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Afinal, o que aconteceu na Síria e na Coreia do Sul?
RED
Por FLÁVIO AGUIAR*, de Berlim
Dois acontecimentos relatados na mídia corporativa internacional como “surpreendentes” marcaram este final de ano: a queda de Bashar al-Assad na Síria e a crise política na Coreia do Sul, deflagrada pela tentativa do hoje presidente suspenso Yoon Suk-yeol de impor a lei marcial no país. A rápida queda de Bashar al-Assad foi de fato surpreendente. Já a crise sul-coreana nem tanto, pelo menos para quem conhece a história do país.
A Síria
As Forças Armadas da Síria tinham fama de coesão, disciplina, eficácia e consistência. Com apoio da Rússia e do Irã, enfrentaram com sucesso grupos rebeldes apoiados pela Turquia e pelos Estados Unidos e seus aliados ocidentais, reunidos na frente do Exército Livre da Síria, e forças do Estado Islâmico desde que a guerra civil começou no país, em 2011/2012. Embora ambos os oponentes do regime de Damasco obtivessem alguns sucessos iniciais, foram contidos e forçados a recuar em vários pontos pelo Exército Sírio, fiel a Bashar al-Assad.
Contra os insurgentes pesava o fato de estarem divididos, pois o Estado Islâmico, além de combater o Exército Sírio, combatia também o Exército Livre, enquanto era atacado por forças curdas. Estas eram hostilizadas e fustigadas pela Turquia, por razões internas deste país.
Além disto, houve um erro de cálculo por parte dos Estados Unidos, então governado por Barack Obama, e de seus aliados: estimaram que o Exército Sírio se desorganizaria rapidamente, como acontecera com as forças de Muammar Gadafi na Líbia e as de Saddam Hussein no Iraque. Para completar a complexidade do quadro, os Estados Unidos passaram a favorecer os curdos e a atacar posições do Estado Islâmico na Síria e no Iraque vizinho, onde o enfrentamento entre este e os curdos também acontecia.
Com seus oponentes fragmentados, o Exército Sírio manteve suas principais posições na defesa de Damasco e o regime de Bashar al- Assad, apesar das oposições internas, se sustentou até este final de 2024. Por isto, quando uma frente rebelde islamista, liderada pela organização Hay’at Tahrir al-Sham, anunciou no final de novembro que recomeçava a ofensiva contra o regime de Assad, tomando Aleppo e atacando outras cidades, o que se esperava é que houvesse uma reação vigorosa, como acontecera antes, por parte do Exército Sírio. Com a tomada de Aleppo e outros avanços, a nova frente rebelde conclamou outras forças rebeldes a juntar-se a ela no ataque contra o regime de Assad, o que de fato aconteceu, inclusive por parte do Exército Livre da Síria.
A reação do Exército Sírio não veio; ao contrário, ele derreteu, e a frente ampla rebelde cercou e tomou a capital, Damasco. Assad fugiu apressadamente e asilou-se em Moscou.
Ainda é difícil discernir o que exatamente aconteceu para provocar essa rápida queda do regime. Há várias hipóteses levantadas:
A oposição interna ao regime de Assad crescera muito nos últimos anos. A prisão de dissidentes do regime se multiplicou, e os cárceres estavam lotados.
Esperava-se maior apoio ao regime por parte da Rússia e do Irã, que não veio, pelo menos com a intensidade esperada. Há comentários de que a Rússia está por demais ocupada com guerra na Ucrânia, e que o Irã se viu enfraquecido pela ofensiva israelense na região, que atacou duramente o grupo Hezbollah, também favorável a Assad. O argumento procede, mas não explica tudo. Por alguma razão, Assad perdeu apoio em Moscou e em Teerã.
Da mesma forma, o regime de Assad perdeu apoio no Exército Sírio, que deixou de defende-lo, abandonando-o à própria sorte.
Desde os anos 60, o regime de Damasco tinha três pilares de suporte: o Partido Baath, descrito como socialista e pró-soviético, de forte influência nas Forças Armadas; o grupo chamado de Alawitas, islâmico, frequentemente descrito como “esotérico”, de onde sairia o pai de Bashar, Hafez al-Assad, que governou o país de 1971 até sua morte, em 2000; e as próprias Forcas Armadas. Lutas internas e a crise dos regimes comunistas no mundo inteiro fizeram com que este conjunto de forças fossem se afastando de seus princípios socialistas e se concentrando em torno da lealdade ao clã dos Assad que, por sua vez, esmerou-se na repressão a grupos islâmicos, como a Irmandade Muçulmana. É possível que o crescente caráter oligárquico do regime em torno de Assad tenha contribuído para seu isolamento frente ao núcleo das Forças Armadas que o apoiava, transformado no pilar central do regime com o progressivo enfraquecimento do Partido Baath.
O mistério agora é o que acontecerá no país. O grupo Hay’at Tahrir al- Sham foi fundado em 2012 com o nome de al-Nusra e mantinha relação com a Al-Qaïda. Mudou de nome e anunciou desfiliação da Al-Qaïda, mas seu líder, Abu Mohammed al-Jolani é considerado “terrorista” pelos Estados Unidos, Reino Unido e a própria ONU e segundo a BBC tem sobre sua cabeça uma recompensa pela sua captura de 10 milhões de dólares.
Com apoio da Turquia grupos rebeldes atacam forças curdas perto da fronteira com este país. Em outros pontos do território sírio remanescentes das forcas fiéis a Assad ainda oferecem resistência aos vencedores em Damasco. Estes formaram um governo provisório que promete construir “uma Síria plural”, seja lá o que isto signifique. Ex- ministros do governo de Assad permanecem na capital e afirmam estar colaborando com o novo governo. Israel ataca posições sírias no sul do país alegando, como de costume, “necessidades defensivas”.
E a Rússia não demonstra qualquer intenção de abandonar sua base naval junto ao porto de Tartus, nas costa síria do Mediterrâneo. Em resumo, reina ali um grande imbroglio.
A Coreia do Sul
A mídia corporativa internacional costuma apresentar a Coreia do Sul como uma democracia historicamente consolidada, em comparação com a Coreia do Norte, sistematicamente descrita como um país dominado por um regime comunista totalitário. Os líderes daquela sempre aparecem com traços de seriedade e trajes ocidentais, enquanto Kim Jong Un, o presidente desta, aparece como um ditador ao mesmo tempo sinistro e ridículo, que veste paramentos militares e tem comportamentos excêntricos, além de um penteado histriônico.
Diante deste quadro, que pinta a Coreia do Sul com cores róseas e a Coreia do Norte com cores tétricas ou bufas, é que a crise política de dezembro de 2024 parece um surprendente raio em céu azul. A realidade - tanto histórica quanto recente - é bem outra.
A Coreia do Sul foi governada por dois ditadores militares de 1961 a 1987. O primeiro foi Park Chung Hee, assassinado em 1979 pelo chefe do serviço de segurança do país, num episódio cujos motivos até hoje permanecem obscuros. O segundo foi Chung Doo-hwan. Ambos governaram com apoio em unidades militares bem treinadas em repressão e inteligência. A principal delas é o Comando Especial de Guerra da Coreia do Sul, criado em 1958 e ativo até hoje, com amplo apoio e suporte técnico nos Estados Unidos.
Entre 1987 e 1997 os governos sul- coreanos continuaram caracterizados por traços e estilos autoritários. A Coreia do Sul só foi amplamente reconhecida como membro do clube das “democracias modernas ocidentais” em 1997, com a eleição de Kim Dae-jung como presidente, um político do Partido Democrático, até então de oposição. Em 2022 Yoon Suk-yeol, um político extremamente conservador do direitista Partido do Poder Popular, foi eleito contra seus oponentes por uma margem estreita de votos. Em abril de 2024 o Partido Democrático venceu as eleições legislativas e a oposição tornou-se maioria na Assembleia Nacional. Seguindo a hoje cartilha internacional da direita e da extrema=direita, Yoon Suk-yeol passou a denunciar fraudes nesta eleição. Segundo denúncias de membros do PD em setembro deste ano, o presidente começou logo a preparar o decreto que estabeleceria a lei marcial no país, equivalente ao estado de sítio brasileiro.
Este decreto veio a público numa mensagem televisiva às 10 e meia da noite de 3 de dezembro. O presidente acusou o Partido Democrático de conivência com a Coreia do Norte, além de outras acusações. Determinou a invasão da Assembleia Nacional por parte do Comando Especial de Guerra, também a da Comissão Eleitoral do país, bem como a prisão de diversas personalidades da oposição e até de seu próprio partido e a repressão sobre sindicatos e outras organizações potencialmente oposicionistas.
Apesar do cerco e da invasão da Assembleia, uma maioria expressiva dos 300 parlamentares conseguiu chegar ao plenário, votando por unanimidade a anulação do decreto presidencial.
Este movimento provocou uma divisão no aparato militar, com algumas unidades recusando-se a cumprir as ordens do presidente ou retardando sua execução. Por fim, o Comando de Guerra retirou-se da Assembleia Nacional e o presidente revogou seu próprio decreto. A tentativa de aplicação da lei marcial é hoje amplamente descrita como um auto-golpe, no estilo daquele preparado por ocupantes do Palácio do Planalto em Brasília durante o governo passado.
Na sequência, depois de uma primeira tentativa fracassada, a Assembleia Nacional votou o impeachment de Yoon Suk-yeol. Na prática, isto significa que ele foi suspenso do cargo até que, com o prazo máximo de seis meses, uma comissão constitucional de alto nível confirme seu afastamento.
Mais recentemente, seu substituto interino também foi afastado do cargo pela Assembleia Nacional. A crise, portanto, está longe de ter um fim. Uma hipótese tentadora é a de considerar que, nos bastidores, assim como aconteceu em 2022 no Brasil, os Estados Unidos tenham se negado a apoiar o auto-golpe, o que teria provocado a divisão nas Forças Armadas sul-coreanas.
*Flávio Aguiar é jornalista, analista político e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).
Foto de capa: Freepik
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