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Os crimes políticos na era da cibernética

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Os crimes políticos na era da cibernética
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Por CELSO JAPIASSU* O mundo vive uma época em que a conexão instantânea, ao mesmo tempo em que reduz as distâncias e conecta as pessoas, revela também o que o ser humano tem de pior ao proporcionar o surgimento de um novo tipo de criminalidade. A fraude eleitoral é apenas um desses novos crimes, entre tantos outros que a sinistra imaginação do ser humano não cansa de planejar. A eleição de Trump nos Estados Unidos, a saída do Reino Unido da União Europeia, sem esquecer a tragédia que foi a vitória e o governo de Bolsonaro no Brasil e agora o tumulto nas eleições municipais de São Paulo, sobre todos esses eventos políticos existe a certeza da manipulação do eleitorado através do uso da internet. O mundo vive uma época em que a conexão instantânea, ao mesmo tempo em que reduz as distâncias e conecta as pessoas, revela também o que o ser humano tem de pior ao proporcionar o surgimento de um novo tipo de criminalidade. A fraude eleitoral é apenas um desses novos crimes, entre tantos outros que a sinistra imaginação do ser humano não cansa de planejar. Um relatório da diretora executiva da Europol, a polícia da União Europeia, a belga Catherine De Bolle, associa o recente aumento da criminalidade à epidemia de coronavírus e diz que "a pandemia trouxe o melhor, mas infelizmente também o pior da humanidade". Com um grande número de pessoas que começou a trabalhar a partir de casa e, geralmente, com sistemas de segurança desatualizados, os cibercriminosos aproveitaram-se da situação.  A Sra. De Bolle destaca que o impacto da pandemia no crime cibernético foi a face mais visível e impressionante em comparação com outras atividades criminosas, pois os criminosos conseguiram adaptar-se rapidamente e atingir as ansiedades e medos das suas vítimas. Ansiedades e medos A identificação de ansiedades e medos mencionados pela diretora da Europol, referindo-se principalmente aos crimes sexuais e fraudes financeiras, foram também os mais fortes elementos emocionais que a Cambridge Analytica, onde trabalhava o notório ativista de extrema direita Steve Bannon, explorou profundamente em suas campanhas de notícias falsas (“fake news”) destinadas a dirigir o voto nas campanhas eleitorais em que ele foi o responsável pela estratégia. O planejamento dessas campanhas visava principalmente as diversas camadas de classe média despolitizadas e por isso mesmo mais expostas ao populismo radical de extrema direita e à exploração das suas ansiedades e seus medos. Nos Estados Unidos, o medo do desemprego, dos mexicanos e todos os imigrantes; no Reino Unido, o medo do domínio da União Europeia e, no Brasil, o medo de Lula e do PT. São apenas alguns exemplos das ansiedades e medos a que se referia genericamente o relatório da Europol. A estratégia da Cambridge Analytica e de Steve Bannon, embora sofisticada, é simples e tradicionalmente utilizada no planejamento das ações de marketing comercial: identifica-se o público-alvo pelos parâmetros de classe social, idade, hábitos, crenças, depois realiza-se alguns testes de efetividade do tipo de mensagem que a eles vai ser endereçada. No caso de campanhas de marketing de produtos, quais as mensagens capazes de influenciar o consumidor. Na estratégia eleitoral, as que serão capazes de conquistar corações e mentes e influenciar o voto. Os Big Data (https://inteligencia.rockcontent.com/big-data/) e mais recentemente as plataformas de Inteligência Artificial, encarregam-se de identificar onde se encontra o público desejado, traçar perfis eleitorais e tendência de voto para então bombardeá-lo com as mensagens que querem ouvir, a maioria falsas e que vão dirigir seu pensamento. Mensagens fraudulentas explorando suas ansiedades e medos. A partir daí, para obter sucesso, confia-se no comportamento de manada, que quase nunca falha. Foi criado até um termo - “dominância informativa” -, para definir a técnica que difunde rumores, desinformação e notícias falsas. Foi a tarefa atribuída ao tristemente famoso “Gabinete de Ódio” da militância bolsonarista durante e depois do seu governo. Guerras clandestinas A Cambridge Analytica, fundada pelo bilionário de extrema direita Robert Mercer, teve uma curta vida de cinco anos (2013-2018) e faliu quando veio a público o escândalo do fornecimento a seu favor de dados pessoais dos usuários do Facebook. Esses dados foram usados para traçar o perfil psicológico daqueles usuários a fim de serem aplicados nas estratégias de campanhas eleitorais. Depois da falência, a Cambridge Analytica ressuscitou na pele de duas diferentes empresas, uma chamada CA Political, responsável pela atividade e exploração do mercado político e eleitoral, e a CA Commercial, para o atendimento de clientes empresariais. Ambas se encontram em atividade, a primeira delas em operações quase sempre clandestinas mundo afora. Os clientes da CA Political são governos e corporações militares que pretendem mudar o comportamento das populações em benefício dos seus objetivos, todos alinhados com os interesses da direita política. Usa táticas inspiradas nas estratégias de guerra desenvolvidas por teorias e práticas militares. Até 2018 a Cambridge Analytica elaborou estratégias e executou programas de desinformação e propaganda para mais de 200 diferentes campanhas políticas pelo mundo. Todas as candidaturas eram do espectro conservador ou abertamente extremistas de direita, coincidentes com a visão ideológica de Robert Mercer e Steve Bannon. Robert Mercer exerceu atividade profissional como cientista da computação, especialista em inteligência artificial. Trabalhou no laboratório de pesquisas da IBM antes de iniciar-se em aplicações financeiras e tornar-se bilionário administrando fundos de cobertura e fazendo diversos investimentos muito rentáveis de retorno garantido. Steve Bannon foi banqueiro de investimentos antes de tornar-se estrategista político. Editou um site especializado em “fake news” e teorias de conspiração chamado Breitbart News, orientou a campanha de Donald Trump e foi estrategista chefe da Casa Branca antes de ser demitido pelo presidente. Fundou depois “The Movement”, uma organização de caráter ideológico que visa instalar governos de extrema direita nos países do mundo. Transferiu sua sede para Bruxelas, na vizinhança dos escritórios da União Europeia. Além de The Movement, criou também um portal chamado War Room (https://warroom.org/) para dar suporte a sua militância neofascista. A denominação ‘gabinete de guerra’ revela claramente quais são as suas intenções. Foi banido do Twitter e readmitido depois da compra dessa rede pelo também extremista de direita Elon Musk. A Cambridge Analytica continua a responder como ré a várias investigações criminais tanto nos Estados Unidos quanto no Reino Unido. Nem a empresa nem Bannon e muito menos Robert Mercer jamais responderam ao que lhes foi perguntado pelos jornalistas. A atuação desse grupo e suas ramificações têm sido considerada como uma ameaça global à democracia. *Celso Japiassu é *Poeta, articulista, jornalista e publicitário Ilustração da capa: Photo Adapted by WhoWhatWhy from Thought Catalog / Flickr (CC BY 2.0) and Channel 4 News / YouTube + logo da War Room Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

Cultura

A saga dos Paiva

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A saga dos Paiva
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Por NUBIA SILVEIRA* Em Ainda Estou Aqui (Alfaguara, 2015), Marcelo Rubens Paiva fala sobre o desaparecimento do pai, o deputado Rubens Paiva, após ser preso pela ditadura, em 1971. E sobre a despedida em vida de sua mãe, a advogada e ativista Eunice Paiva, vítima da doença de Alzheimer (faleceu aos 86 anos, em 13 de dezembro de 2018). Marcelo, quando da publicação do livro, revelou que se assustou com o rumo tomado pelos protestos de 2013. Eles começaram reclamando do preço das passagens do transporte coletivo e culminaram pedindo a volta da ditadura. O susto foi tamanho que resolveu, então, escrever sobre o período vivido pelos brasileiros de 1964 a 1985, mostrar o que é uma ditadura e contar a saga vivida por sua família. O livro virou filme premiado, na semana passada, no Festival de Veneza, como o melhor roteiro da mostra. Ao receber o Prêmio Osella, os roteiristas Murilo Hauser e Heitor Lourega dedicaram a premiação à família de Rubens Paiva. “Nós gostaríamos de dedicar este prêmio à Eunice e a toda família Paiva, que nos deixaram entrar em suas vidas e na sua casa e nos permitiram contar a sua história. Não só a história da família, mas a história do Brasil também.” [caption id="attachment_15642" align="aligncenter" width="1201"] Ainda Estou Aqui - Divulgação[/caption] Walter Salles, amigo de Marcelo, diretor de Ainda Estou Aqui, recriou fielmente a casa em que os Paiva viviam, no Rio de Janeiro, quando o deputado Rubens Paiva foi preso pela ditadura. O autor do livro contou, em sua coluna, no caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo, que temia visitar o local das filmagens. Quando foi, emocionou-se. Reencontrou a casa em que morou até os oito anos, quando seu pai desapareceu e a vida familiar mudou totalmente. Marcelo Rubens Paiva, ao lançar o livro, afirmou que as revelações da Comissão Nacional da Verdade incentivaram-no a escrever sobre a morte e as torturas sofridas pelo pai. Criada em 18 de novembro de 2011, no governo de Dilma Rousseff, a Comissão Nacional e as estaduais da Verdade investigaram as violações de direitos humanos, ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Marcelo tinha apenas cinco anos, quando o deputado federal pelo PTB foi levado de casa, no Rio de Janeiro, por agentes da ditadura para nunca mais ser visto. Eunice e a filha mais velha também foram presas e interrogadas sobre as ações do parlamentar, consideradas subversivas. O medo, a dúvida e o ressentimento por ter crescido sem pai e com a mãe menos dedicada aos filhos e mais à defesa dos presos políticos, à luta pela anistia e ao fim da ditadura dão ao texto um tom de acerto de contas. “Não sei o que passava pela cabeça do meu pai”, diz. “Estava na cara que deveríamos ter partido para o exílio.” O filho se pergunta: “Por que ele arrastou tanto a nossa partida? Arrogância? Confiança? Dever ideológico?” A mensagem passada é a de que a família não desculpa o pai por não ter seguido o exemplo do amigo Fernando Gasparian, que se autoexilou. “Meu pai perdeu o timing. Onipotência e teimosia, que minha mãe nunca perdoou.” As emoções do autor mexem com as nossas. Nos mostra como um governo ditatorial age, destruindo seus adversários, vistos como inimigos internos. Para mim, no entanto, o que mais me tocou foi o relato do sofrimento de Eunice com o Alzheimer. O título do livro é a frase que ela sempre dizia, nos instantes em que a memória voltava. No momento de sua interdição, definida pelos filhos em conjunto com a mãe, antes que a doença se agravasse, o tabelião lhe perguntou se sabia o que estava fazendo. Ela respondeu que sim. Era a morte civil de uma advogada competente e reconhecida nacionalmente. Apesar de esquecer, com rapidez, se havia comido ou não, Eunice sempre reconheceu o neto, de um ano e pouco, filho de Marcelo. A cena que mais me marcou foi a de Eunice, já no último estágio da doença, assistindo ao noticiário, com o neto ao lado. Ela chama a atenção do filho: “- Olha, olha, olha! “Na TV, um noticiário sobre Rubens Paiva. Neste 2014, apareciam todos os dias notícias sobre o caso Rubens Paiva. Todos os dias, novidades. Ela sentadinha inerte na cadeira de rodas. Aparecem fotos dele de arquivo na tela. Era a foto do seu ex-marido, era o nome dele, falavam dele, desvendavam segredos sobre a morte dele: “- Olha, olha, olha! “Ela olhava. Com lágrimas. Ouviu a notícia. Começou a dizer baixinho: “- Tadinho, tadinho, tadinho...” *Nubia Silveira é jornalista. Capa: Foto da capa do livro Ainda Estou Aqui - Divulgação Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

Internacional

Rússia e Ucrânia, os Dois Lados da Guerra

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Rússia e Ucrânia, os Dois Lados da Guerra
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Por J. CARLOS DE ASSIS* A chamada civilização ocidental é um desastre completo do ponto de vista humanitário. Na África e na Ásia, seus exércitos de colonizadores, principalmente europeus, levaram morte e terror para conquistarem os povos locais até meados do século XX, fazendo da hegemonia militar um instrumento de hegemonia política. Posteriormente, quando os colonizados se levantaram em sangrentas lutas pela liberdade, deixou como legado para eles uma completa desorganização social que resultou, modernamente, em mortíferas guerras civis em muitos países. A conta dessa desorganização está sendo cobrada do próprio povo europeu. Imensas correntes de emigrantes, aos quais a colonização não possibilitou uma alternativa de desenvolvimento doméstico, estão abandonando seus países de origem, expulsos pela instabilidade política por guerras civis e pela fome. As consequências do colonialismo europeu têm sido, assim, igualmente perversas para os dois lados. Países como França, Itália e Inglaterra, entre outros, já não estão suportando o peso sobre sua infraestrutura social e econômica de demandas trazidas pelos antigos colonizados. Entretanto, não há nada pior, para a humanidade, do que o legado da hegemonia norte-americana, imposta militar, econômica e financeiramente, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial. Em nome da defesa da “democracia” e do combate ao comunismo, Washington adotou uma política intervencionista que, com base em sua supremacia militar no curto prazo, deixou as piores consequências para o mundo, no tempo atual. Vítimas desse processo não são mais os colonizados pelo imperialismo norte-americano, mas o mundo inteiro. De fato, por efeito da intervenção dos Estados Unidos na Coreia, na China e em todo o Oriente – nesse caso, agora, através da injustificada tentativa da OTAN de expansão sobre a fronteira russa -, o mundo ficou sob o tríplice risco de guerras nucleares catastróficas. A Coreia do Norte tornou-se, surpreendentemente, uma potência atômica. Ela já desafia os Estados Unidos e pode arrastar o mundo para a liquidação total. A China, também uma potência nuclear, a qualquer momento pode exigir a unificação com Taiwan, a despeito da proteção militar que os EUA vêm dando à ilha desde 1999. No caso da OTAN, a decisão norte-americana de expansão para o Leste, sob Bush pai e confirmada pelo filho, ultrapassou qualquer limite de prudência. De acordo com os acordos verbais feitos com Mikhail Gorbachev, não havia qualquer justificativa para a manutenção dessa organização militar depois que a União Soviética foi extinta em 1999. A Federação russa extinguiu o Pacto de Varsóvia e tornou-se progressivamente um país capitalista, curvando-se aos modelos políticos ocidentais, sem qualquer indicação de que retomaria um curso intervencionista contra vizinhos. Foi a OTAN, ao contrário, seguindo instruções norte-americanas, que tomou um rumo intervencionista, arrogante e agressivo contra a Rússia. Aos poucos, sob argumentos de que era preciso se precaver contra intenções intervencionistas falsas atribuídas ao antigo inimigo geopolítico da Guerra Fria, incorporou nas suas fileiras mais de uma dezena de países que haviam participado, antes, da União Soviética. Não havia, como disse, nenhuma justificativa militar para isso. A Rússia de Vladimir Putin se havia disposto inclusive a entrar para a OTAN, mas foi repelida. Quem reconheceu isso foi Robert Kennedy Jr, herdeiro da mais importante dinastia política dos EUA. Apresentando-se como desafiante de Joe Biden no Partido Democrata, inicialmente com 16% das intenções de voto, ele demonstrou como foram rejeitadas todas as tentativas da Rússia de ter relações normais com o Ocidente, concluindo que o atual governo americano é que “quer a guerra”. Não por outro motivo, sem esperança de vencer Biden e agora Pamela, abandonou os democratas e, para indignação da própria família, decidiu apoiar Donald Trump, já que ele também se diz contra a guerra. A estratégia norte-americana, ao rejeitar iniciativas confiáveis de aproximação de Moscou com o Ocidente, como essas, simplesmente expôs a determinação de preservação da hegemonia dos EUA em todo o mundo. Entretanto, num período curto de tempo, grandes mudanças econômicas e políticas ocorridas no planeta tornaram obsoletas as pretensões hegemônicas de Washington. A China se tornou a segunda maior economia mundial, a Rússia manteve sua paridade estratégica com os EUA e a Coreia do Norte se tornou uma potência nuclear capaz de desafiar o Império – com um elevado nível de irresponsabilidade de seu governante. Isso acentuou o risco para a toda a humanidade de guerras nucleares catastróficas, agora com o virtual renascimento da Guerra Fria, sobretudo tendo em vista a reação russa às provocações ocidentais na Ucrânia. Isso porque, antes da guerra, a Rússia avisou várias vezes, apoiada por advertências conciliadoras, porém claras, de seu aliado chinês Xi Jinping, de que o Ocidente deveria levar a sério as alegações sobre a segurança em suas fronteiras. Ao contrário do que os chineses pediam, ela não foi levada a sério. É nesse sentido que o presidente Luís Inácio Lula da Silva tem plena razão ao atribuir aos dirigentes da Ucrânia parte das responsabilidades pela guerra. A imprensa ocidental está vendo a guerra como um fato isolado, sem causas remotas. O fato é que se Zelensky, um palhaço de televisão sem experiência política, não tivesse insistido tanto em entrar para a OTAN, com uma demonstração infantil de absurda irresponsabilidade política, a Rússia não teria razão para realizar a “operação especial” contra a Ucrânia. Obviamente, desde o início, os Estados Unidos exerceram um papel preponderante em todo esse processo. Eles estiveram por trás do estímulo à Ucrânia para buscar a adesão à OTAN, e tiveram, junto com nações europeias, oportunidades de evitar a guerra vetando essa adesão. Não vetaram. Ao contrário, alegaram que a Ucrânia, como nação “soberana”, tinha o direito de pedir a adesão. Como se veria à frente, esse Estado “soberano” só não foi liquidado pela Rússia até agora porque faz uma “guerra de procuração” contra a Rússia, com armas estrangeiras. Portanto, não tem “soberania” de fato! O que a imprensa ocidental não se pergunta é a razão pela qual a OTAN buscou a expansão para o Leste, mediante a incorporação da Ucrânia a seu bloco. A resposta se encontra no novo estilo de recuperação de hegemonia que os Estados Unidos estão tentando impor ao mundo, na era nuclear. Os norte-americanos querem usar a longa linha de fronteiras entre a Ucrânia e a Rússia como uma rota de penetração para as guerras “híbridas” do tipo das que provocaram na chamada Primavera Árabe, desestabilizando países como Líbia, Egito, Síria e outros, de linha política simpática aos russos, ou de países independentes, como o Brasil, como o Brasil, que se atreveram a liderar a construção do bloco BRICS. De fato, sem possibilidade real de um confronto direto com seu principal adversário estratégico, Washington procura o caminho alternativo de destruí-lo por dentro. Nesse jogo, todo tipo de intrigas políticas são usadas, nas chamadas guerras “híbridas”, com o objetivo de levantar as massas contra governos acusados de autoritários – ou mesmo democráticos, como aconteceu com o Brasil em 2014/15. Mais próxima da Rússia, através da Ucrânia, a OTAN teria melhores condições logísticas para introduzir dentro dela seus espiões e instigadores de violência social e civil. É preciso recordar que uma das maiores ONGs estrangeiras, a Open Society, presente na Ucrânia desde 1990 com o objetivo de “promover a democracia”, esteve claramente envolvida na incitação de guerras “híbridas” para derrubar, em 2014, um presidente legítimo, Viktor Yanukovych. A razão para a derrubada foi uma proposta da Rússia à Ucrânia para um financiamento de US$ 15 bilhões para compra de gás. Isso aproximaria os dois países num nível não aceito pelos ocidentais. Explodiu então uma “revolução”, em nome da “democracia”, promovida pelos ocidentais, sendo que a resposta de Putin à derrubada de Yanukovych foi a anexação da Crimeia. Vieram logo em seguida os acordos de Minsk para suspender a guerra. A parte ucraniana, apoiada por milícias nazistas, rejeitou na prática acordos de proteção das populações russófilas do leste do país. Não houve estabilidade. Reunindo suas preocupações de segurança com a intenção de proteger essas populações, Putin decidiu incorporar também seus territórios, já no curso da guerra, legitimando essa decisão com plebiscitos sob seu controle. Agora estamos no terreno dos fatos consumados. Não há saída a não ser negociações, que serão extremante difíceis. Para isso, os dois lados têm que manifestar interesse na paz, conforme também insiste o presidente brasileiro. Mas parece que, por enquanto, isso não existe. Realisticamente, como por trás do conflito na Ucrânia o que determina a condução e o curso da guerra são os próprios Estados Unidos, usando Zelensky como um simples fantoche, o mundo não terá verdadeira paz se Washington não recuar de sua pretensão de retomar a posição hegemônica no planeta. Como o grande hegemon anticomunista, o país envolveu-se, ao longo da história, em iniciativas bélicas na Coreia, na proteção a Taiwan e Israel, e na fracassada intervenção no Afeganistão, entre outras. Atualmente, fora a derrota vergonhosa para os guerrilheiros esfarrapados do Afeganistão, todos esses são pontos nevrálgicos que poderão levar a uma guerra catastrófica. E tudo isso, como um legado da hegemonia política que se revelou totalmente fracassada no contexto da civilização ocidental. O que há de mais asqueroso, nesta guerra, é o comportamento da imprensa ocidental, com raríssimas exceções. Ela ignora sistematicamente essas sucessivas provocações à Rússia que vêm ocorrendo desde o fim da União Soviética, inclusive as intervenções militares pela OTAN na antiga Iugoslávia e na Tchecoslováquia. Um golpista internacional, como o bilionário George Soros, dono da ONG Open Society, que se apresenta como “filantropo”, e que, como Elon Musk, se considera dono do mundo, teve participação direta no movimento de 2014 que derrubou o governo legitimamente eleito na Ucrânia, a fim de abrir caminho para os neofacistas que assumiram o poder sob o comando do fantoche Volodymir Zelensky. Na verdade, a guerra na Ucrânia foi fomentada, internamente, por uma rede de ONGs vinculada ao “Projeto Democracia”, e ao próprio Open Society Institute, que receberam nas últimas décadas cerca de US$ 6 bilhões do Departamento de Estado norte-americano para financiar movimentos contra países simpáticos à Rússia, segundo a agenda geopolítica do eixo Washington-Londres. Após a derrubada do governo legítimo da Ucrânia, em 2014, George Soros fez uma ameaça direta a Putin, de acordo com a insuspeita revista americana “Foreign Affairs”, de setembro de 2.2014, afirmando que esse seria o destino também da Rússia e, pessoalmente, do presidente do país. O próprio Soros não faz segredo disso, já tendo admitido que as suas ONGs ucranianas têm tido uma participação relevante nos acontecimentos no país, como fez em uma entrevista ao apresentador da rede CNN Fareed Zakaria, em 25 de maio de 2014. Sua rede golpista opera na Ucrânia desde 1989, dois anos antes da implosão da União Soviética. Desde então, a International Renaissance Foundation (IRF) e o Open Society Institute investiram mais de 100 milhões de dólares, para criar e apoiar ONGs locais, com treinamento, seminários e outros meios, com o objetivo expresso de promover a integração da Ucrânia à UE e afastá-la da influência da Rússia. *J. Carlos de Assis é economista, doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e autor de mais de 20 livros sobre economia política. Ilustração da capa: Latuff/MintPressNews. Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

Cultura

Linguicídio desconhece o “pretoguês”

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Linguicídio desconhece o “pretoguês”
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Por EDELBERTO BEHS* Diferente do idioma falado em Portugal, o português do Brasil, pela importante contribuição que recebeu de idiomas africanos trazidos pelos escravos, deveria se chamar “pretoguês”. A proposição é da antropóloga negra Lélia Gonzalez e vem corroborada pelo professor da Universidade Federal do Sul da Bahia, Gabriel Nascimento, em seu livro “Racismo Linguístico: Os subterrâneos da linguagem e do racismo” (Editora Letramento, 2019). Uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado, Lélia Gonzalez também descreveu a América Latina como “amefricana”, para dizer que, apesar do branqueamento, há muitas razões para descrever boa parte da América Latina como proveniente de uma intensa racialização. O signo “negro” não é um conceito natural. Ele foi criado pela branquitude. “Ou seja, os negros africanos, antes de serem colonizados e sequestrados, não se chamavam como ‘negros’ ou reivindicavam para si a identidade ‘negra’ como ‘naturalmente’ deles”, escreve Nascimento. Negros e indígenas foram e são vítimas de um “epistemicídio” traduzido num “linguicídio”. A filósofa e escritora Aparecida Sueli Carneiro define o “epistemicído” como o extermínio do conhecimento do outro. “É o formato pelo qual a colonialidade sequestra, subtrai tudo o que puder se apropriar a apaga os saberes e práticas dos povos originários e tradicionais”, explica a ativista diretora do Geledés - Instituto da Mulher Negra. O epistemicídio também está relacionado ao linguicídio. Segundo Sueli, o combate às línguas já faladas pelos povos originários negros e indígenas figura como um dos primeiros atos do mito da brasilidade linguística. O professor alemão Wolf Dietrich, vinculado à Universidade Federal do Paraná, lembra que quase um século depois da chegada do europeu ao Brasil, índios e portugueses tinham como principal idioma de comunicação a Língua Geral, com base no tupi, língua falada pelos Tupinambás. [caption id="attachment_15629" align="aligncenter" width="474"] Crédito: Portal do Amazonas[/caption] Foi o marquês de Pombal, com suas reformas, que implantou uma política que impediu o uso da Língua Geral como idioma de comunicação da população que vivia no Brasil. Nascimento pergunta por que, num país com mais de 180 línguas indígenas o português, além da Língua Brasileira de Sinais – Libras, é a única língua oficial do país? “Assim, não se pode afirmar a língua como um lugar pacífico. A língua é um lugar de muitas dores para muitos de nós”, confessa Nascimento. O estudioso negro oriundo da Martinica, Frantz Fanon, entende a língua como uma marca de dominação e por onde também acontece a figura estruturante do racismo. Para Nascimento, “o racismo é produzido nas condições históricas, econômicas, culturais e políticas, e nelas se firmam, mas é a partir da língua que ele materializa suas formas de dominação”. Para o filósofo, historiador e professor universitário camaronês Achille Mbembe, a negritude não é um conceito de autoidentificação dos negros, “mas uma imposição perversa” através de sinais, como a manutenção da visão da miséria relacionada a países da África, ou a piadas racistas e provérbios populares negativos. O ocidente, frisa Nascimento, usou a linguagem para racializar sujeitos na América desde 1492 e como objeto para fortalecer os regimes colonialistas, nomeando e conceituando o mundo numa visão eurocêntrica. Assim, “o mundo ocidental produziu nos ‘outros’ os signos de dominação ao chamá-los de ‘raça’ ao passo que, ao criar essas definições, criou o branco, cristão, civilizado, heterossexual e burguês”, escreve o professor baiano. [caption id="attachment_15626" align="aligncenter" width="4000"] Infografia Indíganas PT - INFOGRAFIA_Lenguas indíganas PT - Somos Iberoamérica / Somos Ibero-América (somosiberoamerica.org)[/caption] Mas, continua, ao subjugar o negro, “o próprio branco se desumanizou, transformando-se, ele próprio, em animal, e assim invocando o esgotamento do próprio projeto do humanismo”, levando, inclusive, a sistemas perverso, como é o caso do fascismo. Recorrendo ao poeta, dramaturgo e político da negritude, Aimé Fernand David Césaire, o professor Nascimento constata que o racismo cria suas marcas também na branquitude. “Um Hitler, um Trump ou um Bolsonaro não nascem à toa. Antes do fascismo, o racismo é a condição estruturante que permite que, nessas sociedades, tanto o colonizador quanto o colonizado enfrentem os fantasmas da raça criados pelo colonizador”. *Edelberto Behs é Jornalista, Coordenador do Curso de Jornalismo da Unisinos durante o período de 2003 a 2020. Foi editor assistente de Geral no Diário do Sul, de Porto Alegre, assessor de imprensa da IECLB, assessor de imprensa do Consulado Geral da República Federal da Alemanha, em Porto Alegre, e editor do serviço em português da Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC). Ilustração da capa: Paula P. Rezende. Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.    

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Será verdade?

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Será verdade?
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Por MARÍLIA VERÍSSIMO VERONESE* Será uma outra masculinidade possível, ou permaneceremos eternamente nesse looping de decepções, acusações, dúvidas e sofrimentos? As perdas são para todas e todos os envolvidos em casos de assédio sexual. Perdas de reputação, perdas profissionais, pessoais, familiares, de saúde, de paz. Recentemente, quando meu professor e orientador (fiz estágio sanduíche em Coimbra, em 2003, estando ligada a essa Universidade até hoje, 21 anos depois) foi acusado de assédio, uma parente me escreveu e perguntou: será verdade??? Ontem à noite, quando foram divulgadas as denúncias contra Silvio Almeida, os primeiros comentários que chegaram para mim foram variações em torno do “será verdade?”. Pessoas incrédulas, assombradas, diante da admiração que sentiam tanto pelo acusado, como por uma das denunciantes, aquela que representa sua irmã, cujo assassinato revelou os bastidores da podridão miliciana, policial, institucional. Era para estarmos todos juntos nas lutas... esse triste e inesperado episódio nos provoca uma dissonância cognitiva, termo de Leon Festinger que foi recuperado por autores atuais. As mulheres que são feministas, críticas do patriarcado cis-hetero-normativo, têm fechado em torno de uma escolha: nunca questionar a veracidade de uma vítima de assédio que denuncia. Isso porque são séculos de descrença, de opressão, de suportar caladas as violências, de se envergonhar por violações sofridas. Somos educadas para “não criar problemas”. Somos subjetivadas pelos sistemas de dominação operantes, sendo o patriarcado o mais antigo deles. Essa aposta pode, eventualmente, estar errada? Raríssimas vezes, pode sim. Lembro de apenas um caso: o de Julian Assange. Ali, a teoria conspiratória tinha alguma base; os poderosos do mundo armaram contra ele, que os desafiou. Contudo, meus caros e caras, é extremamente raro. Assim, este texto parte do pressuposto ético-político da veracidade das denúncias e da solidariedade às denunciantes. Passei um vídeo para meus alunos esta semana, no qual Regina Navarro Lins, num USP-Talks, falava que antes da descoberta da participação masculina na reprodução humana, as mulheres eram respeitadas e há hipóteses de sociedades matriarcais, pois matrilineares. Tudo muda quando, ao iniciar a domesticação dos animais, percebeu-se que ovelhas desgarradas não tinham filhotes. A observação aguçou-se e caíram as fichas: é o macho que fertiliza a fêmea. Tal fenômeno teria coincidido com o início da propriedade privada: daí passou a ser importante garantir a paternidade, para fins de herança. Foi a partir daí que a mulher foi aprisionada ao espaço privado, que se inventou que ela deveria ser recatada, do lar e só se relacionar com o senhor seu marido. Nem preciso dizer o quanto as religiões patriarcais, como as tradições judaico-cristã e islâmica reforçaram esse pensamento e essas práticas. Essa ideologia tomou conta de praticamente todo o globo. Afinal, propriedade privada também se tornou uma obsessão generalizada. Todo o tipo de maldade, guerra, atrocidade foi praticada em função dela. E também ela se revestiu de um caráter moral, sacrossanto. Mas isso já foge do meu foco e fica para outro texto; voltemos ao tema dos assédios. No primeiro caso que citei, tratava-se de um “pai” intelectual, alguém que me ensinou muito sobre a conexão do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado, essa complexa articulação que sustenta relações tão desiguais de poder e de saber. Foi, para mim, um misto de tristeza, decepção, vergonha, culpa... mas culpa, de quê? De não ter sido assediada? De ter tido uma relação muito boa com o orientador? Não faz o menor sentido. Acontece que as emoções têm sua própria lógica, seus fluxos incertos que independem de ideias racionais. De qualquer modo, refletir sobre tudo isso tem me levado a pensar que o patriarcado é uma patologia. Ele rouba a lucidez, o bom senso e o equilíbrio tanto de homens quanto de mulheres. Não falo aqui de machistas contumazes, dos que cultivam um modelo de masculinidade à lá coach do Campari, pois esses não têm qualquer lucidez para ser perdida. Me refiro a homens intelectualizados, inteligentes e... de esquerda. Como nesses dois casos que citei. O que leva um homem altamente sofisticado em termos intelectuais, com uma brilhante carreira e reputação a zelar, ceder a uma ridícula tentação quinta série de enfiar a mão entre as pernas de uma mulher? Que patética insânia é essa? Que falta completa de lucidez (nem falo de respeito, decência e dignidade, notem!) de colocar seu nome em risco por tamanha cretinice, já que se sabe que hoje as mulheres também intelectualizadas podem não ficar mais quietas?! Seria a certeza da impunidade que milênios de patriarcado fixaram nos genes masculinos? Ou seria mesmo uma posição alucinada que coloca sofisticados intelectuais de esquerda num nível Pablo Marçal de canalhice e Jair Bolsonaro de burrice e tosquice? Um misto de ambas as coisas? As mulheres são, por sua vez, colocadas em lugares de paralisia, medo, vergonha e pavor que estão longe da lucidez (me refiro aqui, especialmente, às mulheres adultas e informadas). Ao não denunciar, ao eventualmente seguirem engajadas na relação profissional e/ou pessoal com o assediador, dão “munição ao inimigo”. Num caso de eventual denúncia, anos passados dos eventos, perguntar-se-á: “por que não denunciou antes? Será verdade?”. No primeiro caso citado, uma das denunciantes relatou eventos que ocorreram em 2010, que foram terríveis, humilhantes e sofridíssimos. Por que seguiu escrevendo ao assediador até 2014 (tive acesso aos e-mails) em termos amistosos, inclusive solicitando recursos para participação em eventos, tratando-o por “meu querido amigo”? Isso pôs em dúvida a palavra dela diante de quem perguntou: será verdade? Não podemos entrar em dinâmicas de "eu aguento, porque tenho compensações, porque não posso falar, porque não acreditarão em mim"... Talvez eu não esteja me exprimindo bem e temo até ser mal interpretada (estou com as mulheres!), mas sinto que precisamos nós também de um aprendizado para enfrentar essas situações, para agir rapidamente, para não deixar a coisa andando por anos a fio, cronificando, naturalizando-se. Compartilhei com meus pares, minhas colegas de profissão, essas angústias, e as manifestações foram no sentido de entender que ainda estamos aprendendo que o que antes se vivia calada, hoje tem nome e não precisamos aceitar, não podemos mais aceitar. De compreender e assimilar como um valor inegociável, assim como as mulheres que nos antecederam aprenderam que violência sexual tinha nome e poderia ser considerada ilegal, um crime. Que não estava certo ceder diante dos desejos do homem, contrariando o seu próprio. Nesse difícil aprendizado, é natural que haja ambivalências e contradições, hesitações e dificuldades. Uma colega da área do direito ainda reforçou que se vê muito isso em processos judiciais, e que serve sempre para desqualificar a vítima e sua denúncia, por vezes com sucesso. Seja como for, acho que precisamos nos fortalecer e apoiar, para termos a força de gritar que fomos assediadas! No lugar da paralisia, o grito: não aceitarei essa violência! Ela é indigna e criminosa! Quando ela acontecer, será imediatamente rechaçada e denunciada. Acho que conseguimos chegar lá, com apoio mútuo e acolhimento. Com mudança cultural. Quanto aos homens, o “tratamento” da patologia começa por compreender que não têm de dominar nada nem ninguém além deles mesmos. Controlar os impulsos é o controle que precisam exercer: aquele sobre si mesmos. E saber que não se trata de jogo de sedução, que não é algo lúdico: é asqueroso, criminoso, inadequado, nojento. Nosso campo (esquerda, progressista, crítico, como queiram chamar) precisa dar conta da questão étnico-racial e de gênero, ou seguirá refém de arrogâncias impermeáveis à reflexão e autocrítica. Não há como mudar o cenário dantesco sem dolorosos processos, que revelem o que nos entristece tanto. Receio não haver outro caminho; vamos trilhá-lo juntos, homens e mulheres que sabem que isso tem de acabar, que basta, como diz a Mafalda do Quino. *Marília Veríssimo Veronese é Psicóloga social, docente e pesquisadora Foto da capa: reprodução Fonte: redes sociais Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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Por LÉA AARÃO REIS* O título acima denomina um documentário sobre a percepção do tempo por parte do ser humano, realizado por Walter Carvalho e Adriana Dutra em 2014. No caso presente, o bordão se aplica a A Escavação (The Dig), do australiano Simon Stone, realizado em 2021, um dos filmes mais apreciados pelas plateias de plataformas de streaming. É mais um trabalho baseado no modo como utilizamos o tempo através de datas históricas, acontecimentos notáveis, ciclos da vida e, sobretudo, da ciência da arqueologia. O filme mostra como percebemos o transcorrer do tempo e o enigma contido em uma noção de tempo construída pela nossa consciência e racionalidade; mas que, na verdade, é impossível de mensurar, apesar dos esforços para balizá-lo. Simon Stone adaptou um romance de John Preston com o mesmo nome. O conhecido escritor britânico é sobrinho de uma das personagens envolvidas nesse episódio, Margaret Piggott, como se vê no filme, uma história real que se passou em 1939, na iminência da entrada da Grã-Bretanha na guerra contra a Alemanha e do início dos bombardeios com a blitzkrieg germânica. A história de A Escavação é a seguinte: naquele ano de 1939, uma viúva, Edith Pretty (atriz Carey Mulligan, perfeita no papel), contratou um competente escavador de terrenos, um autodidata chamado Basil Brown, para explorar uma área do seu vasto terreno em Sutton Hoo. Uma formação geológica de montes de terra próximos ao mar sugeria que ali talvez tivesse havido ações humanas e indícios disso enterrados debaixo do solo. E havia. A descoberta arqueológica de Edith e de Basil Brown (o ator Ralph Fiennes, como sempre, empático) é hoje considerada uma das mais importantes do século 20 e a maior e mais lucrativa operação arqueológica do Reino Unido com esse tesouro descoberto e retirado das terras de Sutton Hoo. Vestígios de uma sociedade que amava a arte, e a sua descoberta fez com que fossem revistos capítulos importantes da história europeia. Amuletos, joias e uma considerável quantidade de ouro encontrado no barco mortuário de um guerreiro da Idade Média, no total 250 objetos, encontram-se atualmente em exposição e em lugar de destaque no Museu Britânico. O material é a prova da existência e da ação dos anglo-saxões em época anterior à dos vikings e constitui a origem da certidão de nascimento dos britânicos. O filme rastreia, inicialmente, a trajetória de Basil Brown, um outsider que nunca cursou uma universidade, mas que estudou profundamente assuntos de seu interesse: idiomas (era poliglota), astronomia e arqueologia. Um homem livre e, esse sim, um verdadeiro libertário. Veja Também: Programas – de 5 a 13 de setembro | Rede Estação Democracia - RED No desenrolar da trama, Brown se afeiçoa ao filho de Edith, um garoto de sete anos, Robert, que logo fica fascinado pelo escavador. Na vida real, Robert veio a ser astrônomo e morreu adulto, já maduro, em Londres. Mais adiante, o roteiro de A Escavação se desvia desse rumo familiar e se fixa nas consequências e situações advindas dos tesouros encontrados. A doença terminal de Edith, o sofrimento do seu pequeno filho ao perceber que ficará sem a mãe, a arrogância, a cupidez e a inveja habitual dos competidores, no caso dos arqueólogos profissionais e funcionários do Museu Britânico. Esses, é claro, relutam em confiar na experiência e no talento de Brown. O ator Ken Stott (da famosa série O Hobbit) faz um arrogante burocrata como o pomposo Charles Phillips, querendo levar o crédito pela fantástica descoberta que finalmente atrai o interesse do Museu Britânico. Novos personagens coadjuvantes surgem, com suas próprias histórias e paixões, deixando um sabor de carência no espectador, que talvez espere mais substância no amadurecimento do perfil do escavador e do seu entorno. E das relações com sua companheira, com a viúva Edith e com o menino Robert; sobretudo as querelas apenas sugeridas, entre a proprietária das terras e dos tesouros nelas encontrados e seu confronto com os burocratas. Embora o desvio e a dispersão da narrativa possam incomodar às vezes, o filme não cai nas armadilhas do lugar-comum meloso e medíocre com vistas à bilheteira. O diretor Simon Stone é inteligente, sensível e parece ser consciente do que informa ao espectador: apenas um pequeno recorte da passagem do tempo. Em certo momento, por sinal, ele destaca as palavras de John Preston colocadas na boca do escavador Simon Brown e ditas à viúva Edith, doente e triste por deixar o filho sozinho quando morrer. “Desde a primeira impressão humana na parede de uma caverna, fazemos parte de algo contínuo. Então, nós não morremos.” Edith, na realidade, morreu três anos após a conclusão das escavações de Sutton Hoo. E o nome de Simon Brown só foi registrado no Museu Britânico bastante tempo depois. *Léa Aarão Reis é jornalista. Foto da capa: Filme: Quanto tempo o tempo tem - Divulgação. https://youtu.be/gAE2aRlsHYo

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