Destaque
O fim dos tempos?
RED
Por PAULO TIMM*
O que é o tempo? Simploriamente, um lapso entra dois momentos. Poeticamente, como dizia Machado de Assis, ‘um tecido invisível no qual se pode pintar qualquer coisa...Até o nada. E ainda se perguntava: - “O nada sobre o invisível?”. Ainda assim, no decurso dos milênios civilizatórios, o tempo tem sido o espaço da fala, do discurso, através do qual foram se imprimindo denominação às coisas, entretecendo argumentos explicativos sobre suas ocorrências, concertando pactos e impactos, guardando memórias. Discurso, aliás, provém do latim e significa “andar ao redor”, implicando outro. “No discurso somos desviados de nossas próprias convicções em sentido positivo pelo outro. Apenas a voz do outro outorga ao meu comentário, à minha opinião, uma qualidade discursiva”. Pois foi “andando ao redor das coisas e das pessoas” que desenvolvemos, não só a inteligência, mas o processo civilizatório. Humanizamo-nos. Foi o espaço das aquisições milimétricas da racionalidade que nos conduziu ao Sapiens. “Decisões racionais são construídas a longo prazo”. Requerem concentração, foco e meditação que nos remetem, enfim, à faculdade do juízo e ao desenvolvimento frontal do cérebro. “Uma reflexão as precede, que se estende para além do momento, no passado e no futuro”. Nas sociedades sem escrita, enaltecendo o papel dos anciãos como portadores da memória. Com a escrita, o advento dos escribas. Para os filósofos, teólogos e cientistas , então, este processo é um verdadeiro calvário, longo e penoso. Não por acaso, tais criaturas e respectivas instituições foram reverenciadas como detentoras de um saber capaz de orientar as práticas do bem viver. Dos altares xamânicos às Academias.
Hoje, isso acabou. Estamos à mercê de influenciadores digitais quase analfabetos, bonitinhos e ordinários. Em poucas décadas, vivenciamos um salto qualitativo na sociedade equivalente à Revolução Agrícola, ao Renascimento e à Revolução Industrial. Mudamos não só a tecnologia da comunicação, mas a cultura, rearticulando técnicas e relações de produção, cosmovisão e visão do mundo, instituições e critérios éticos e de afirmação social. Emergiram os “faladores de merda”.Bullshitters... No mundo da Infocracia o que conta são trocas de informações entre unidades de função que garantem eficiência, dispensando a Política e o Governo, como instâncias éticas, que passam a ser substituídos por Agências de Gestão e Controle. No universo dataísta, a democracia dá lugar a um sistema supostamente isento de valores impulsionado por dados que se ocupam da otimização neutra de resultados. É a vitória definitiva do empirismo experimental que reorientou a Filosofia Moderna desde Hume, para o pragmatismo tão ao gosto dos anglo-saxões. O filósofo coreano Byun Chul assinala, oportunamente, no livro “ Infocracia – Digitalização e a crise da democracia “ -Ed.Vozes:
“A digitalização é, justamente, o que faz erodir o factual. O moderador de televisão Stephen Colbert, (quem colocou em circulação a palavra truthiness (ver-i-dade) comentou certa vez: ‘Eu não acredito em livros. São só fatos. Sem coração’” – pg 87
O tempo extinguiu-se como dimensão da vida cotidiana e excluiu a ordem do discurso que possibilitou a construção da democracia ocidental com base na Razão Comunicativa. Quem primeiro intui isso talvez tenha sido o inventor do para-raios, Benjamin Franklin, que proclamou alto e bom tom: “Tempo é dinheiro”. Como a vida é difícil e todo mundo precisa de grana, o tempo da reflexão foi substituído pela corrida contra o tempo: O self service do dia a dia, onde tudo já vem pronto para o consumo, com um mínimo de dispêndio de energias físicas e psíquicas. A tecnologia da Sociedade Industrial propiciou a mudança e trouxe consigo o fim do tempo como tempo indispensável à humanização da espécie. Somos, hoje, máquinas de clicar moradores das Cidade das Estrelas. Grande livro de ficção, aliás, de Arthur Clarck: “A Cidade e as Estrelas”. Sem tempo para o discurso e para as narrativas, que impunham o reconhecimento da alteridade, nos fragmentamos como pedaços de um panorâmico espelho quebrado: Cada um por si, Deus (Data) por todos. Entramos no Reino da Informação Digital : A Infocracia.
“Chamamos regime de informação, a forma de dominação na qual informações e seu processamento por algoritmos e inteligência artificial determinam decisivamente processos sociais, econômicos e políticos. (...) O regime de informação está acoplado ao capitalismo da informação, que se desenvolve em capitalismo da vigilância ( da era industrial) e que degrada os seres humanos em gado, em animais de consumo de dados” – Byon Chul Han – INFOCRACIA , Digitalização e a Crise da Democracia , pg 7
Vários autores já vinham chamando a atenção para os riscos deste salto no escuro sob os asas do Iluminismo. Karl Marx, crítico implacável deste mundo, há dois séculos já advertia que “tudo que é sólido desmancha no ar”. Em A Era do Vazio, Gilles Lipovetsky, aborda o vazio conectado ao individualismo numa era onde a materialidade e a exposição das redes sociais torna o momento fugaz, os relacionamentos esvaziados e a materialidade exaltada.: “O livro trata do enfraquecimento da sociedade, dos costumes e do indivíduo contemporâneo da era do consumo de massa. Ele explora um modo de sociabilização e individualização inédito, que se instituiu a partir dos séculos XVII e XVIII”. N. Luhman, em Entscheidungen in der ‘Informationsgesellschaft’, assinala, apud Byun cit: “Em uma sociedade da informação, não se pode mais falar de comportamento racional, mas, no melhor dos casos, de comportamento inteligente”.
Neste regime de informação, a vigilância e a disciplina rígida de corpos aprisionados da Era Industrial são substituídas pelo controle invisível das vontades individuais, confundidas com afetada liberdade de escolha.
O novo sujeito, aliás, “subjétil” - expressão de Antonin Artaud para definir o processo que vincula e separa o visível do legível, mais tarde retomada por Jean Baudrillard - porque incapaz de perceber a manipulação de que é objeto através dos perfis acumulados nos bancos de dados, supõe-se livre, autêntico e criativo. “Produz-se e se performa”, na ressonância de suas opiniões através das Redes. Fala para o vazio acreditando protagonizar-se perante o mundo. Acha-se um “player” de uma nova democracia: digital. Tudo sob um clima de suposta e salutar transparência. Não obstante, o novo presídio, cristalino, digital, nada tem de sagrado: é transparente e iluminado, aprazível”, sem mistérios ou instrumentos de tortura, mas sua invisível casa de máquinas urde e tece a dominação contemporânea: é escura e fria. Cruel. Os likes a escondem...Aposentou, por vencimento de validade, o Big Brother orweliano de 1984, substituindo-o pelo “Admirável mundo”novo” de Huxley:
Não por acaso o turismo cresce enormemente com milhões de pessoas viajando permanentemente de um lado pra outro. A curtição do prazer, da beleza, cada vez mais acessível às grandes massas, do divertimento, do sexo fartamente liberado e disponível na Internet, as drogas, dão um novo sentido à vida das pessoas que, não obstante, sucumbem à depressão, à violência e ao suicídio.
Sidarte Ribeiro, em seu livro “O oráculo da noite”- pg 378-, lembra que “medidas da repercussão de rumores no Twitter entre 2006 e 2017 mostram que as postagens mais disseminadas são justamente as mais ficcionais. Robôs em versão algoritmo, ‘almas sem corpo” em plena atividade, já vencem eleições com plataformas extremistas nos Estados Unidos, Inglaterra e no Brasil, através do impulsionamento massivo e automático de memes falsos que contagiam as pessoas até elas acharem que as narrativas mentirosas foram tecidas por elas mesmas. Por excesso de informação e falta de critérios, corremos o risco de perder a confiança no conhecimento acumulado e vivenciar uma nova torres de Babel, um cacarejar de vozes dissonantes sem qualquer possibilidade de harmonização”.
O resultado deste processo de compressão do tempo e saudável submissão do Sapiens ao Big Data, gerou o que alguns analistas estão denominando “brain rot”, eleito, no final do ano 2024 como a expressão do ano, conforme informação do Dicionário Oxford, que destacou ter havido 130 mil buscar pelo verbete no ano que passou. Consta que isso representou um crescimento de 230% entre 2023 e 2024, possivelmente por causa da "preocupação com o impacto trazido por tantos conteúdos de baixa qualidade on-line".
Pode ser traduzida como "cérebro podre" ou "podridão cerebral”, remetendo a um antigo provérbio inglês que diz “if is not rotten do not fix it”...O termo teria sido usado, por primeira vez, nos idos de 1854 por Henry Dvid Thoreau no seu livro “Walden”, um baluarte do ambientalismo. Ele já criticava a tendência à simplificação de ideias complexas, que tanto se disseminariam nas Redes Sociais, ao apodrecimento mal cheiroso das batatas.
Concluindo: Vivemos, com exceção dos “Engenheiros do Caos” que nos administram, numa referência a este título de Giuliano da Empoli, Ed. Topleituras.com, uma era de deterioração mental causada pelo consumo excessivo de conteúdos superficiais e pouco desafiadores à inteligência e ao efetivo exercício do juízo entre distintas possibilidades e cenários , principalmente pela subserviência às redes sociais e dependência cada vez maior dos aparelhos celulares, com reflexos sobre a nossa capacidade para construir uma sociedade verdadeiramente democrática. Perseguimos cada vez mais velocidade em nosso cotidiano, subindo cada vez mais alto no que denominamos “qualidade de vida”, morando e trabalhando em arranha-céus competitivos em altura. Vã ilusão. Mais uma de Prometeu...
* Paulo Timm é é economista, professor universitário, jornalista e editor
Ilustração da capa: Redes Sociais
Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.