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Patacoada da Marinha do Brasil ou a sobrevida dos golpistas
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Por BENEDITO TADEU CÉSAR*
Sob o pretexto de comemorar o Dia do Marinheiro (13 de dezembro), a Marinha do Brasil divulgou vídeo nesta semana com indireta ao governo federal e ao pacote de ajuste fiscal divulgado pelo ministro Fernando Haddad, da Fazenda.
Com a possibilidade de serem alteradas regalias atualmente privativas dos militares, a Força se incomodou e foi à luta e, o que é pior, o fez com aval da alta cúpula, incluindo o Comandante da Marinha Almirante de Esquadra Marcos Sampaio Olsen, segundo informação divulgada pelo site UOL.
Se a informação for correta, o vídeo vai além do mero equívoco ou da defesa de privilégios. Ele expressa um desafio da Marinha do Brasil à iniciativa do governo federal de fazer com que as Forças Armadas colaborem com os cortes de gastos públicos, assim como os demais trabalhadores brasileiros.
O vídeo aposta na ironia, mostrando a vida dos marinheiros como muito difícil e a vida dos cidadãos brasileiros em geral como muito prazerosa e, diante desta diferença, lançando a pergunta: “Privilégios? Vem para a Marinha.”. Um desafio deste teor representa uma insubordinação com a autoridade maior do país e chefe supremo das Forças Armadas, ao qual os militares devem constitucionalmente obediência.
Sobre privilégios, é bom que se lembre que, diferentemente dos paisanos brasileiros (ou seja, dos cidadãos não fardados), os militares de todas as Forças se aposentam com vencimentos integrais após 35 anos de trabalho sem idade mínima; os paisanos só podem se aposentar após 35 anos de contribuição (homens) ou 30 anos de contribuição (mulheres) se tiverem 65 anos de vida (homens) ou 62 anos (mulheres).
Além disso, os militares mantêm pensões integrais para seus dependentes e, pasmem, também para “mortos vivos” - militares afastados por irregularidades que são considerados mortos para que suas “viúvas” e seus “filhos órfãos” (e ele próprio, claro, já que permanece vivo) continuem a receber seus soldos (até o salário de militar tem outro nome!). Privilégio como este só se assemelha ao dos magistrados que, se punidos por irregularidades na aplicação das leis e sentenças proferidas, são aposentados com vencimentos integrais!
Diferentemente dos paisanos, a contribuição previdenciária dos militares de todas as Forças atualmente é de 10,5% do soldo, enquanto a dos trabalhadores assalariados civis chega a 14% do salário e a 20% dos vencimentos dos autônomos e entre os servidores públicos federais alcança até 22%.
Diferentemente dos paisanos, que precisam recorrer ao SUS ou a convênios particulares, os oficiais e seus dependentes têm direito a assistência médica, hospitalar, odontológica, psicológica e social ao custo de 3,5% do soldo, o que lhes garante acesso a uma rede hospitalar privativa e de uso vedado aos civis e a clínicas e hospitais conveniados. Têm também uma rede escolar própria e hotéis de trânsito, que servem para as atividades de serviço e para as de lazer extensivas aos seus familiares.
Diferentemente dos paisanos, os militares têm moradia gratuita ou recebem indenização dos valores gastos com habitação, em caso de não possuírem residência própria. Recentemente foi divulgado o valor de 3,6 milhões de reais para a construção de uma casa para um oficial do Exército em Brasília.
O pacote anunciado por Fernando Haddad prevê que os militares passarão a se aposentar com vencimentos integrais “apenas” aos 55 anos, ainda que, cauteloso, o ministro, em nome do governo, tenha proposto que esta alteração só comece a vigorar em 2032. Enquanto isso não ocorre, em caso de aposentadoria haverá um pedágio de 9% sobre o tempo que faltar para o militar passar para a reserva.
Destaque-se que parte dessas regalias foram obtidas durante o governo de Jair Messias Bolsonaro e o mais notável é que elas foram implantadas concomitantemente às reformas previdenciárias que retiraram direitos historicamente conquistados pelos trabalhadores civis brasileiros, sejam eles servidores públicos ou da iniciativa privada. Naquele momento, esses trabalhadores viram aumentados o tempo de serviço e a idade mínima para aposentadoria, bem como as alíquotas de contribuição previdenciária.
Juntamente com a reforma previdenciária realizada por Bolsonaro, os militares de todas as Forças foram agraciados com aumentos salariais significativos, ao mesmo tempo em que os demais servidores públicos federais brasileiros (civis) foram privados de reajustes salariais durante todos os quatro anos de seu governo.
Ofendidos pela “ameaça” de cortes de privilégios provinda do governo Lula, a Marinha divulgou o vídeo de 1 minuto e 15 segundos mostrando os contrastes entre a “boa vida” dos paisanos e a “vida dura” dos integrantes da Marinha. No vídeo, são alternadas atividades rotineiras e difíceis da vida dos marinheiros (notadamente dos Praças, ou seja, dos não oficiais) com as atividades prazerosas da vida dos paisanos civis. De acordo com o vídeo, enquanto os integrantes da Marinha “ralam” os civis paisanos vivem surfando, frequentando praias e festas.
De acordo com a argumentação corrente entre os militares, as atividades por eles exercidas ocorrem em condições distintas das realizadas pelos civis, ou seja, pelos paisanos. Segundo a argumentação, não obstante eles arrisquem a vida para defender a Pátria, não lhes é garantido o direito à greve, os direitos políticos, de horas extras, de adicional de periculosidade etc., além disso, eles não se “aposentam”, mas se “reformam”, o que significa que eles passam para a reserva da Força a que serviram e podem ser reconvocados em caso de necessidade, sem pagamento adicional.
A série de equívocos é gritante. Em primeiro lugar, em nenhum país democrático do mundo militares têm direitos políticos ou de organização para exercer pressão sobre o Poder Civil, seja salarial ou de qualquer natureza. Esta é uma necessidade para refrear o poder daqueles que detêm a força bélica e é a fórmula possível para mantê-los sob o controle da sociedade civil desarmada.
Em segundo lugar, desde a Guerra contra o Paraguai (1864/70) o Brasil não se envolveu em nenhuma guerra externa, não obstante a participação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial (1939/45) ao lado das Forças Aliadas, durante o período de agosto de 1943 a janeiro de 1945, e das Forças Armadas Brasileiras em operações internacionais de manutenção da paz patrocinadas pela ONU e na Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustha), de 2004 a 2017. Todas essas ações foram realizadas por militares da ativa.
As grandes ações militares brasileiras ocorreram majoritariamente no interior do próprio país e contra cidadãos brasileiros – o que contraria as funções de quaisquer Forças Armadas de países democráticos, que existem para defender a Pátria e os compatriotas ou paisanos contra agressões externas, ficando as funções repressivas internas a cargo das forças policiais.
Sem esgotar a lista, pode-se lembrar das ações militares contra os Cabanos (1832/35), os Farroupilhas (1835/45), os Praieiros (1848/50), os Muckers (1873/74), os sertanejos de Canudos (1896/97) ou, mais recentemente, os “subversivos” que se insurgiram contra o domínio dos próprios militares durante a ditadura militar (1964/1985), seja no extermínio dos combatentes das guerrilhas do Caparaó (1966/67) e do Araguaia (1972/74), seja na repressão, tortura, assassinato e “desaparecimento” de participantes das lutas (armadas ou não) de resistência democrática.
Sem a existência de guerras externas há exatos 154 anos, os militares da “reserva” não são convocados para defender o território da Pátria há mais de um século, ou seja, desde o final da Guerra do Paraguai. Não obstante este fato, eles exerceram e exercem funções caracteristicamente civis ao longo deste longo período, seja em órgãos da administração direta do Estado ou em agências e empresas públicas, e sempre foram renumerados adicionalmente por essas atividades. A título de exemplo, relembre-se que o general Ernesto Geisel, que depois viria a ser o quarto ditador presidente, foi, antes, Presidente da Petrobrás, e durante o governo Bolsonaro entre 2 mil e 4 mil militares da ativa e da reserva exerceram funções tipicamente civis remuneradas adicionalmente. Além do “soldo” eles receberam “salários”!
Os equívocos do vídeo do Dia dos Marinheiros são reveladores, além disso, de quão descolada da realidade é a visão que os militares (ao menos os da Marinha do Brasil) têm do país em que vivem e da população que deveriam defender de possíveis agressores externos. Será que os oficiais da Marinha do Brasil sabem como exercem suas funções profissionais e como vivem os/as trabalhadores da construção civil, os/as motoristas de caminhão ou de ônibus, os/as trabalhadores de aplicativos, os/as garis, os/as empregados domésticos, os/as professores, os/as agricultores, os/as médicos e demais profissionais da saúde, para ficarmos apenas em alguns poucos exemplos? Não se têm notícia de que eles vivam em festas, nas praias, bebendo ou praticando surf.
Soa como escárnio alternar no vídeo as atividades profissionais dos marinheiros de baixa patente (já que os de alta patente raramente as exercem) às imagens de diversões de lazer de parte minoritária dos paisanos.
Será crível que a Marinha do Brasil continua sendo tão elitista quanto foi até o final da Monarquia, quando reprimiu violentamente os marinheiros que participaram da Revolta da Chibata (1910)? Os marinheiros rasos, quase sempre negros, eram chicoteados como punição por faltas cometidas e foram duramente punidos quando se rebelaram contra tais práticas, mantidas mesmo após a Abolição da Escravatura.
O conservadorismo da Marinha do Brasil é histórico. Ela foi a única Força Armada que se manteve fiel à Monarquia, em 1889. Foram oficiais da Marinha do Brasil que se insurgiram contra as medidas modernizadoras, ainda que autoritárias, adotadas pelos dois primeiros Presidentes da República brasileiros, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto.
Recentemente, foi o Comandante da Marinha do Brasil durante o governo Bolsonaro, o almirante Almir Garnier Santos, o único (até onde se sabe) dos três oficiais generais integrantes do Alto Comando das Forças Armadas que aderiu ao golpe tramado por Jair Messias Bolsonaro. Ao que parece, e o vídeo reforça esta ideia, o golpismo não se limitou a Garnier Santos. Pelo que se depreende do vídeo, adeptos da intentona fracassada do 8 de janeiro continuam ativos no interior e no comando daquela Força.
Assista o vídeo, abaixo.
https://youtu.be/wcliGmN-U_Y?si=dCBwqvLZS9rvi63C
*Benedito Tadeu César é cientista político, doutor em Ciências Sociais, mestre em Antropologia Social, professor universitário aposentado e Coordenador Geral da Associação de Amigos do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito
Foto da capa: Pintura retratando o NAe São Paulo como capitânia da Esquadra Brasileira
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