendo faturados pelos credores do país: elementar, meu caro Watson.

Sabe-se que nos bastidores desta decisão discutiu-se a possibilidade de simplesmente confiscar as próprias reservas russas retidas no Ocidente, estimadas em 300 bilhões de dólares, cerca de 46% do total das reservas de
Moscou. Uma das razões que impediram esta decisão extrema foi o alerta do FMI de que ela poderia provocar uma insegurança e uma consequente desordem gigantesca nas finanças internacionais. A outra é a de que, se a aplicação financeira das reservas retidas à revelia de seu proprietário é um insulto incômodo, seu confisco seria motivo para uma declaração formal de guerra por parte do confiscado. Além de que fundos ocidentais também têm reservas na
Rússia, e a retaliação viria certamente. Ao longo do documento do G7 a Rússia aparece continuamente como a ponta militarizada e beligerante de um iceberg, um novo “eixo do mal” (o termo é meu e não consta do texto original) formado pelo Irã, Houthis no Mar Vermelho, Coreia do Norte e Venezuela. O documento exorta, e ameaça veladamente, a China e outros atores geopolíticos para que não protejam nem alimentem aquela ponta do iceberg.

Ao lado desta beligerância anti-Rússia, segue-se uma série de recomendações virtuosas sobre clima, direitos humanos, igualdade de gênero, direitos das mulheres, cuidados e cautelas diante da inteligência artificial, et alii, a serem promovidas pela liderança inconteste das “sete grandes democracias” irmanadas no grupo: Estados Unidos, Canadá Reino Unido, França, Alemanha, Itália e Japão, que assinalam e reconhecem a presença de alguns outros países convidados, entre eles o Brasil.

Trocando em miúdos e graúdos, isto quer dizer que a atual (des)ordem geopolítica mundial veio para ficar, capitaneada ali por alguns governos moribundos, como o conservador no Reino Unido, que caiu logo em seguida, o dos Estados Unidos, acometido de senilidade galopante e ameaçado por uma espécie de Al Capone topetudo e atrevido, ou o da França, debilitado pela derrota acachapante na eleição para o Parlamento Europeu e somente mal e mal soerguido pela frente eleitoral com as esquerdas na seguinte eleição parlamentar interna, ou ainda o da Alemanha, também abalado pela derrota no pleito europeu e com seu prestígio interno se esvaindo pelo ralo.

A beligerância anti-russa foi confirmada pelo encontro subsequente, o da Suíça, sobre a guerra e a paz na Ucrânia, para o qual a Rússia não foi convidada. E foi reforçada pelo encontro da OTAN, em julho, cujo secretário-geral, Jens Stoltenberg, declarou que é imprescindível impedir “uma vitória russa na Ucrânia”, porque, entre outras consequências, isto encorajaria “lideranças autoritárias no Irã, na Coreia do Norte e na China”.

Reunião dos MInistros de Relações Exteriores dos BRICs, Nizhnhy Novgorod, Rússia, 10-11 junho 2024.

Já o tom do documento dos BRICS, cujo grupo está em expansão, é inteiramente outro. Ele exalta o multilateralismo nas relações internacionais como vetor de equilíbrio, paz, segurança e cooperação entre as nações no exercício de sua
soberania.

A seguir vai destacando algumas mudanças na atual (des)ordem internacional para que aquele multilateralismo se consolide como estilo dominante na nova ordem que deverá emergir. Listo algumas delas. O documento exalta a ONU como espaço privilegiado de negociação, recomendando ao mesmo tempo uma mudança especial em seu estatuto, com a atualização de seu Conselho de Segurança, ampliando o número de membros permanentes.

O documento também exalta o G20 (ao invés do G7) como o “fórum primeiro”, ou seja, privilegiado, em matéria de assegurar a cooperação internacional. Os ministros pedem a construção de uma nova “arquitetura financeira” mundial, o que inclui a reforma do Fundo Monetário Internacional, a progressiva inclusão de moedas nacionais além do dólar norte-americano nas negociações entre os países, a suspensão de sanções unilaterais que potencialmente desorganizam o fluxo econômico mundial. Exortam o Novo Banco para o Desenvolvimento, criado pelos BRICS e hoje presidido pela ex-presidenta brasileira Dilma Rousseff, a se tornar um vetor especial para construir estas mudanças nas relações internacionais. Exaltam a diplomacia como meio de negociação e de pacificação dos conflitos internacionais. Defendem que a maior participação de mulheres nas negociações é fundamental para
assegurar e consolidar a paz como seu objetivo.

Como o documento de G7, o documento dos ministros manifesta grave preocupação humanitária na Palestina, defende a solução dos dois estados, mas avança mais, pedindo a inclusão da Palestina como membro efetivo da ONU.

Ambos os documentos compartilham outras preocupações, como com a guerra civil no Sudão, com o Afeganistão, o Haiti, o desenvolvimento africano, com o narcotráfico e com o terrorismo internacional (embora deva haver alguma divergência sobre onde aplicar o termo), o controle ou o descontrole da internet e de todo o espaço cibernético.

A leitura de ambos os documentos provocou-me a lembrança de um romance fundamental em minha formação: Narciso e Goldmund, de Herman Hesse. Publicado em 1930, diante da ascensão do nazismo na Alemanha e na Europa, o romance se passa na Baixa Idade Média, durante a pandemia da Peste Negra, em torno da amizade e mútua admiração que unem um jovem seminarista, Goldmund, e seu mestre Narciso. Goldmund erra por uma Europa em que um mundo, incluindo seus valores, naufraga, e outro emerge. Sabe-se muito bem o que está naufragando, mas não se conhece muito bem o que está emergindo: a busca deste discernimento, que ele mesmo não tem, é o que mestre Narciso tenta motivar em seu discípulo viajor.

A analogia fica por aqui. Estamos presenciando o estado falimentar de uma (des)ordem mundial, baseada na livre especulação financeira e no unilateralismo, ao mesmo tempo em que se discerne o anseio por uma nova ordem que afirme o multilateralismo, sem que se saiba ainda a que trilhas isto nos levará.

O drama maior é que, como de costume, os capitães da ordem que soçobra possam recorrer à guerra generalizada como uma suicida boia de suposta salvação de seu mando e império.

Uma advertência: para mim isto não faz dos BRICS um poço de virtudes, pelo contrário. Muita coisa deve também mudar nestes países para que eles possam vir a ser reais vetores de uma nova ordem baseada no equilíbrio da paz.

Mas há uma diferença entre eles o o G7. Gloso um outro romance, O Leopardo, de Giuseppe Tomasi de Lampedusa, e sua famosa adaptação cinematográfica, de Luchino Visconti.

Lendo o documento do G7 pensei numa variante da famosa frase do jovem Tancredi Falconieri (Alain Delon) para seu tio, Don Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina (Burt Lancaster): “As coisas têm de mudar, para que permaneçam
como estão”. Já o documento dos BRICS me sugeriu: “Temos que mudar algumas coisas, para que tudo comece de fato a mudar”.

Publicado no Observatório Internacional do Século XXI, da UFRJ, Brasil.

*Tradutor, professor, jornalista, autor e colaborador de dezenas de livros. Atualmente vive em Berlim, onde é correspondente de publicações brasileiras. É analista político da Rádio France Internacional para o Brasil.

Foto da capa: Guerra e Paz – Painel na sede da ONU, em NY. Autor Cândido Portinari.

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