?>

Destaque

Ignorância e estupidez na contemporaneidade

Ignorância e estupidez na contemporaneidade

Opinião por RED
25/10/2024 16:00 • Atualizado em 27/10/2024 15:23
Ignorância e estupidez na contemporaneidade

Por DRA. MARIA SUSANA ARROSA SOARES (UFRGS)*

Ao iniciar a leitura deste artigo, o leitor logo pensará que a autora cometeu um  erro ou equívoco. Como associar a modernidade – ou a Era do Conhecimento – à  ignorância e à estupidez? Não é uma incoerência afirmar que, na atualidade, ocorrem  simultaneamente processos tão contrapostos e díspares como o aumento do  conhecimento, da ignorância e do número de estúpidos? Como será visto a seguir, não  se trata de um erro, de um descuido ou de algo falso. 

Desde meados do século XX, a Sociedade do Conhecimento tem sido estudada por  pesquisadores de diversas especialidades, em particular os pertencentes ao campo da  Sociologia do Conhecimento. Na extensa bibliografia resultante desses estudos são  abordados temas relativos à origem do conhecimento, aos condicionantes sociais e às  formas de distribuição e recepção dos diferentes tipos de conhecimento nas sociedades. 

No século XXI, particularmente em anos recentes, o tema da ignorância tem  ganhado relevância na agenda de estudos e debates entre psicólogos, sociólogos  comunicadores e políticos. A revolução digital criou ferramentas que estão  impulsionando o avanço do conhecimento e o aumento da ignorância. A produção em  ritmo industrial de novos e revolucionários conhecimentos em diversos campos do  saber desencadeou um verdadeiro “tsunami” cognitivo, origem da Infoxicação. A sobrecarga de informações tem redundado no aumento da ignorância dos indivíduos e  afetado a capacidade de memória dos indivíduos. Na era Google a memória funciona de  forma diferente; ela guarda somente as informações que não podem ser salvas no  Google, o que os pesquisadores norte-americanos Betsy Sparrow, Jenny Liu e Daniel M.  Wegner denominaram como o Efeito Google (Sparrow; Liu; Wegner, 2011). 

Ao contrário do que geralmente se imagina, o aumento de novas informações  sobre temas, assuntos e acontecimentos, particularmente relativos à vida social e à  política não resulta em uma correspondente expansão do conhecimento dos indivíduos.  As pesquisas abordam temas cada vez mais delimitados e os pesquisadores cientistas com elevado nível de especialização. O crescimento de tais estudos tem  resultado na pulverização do conhecimento. Como assinala Epstein (2020, p. 20), “o desafio que todos enfrentamos é como manter os benefícios da amplitude, da  experiência diversificada, do pensamento interdisciplinar e da concentração tardia em  um mundo que cada vez mais incentiva (e até exige) a hiperespecialização”, o que  provoca a ignorância. O Google sabe mais do que do que o estudioso ou o cidadão  comum acreditam conhecer.

A ignorância pode se manifestar de três maneiras: 1) o indivíduo não sabe algo, 2)  não quer saber algo ou 3) não quer que outras pessoas saibam algo (Burke, 2023, p. 36).  A primeira forma de ignorância é passiva e se refere à ausência de conhecimento sobre  um tema, acontecimento ou personagem. A segunda é ativa, já que o indivíduo nega ou  rejeita a existência de conhecimentos que diferem dos que possui. A última forma, de  caráter estratégico, é a ignorância fabricada pelo indivíduo com o propósito de  desinformar os demais, ocultando suas verdadeiras motivações políticas ou econômicas.  Exemplo da primeira forma de ignorância é o de um psicólogo que desconhece os  possíveis impactos emocionais do coronavírus, de uma crise econômica ou de fake news.  A segunda forma de ignorância ocorre quando, por exemplo, um governante ou um  empresário que se recusa a avaliar os possíveis danos que provocará um projeto que se  pretende implementar. Finalmente, a ignorância pode ser fabricada deliberadamente  por um indivíduo, uma empresa, um partido político ou um governo com o objetivo de  ocultar ou distorcer os verdadeiros objetivos pessoais, econômicos ou políticos de ações  futuras. 

A estupidez é um tipo particular de ignorância; não é um termo pejorativo, como  usualmente é pensado, para referir-se à falta de conhecimento ou de capacidade  cognitiva de um indivíduo. O estúpido não é consciente da sua própria estupidez; ele  age sem refletir e é incapaz de dimensionar as possíveis consequências de suas atitudes  e comportamentos. “O estúpido pode causar dano a outra pessoa ou grupo de pessoas  sem obter, ao mesmo tempo, um proveito para si, ou até mesmo obtendo um prejuízo” (Cipolla, 2013, p. 27). 

Quem é o estúpido? O estúpido é um tipo de pessoa que, por meio de  suas ações, prejudica não só os interesses alheios, mas também os  seus próprios. Nada de bom se pode apreender de seus atos. Nem para ele, nem para os demais. O estúpido é capaz de criar somente caos ao  seu redor. É um elemento entrópico no qual todos, incluindo ele,   sofrem com a desordem gerada (Nardiz, 2021, p. 27). 

Dietrich Bonhoeffer, teólogo alemão e criador da teoria da estupidez,  recomendava jamais tentar persuadir o estúpido com argumentos; é inútil e perigoso  (Bonhoeffer, 2019, p. 63). A estupidez humana está relacionada com a complacência e  com a incapacidade de discernir entre o bem e o mal, o correto e o incorreto, o valor  social e o prejuízo social. A estupidez não tem origem psicológica nem está determinada  pelo nível intelectual de um indivíduo. Indivíduos inteligentes, com diplomas  universitários e artigos publicados em revistas científicas de prestigio internacional, em algumas circunstâncias podem agir de maneira estúpida. “Não existe uma conexão  linear e direta entre a ignorância e a estupidez. Porém, quando se combinam e  interagem, o resultado pode ser terrível” (Livraghi, 2010, p. 87). 

Ao realizar uma observação atenta de gestos, atitudes e comportamentos de  figuras políticas importantes, independentemente de país, condição social, gênero,  idade, ideologia, crenças religiosas e nacionalidade pode-se constatar a grande  quantidade de pessoas estúpidas existentes na vida social. Como demonstra o  historiador econômico italiano Carlo M. Cipolla em seu livro As leis fundamentais da  estupidez humana, “sempre e inevitavelmente, cada um de nós subestima o número de  indivíduos estúpidos que circulam pelo mundo” (Cipolla, 2020, p. 15). O estúpido se  sente satisfeito consigo mesmo e, em algumas circunstâncias, reage violentamente  contra os que se opõem a ele. 

O estúpido tem ideias estúpidas e atua com base nelas, o que pode ocorrer com  pessoas inteligentes, com alto nível educacional e condições sociais confortáveis. Um  indivíduo estúpido sente uma particular atração por figuras carismáticas seja no âmbito da política, no campo religioso e líderes com alto poder de mobilização. O filósofo  italiano Giancarlo Livraghi, em sua obra O poder da estupidez, afirma que “a pessoa  estúpida pode se integrar de forma instantânea a uma multidão ou outro grupo  superestúdio” (Livraghi, 2010, p. 60). 

A sensação de empoderamento que o estúpido experimenta ao participar de  grupos de manifestantes radicalizados ou grandes multidões dificulta a comunicação  com eles. Ele não consegue explicar as reais motivações por trás de suas atitudes e reage frequentemente de forma violenta. Sua comunicação se limita ao uso slogans, palavras  soltas, ideias desconexas e frases marcadamente irracionais. 

A estupidez é um fenômeno global e, atualmente, se propaga velozmente pelas  redes sociais, ocasionando danos à convivência entre indivíduos e nações. “Quando a  estupidez de uma pessoa se combina com a estupidez alheia, o impacto cresce de forma  geométrica; isto é, por multiplicação, não por adição, dos fatores da estupidez  individual” (Livraghi, 2010, p. 59).  

O estúpido está convencido de que suas ideias e crenças têm um valor absoluto e  os que se opõem a elas são julgados inimigos a combater. Indivíduos inteligentes, bem sucedidos e criativos não são imunes à estupidez. Em dada circunstância – seja uma  reunião familiar, uma assembleia de condomínio, uma reunião política – um indivíduo  pode comportar-se de maneira estúpida podendo chegar à agressão física.  

“A estupidez não é exatamente um defeito de nascimento; em algumas  circunstâncias, as pessoas são tornadas estúpidas, ou seja, aceitam tornar-se estúpidas”  (Bonhoeffer, 2019, p. 62). Circunstâncias históricas – como guerras, revoluções, crises  sociais, processos políticos ou eleições – ao afetarem emocionalmente os indivíduos,  sequestram sua capacidade de raciocínio e de tomar decisões racionalmente  fundamentadas. Em outras palavras, a estupidez anestesia o raciocínio dos indivíduos  que se tornam vítimas do “efeito manada”. 

Comentários

Este artigo teve sua origem na curiosidade despertada pela aparição, em muitos
países, de personagens estranhos que revolucionaram as comunicações sociais e, em
particular, a maneira de fazer política. Com atitudes, comportamentos e vocabulários
incomuns, tais indivíduos conseguiram conquistar multidões de seguidores. Em curto
espaço de tempo, indivíduos anônimos, com escasso capital social, cultural e político,
sem trajetórias profissionais destacadas, transformaram-se em mitos, heróis, atores
políticos, líderes populares e até governantes. Facilitados pelo uso das redes sociais, eles
revolucionaram a comunicação social impactando a convivência social e, particularmente, a política.
A escolha da ignorância e da estupidez como eixos do estudo resultou da constatação empírica do frequente uso de tais termos nos debates e confrontos políticos. A classificação do oponente como “ignorante” ou “estúpido” exime o autor da mensagem de formular argumentos racionais baseados em fatos e seu impacto destrutivo atua de forma imediata.

Referências

BURKE, Peter. Ignorância. Uma história geral (livro eletrônico – Kindle). Belo Horizonte:
Vestígio, 2023.
BONHOEFFER, Dietrich. Sobre a estupidez II. Em: MUSIL, Robert; BONHOFFER, Dietrich;
ERDMANN, Johann Eduard. Sobre a estupidez. Três ensaios. Tradução Nélio Schneider.
São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2019.
CIPOLLA, Carlo M. Cinco leis básicas da estupidez humana. Tradução Edmundo
Barreiros. São Paulo: Planeta, 2020.
EPSTEIN, David. Porque os generalistas vencem em um mundo de generalistas. São
Paulo: Globo Livros, 2020.
LIVRAGHI, Giancarlo. El poder de la estupidez. Barcelona: Ares y Mares, 2010.
NÁRDIZ, Alfredo R. Teoría general de la estupidez política. Barcelona: Bosch Editor,
2021.
SPARROW, Betsy; LIU, Jenny; WEGNER, Daniel M. Los efectos de Google en la memoria:
Consecuencias cognitivas de tener información al alcance de la mano. Science
Magazine, vol. 333, n. 776, 2011.

*Organizou e coordenou o Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais, vinculado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/ UFRGS.

Foto: Divulgação

Leia também: LES MISÉRABLES AUJOURD’HUI | Rede Estação Democracia – RED

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

 

 

 

Toque novamente para sair.