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Ignorância e estupidez na contemporaneidade
Ignorância e estupidez na contemporaneidade
Por DRA. MARIA SUSANA ARROSA SOARES (UFRGS)*
Ao iniciar a leitura deste artigo, o leitor logo pensará que a autora cometeu um erro ou equívoco. Como associar a modernidade – ou a Era do Conhecimento – à ignorância e à estupidez? Não é uma incoerência afirmar que, na atualidade, ocorrem simultaneamente processos tão contrapostos e díspares como o aumento do conhecimento, da ignorância e do número de estúpidos? Como será visto a seguir, não se trata de um erro, de um descuido ou de algo falso.
Desde meados do século XX, a Sociedade do Conhecimento tem sido estudada por pesquisadores de diversas especialidades, em particular os pertencentes ao campo da Sociologia do Conhecimento. Na extensa bibliografia resultante desses estudos são abordados temas relativos à origem do conhecimento, aos condicionantes sociais e às formas de distribuição e recepção dos diferentes tipos de conhecimento nas sociedades.
No século XXI, particularmente em anos recentes, o tema da ignorância tem ganhado relevância na agenda de estudos e debates entre psicólogos, sociólogos comunicadores e políticos. A revolução digital criou ferramentas que estão impulsionando o avanço do conhecimento e o aumento da ignorância. A produção em ritmo industrial de novos e revolucionários conhecimentos em diversos campos do saber desencadeou um verdadeiro “tsunami” cognitivo, origem da Infoxicação. A sobrecarga de informações tem redundado no aumento da ignorância dos indivíduos e afetado a capacidade de memória dos indivíduos. Na era Google a memória funciona de forma diferente; ela guarda somente as informações que não podem ser salvas no Google, o que os pesquisadores norte-americanos Betsy Sparrow, Jenny Liu e Daniel M. Wegner denominaram como o Efeito Google (Sparrow; Liu; Wegner, 2011).
Ao contrário do que geralmente se imagina, o aumento de novas informações sobre temas, assuntos e acontecimentos, particularmente relativos à vida social e à política não resulta em uma correspondente expansão do conhecimento dos indivíduos. As pesquisas abordam temas cada vez mais delimitados e os pesquisadores cientistas com elevado nível de especialização. O crescimento de tais estudos tem resultado na pulverização do conhecimento. Como assinala Epstein (2020, p. 20), “o desafio que todos enfrentamos é como manter os benefícios da amplitude, da experiência diversificada, do pensamento interdisciplinar e da concentração tardia em um mundo que cada vez mais incentiva (e até exige) a hiperespecialização”, o que provoca a ignorância. O Google sabe mais do que do que o estudioso ou o cidadão comum acreditam conhecer.
A ignorância pode se manifestar de três maneiras: 1) o indivíduo não sabe algo, 2) não quer saber algo ou 3) não quer que outras pessoas saibam algo (Burke, 2023, p. 36). A primeira forma de ignorância é passiva e se refere à ausência de conhecimento sobre um tema, acontecimento ou personagem. A segunda é ativa, já que o indivíduo nega ou rejeita a existência de conhecimentos que diferem dos que possui. A última forma, de caráter estratégico, é a ignorância fabricada pelo indivíduo com o propósito de desinformar os demais, ocultando suas verdadeiras motivações políticas ou econômicas. Exemplo da primeira forma de ignorância é o de um psicólogo que desconhece os possíveis impactos emocionais do coronavírus, de uma crise econômica ou de fake news. A segunda forma de ignorância ocorre quando, por exemplo, um governante ou um empresário que se recusa a avaliar os possíveis danos que provocará um projeto que se pretende implementar. Finalmente, a ignorância pode ser fabricada deliberadamente por um indivíduo, uma empresa, um partido político ou um governo com o objetivo de ocultar ou distorcer os verdadeiros objetivos pessoais, econômicos ou políticos de ações futuras.
A estupidez é um tipo particular de ignorância; não é um termo pejorativo, como usualmente é pensado, para referir-se à falta de conhecimento ou de capacidade cognitiva de um indivíduo. O estúpido não é consciente da sua própria estupidez; ele age sem refletir e é incapaz de dimensionar as possíveis consequências de suas atitudes e comportamentos. “O estúpido pode causar dano a outra pessoa ou grupo de pessoas sem obter, ao mesmo tempo, um proveito para si, ou até mesmo obtendo um prejuízo” (Cipolla, 2013, p. 27).
Quem é o estúpido? O estúpido é um tipo de pessoa que, por meio de suas ações, prejudica não só os interesses alheios, mas também os seus próprios. Nada de bom se pode apreender de seus atos. Nem para ele, nem para os demais. O estúpido é capaz de criar somente caos ao seu redor. É um elemento entrópico no qual todos, incluindo ele, sofrem com a desordem gerada (Nardiz, 2021, p. 27).
Dietrich Bonhoeffer, teólogo alemão e criador da teoria da estupidez, recomendava jamais tentar persuadir o estúpido com argumentos; é inútil e perigoso (Bonhoeffer, 2019, p. 63). A estupidez humana está relacionada com a complacência e com a incapacidade de discernir entre o bem e o mal, o correto e o incorreto, o valor social e o prejuízo social. A estupidez não tem origem psicológica nem está determinada pelo nível intelectual de um indivíduo. Indivíduos inteligentes, com diplomas universitários e artigos publicados em revistas científicas de prestigio internacional, em algumas circunstâncias podem agir de maneira estúpida. “Não existe uma conexão linear e direta entre a ignorância e a estupidez. Porém, quando se combinam e interagem, o resultado pode ser terrível” (Livraghi, 2010, p. 87).
Ao realizar uma observação atenta de gestos, atitudes e comportamentos de figuras políticas importantes, independentemente de país, condição social, gênero, idade, ideologia, crenças religiosas e nacionalidade pode-se constatar a grande quantidade de pessoas estúpidas existentes na vida social. Como demonstra o historiador econômico italiano Carlo M. Cipolla em seu livro As leis fundamentais da estupidez humana, “sempre e inevitavelmente, cada um de nós subestima o número de indivíduos estúpidos que circulam pelo mundo” (Cipolla, 2020, p. 15). O estúpido se sente satisfeito consigo mesmo e, em algumas circunstâncias, reage violentamente contra os que se opõem a ele.
O estúpido tem ideias estúpidas e atua com base nelas, o que pode ocorrer com pessoas inteligentes, com alto nível educacional e condições sociais confortáveis. Um indivíduo estúpido sente uma particular atração por figuras carismáticas seja no âmbito da política, no campo religioso e líderes com alto poder de mobilização. O filósofo italiano Giancarlo Livraghi, em sua obra O poder da estupidez, afirma que “a pessoa estúpida pode se integrar de forma instantânea a uma multidão ou outro grupo superestúdio” (Livraghi, 2010, p. 60).
A sensação de empoderamento que o estúpido experimenta ao participar de grupos de manifestantes radicalizados ou grandes multidões dificulta a comunicação com eles. Ele não consegue explicar as reais motivações por trás de suas atitudes e reage frequentemente de forma violenta. Sua comunicação se limita ao uso slogans, palavras soltas, ideias desconexas e frases marcadamente irracionais.
A estupidez é um fenômeno global e, atualmente, se propaga velozmente pelas redes sociais, ocasionando danos à convivência entre indivíduos e nações. “Quando a estupidez de uma pessoa se combina com a estupidez alheia, o impacto cresce de forma geométrica; isto é, por multiplicação, não por adição, dos fatores da estupidez individual” (Livraghi, 2010, p. 59).
O estúpido está convencido de que suas ideias e crenças têm um valor absoluto e os que se opõem a elas são julgados inimigos a combater. Indivíduos inteligentes, bem sucedidos e criativos não são imunes à estupidez. Em dada circunstância – seja uma reunião familiar, uma assembleia de condomínio, uma reunião política – um indivíduo pode comportar-se de maneira estúpida podendo chegar à agressão física.
“A estupidez não é exatamente um defeito de nascimento; em algumas circunstâncias, as pessoas são tornadas estúpidas, ou seja, aceitam tornar-se estúpidas” (Bonhoeffer, 2019, p. 62). Circunstâncias históricas – como guerras, revoluções, crises sociais, processos políticos ou eleições – ao afetarem emocionalmente os indivíduos, sequestram sua capacidade de raciocínio e de tomar decisões racionalmente fundamentadas. Em outras palavras, a estupidez anestesia o raciocínio dos indivíduos que se tornam vítimas do “efeito manada”.
Comentários
Este artigo teve sua origem na curiosidade despertada pela aparição, em muitos
países, de personagens estranhos que revolucionaram as comunicações sociais e, em
particular, a maneira de fazer política. Com atitudes, comportamentos e vocabulários
incomuns, tais indivíduos conseguiram conquistar multidões de seguidores. Em curto
espaço de tempo, indivíduos anônimos, com escasso capital social, cultural e político,
sem trajetórias profissionais destacadas, transformaram-se em mitos, heróis, atores
políticos, líderes populares e até governantes. Facilitados pelo uso das redes sociais, eles
revolucionaram a comunicação social impactando a convivência social e, particularmente, a política.
A escolha da ignorância e da estupidez como eixos do estudo resultou da constatação empírica do frequente uso de tais termos nos debates e confrontos políticos. A classificação do oponente como “ignorante” ou “estúpido” exime o autor da mensagem de formular argumentos racionais baseados em fatos e seu impacto destrutivo atua de forma imediata.
Referências
BURKE, Peter. Ignorância. Uma história geral (livro eletrônico – Kindle). Belo Horizonte:
Vestígio, 2023.
BONHOEFFER, Dietrich. Sobre a estupidez II. Em: MUSIL, Robert; BONHOFFER, Dietrich;
ERDMANN, Johann Eduard. Sobre a estupidez. Três ensaios. Tradução Nélio Schneider.
São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2019.
CIPOLLA, Carlo M. Cinco leis básicas da estupidez humana. Tradução Edmundo
Barreiros. São Paulo: Planeta, 2020.
EPSTEIN, David. Porque os generalistas vencem em um mundo de generalistas. São
Paulo: Globo Livros, 2020.
LIVRAGHI, Giancarlo. El poder de la estupidez. Barcelona: Ares y Mares, 2010.
NÁRDIZ, Alfredo R. Teoría general de la estupidez política. Barcelona: Bosch Editor,
2021.
SPARROW, Betsy; LIU, Jenny; WEGNER, Daniel M. Los efectos de Google en la memoria:
Consecuencias cognitivas de tener información al alcance de la mano. Science
Magazine, vol. 333, n. 776, 2011.
*Organizou e coordenou o Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais, vinculado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/ UFRGS.
Foto: Divulgação
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