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Governo Lula na corda bamba da austeridade fiscal
Governo Lula na corda bamba da austeridade fiscal
Por CHRISTIAN VELLOSO KUHN*
Nessa última quarta-feira (27/11), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou um pacote de medidas de cunho fiscal, prevendo corte de gastos públicos na ordem de R$ 50 a 60 bilhões nos próximos dois anos e de R$ 327 bilhões até 2030. A despeito do enfoque mais fiscalista do pacote, em seu discurso, o ministro destacou o que chamou de um “olhar humanista sobre a economia”, ao buscar o combate à inflação, a redução dos juros e do custo da dívida pública. Ainda manifestou a preocupação do governo com as “desigualdades” e as “dificuldades de nossa gente”. E finalmente, acena para conferir maior progressividade ao nosso sistema tributário, bastante injusto, ao afirmar que: “Quem ganha mais deve contribuir mais, permitindo que possamos investir em áreas que transformam a vida das pessoas”.
Antes de analisar pontualmente cada uma das medidas e seus impactos econômicos, sociais e até políticos, é preciso um preâmbulo do pano de fundo da nossa conjuntura econômica e política em que se baseia a necessidade de adoção de um pacote fiscal dessa natureza. No plano político, sempre é importante relembrar que Lula foi eleito com uma margem ínfima de votos em relação ao seu oponente, candidato à reeleição, que mesmo depois de ter se tornado inelegível e, recentemente, alvo de investigações da Polícia Federal por sua participação num possível golpe organizado por membros das forças armadas contra o Estado Democrático de Direito, ainda goza de considerável popularidade, inclusive figurando à frente de Lula na última pesquisa realizada pelo Paraná Pesquisas para as eleições de 2026. Isso mesmo contando com uma base ampla de apoiadores da esquerda à direita, estes últimos motivados mais pela preocupação em defender nossa democracia do que por identificação com o programa de governo de Lula.
Igualmente, por conta até da grande popularidade do antecessor de Lula, elegeu-se um dos congressos mais conservadores e de direita da história recente, e até mesmo de ex-ministros do governo anterior. Por esse motivo, não restou melhor alternativa ao atual governo de firmar novamente um presidencialismo de coalisão, como Lula fizera em seus dois primeiros mandatos, incluindo até partidos mais identificados com o presidente anterior, caso do Republicanos. Para garantir a coesão necessária, o presidente Lula foi exigido, talvez mais do que em suas gestões anteriores, de usar de suas habilidades de conciliador de interesses e de pragmatismo na tomada de decisões (sobretudo na política econômica), que lhes são notoriamente peculiares.
É nesse contexto que as possibilidades de “dar um cavalo de pau em transatlântico” (citando o ex-ministro Antônio Palocci) na política econômica são remotas. Ademais, ao contrário do que vem fazendo a mídia tradicional e influenciadores e formadores de opinião associados e identificados com o lulopetismo, o autor desse artigo não compactua com a narrativa criada de que este pacote e a própria austeridade fiscal do governo vigente sejam de maior responsabilidade do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Isso soa até ofensivo considerando a figura e história do presidente Lula, que sempre foi uma liderança forte, principalmente no âmbito do Partido dos Trabalhadores. É possível inferir que ambos não estejam completamente satisfeitos com a direção que vem sendo conduzida a política econômica, menos progressista do que seria de esperar de um governo de centro-esquerda, todavia, conforme argumentado em meu artigo anterior pela Rede Estação Democracia (RED), O Bode Expiatório do Governo Lula, o ministro Haddad não possui tanta autonomia para ditar os rumos da política econômica a contragosto do seu superior. Muito pelo contrário, acredita-se que a sua escolha é justamente para cumprir esse papel de adotar medidas impopulares, assumindo o seu ônus e visando reduzir seu impacto na popularidade do presidente Lula. O próprio perfil do ministro Haddad já demonstra sua capacidade de transitar e conciliar interesses do setor privado e do mercado financeiro.
Na conjunção dos fatores políticos supracitados, é que o governo Lula conseguiu aprovar uma reforma tributária exclusiva sobre bens e serviços, deixando de fora tributos sobre a renda, lucros e dividendos, ganhos de capital, etc., e o Novo Arcabouço Fiscal (NAF), que não extingue totalmente a lógica do Teto dos Gastos Públicos (TGP), criado no governo Temer, mas flexibiliza alguns parâmetros de modo a permitir uma variação das despesas públicas em termos reais, o que não era possível com o TGP. Ao mesmo tempo, condiciona-as a outros indicadores, como o crescimento da receita fiscal e atingimento de metas de déficit primário.
Assim, a austeridade fiscal que vem orientando a política econômica desde 2015 foi amenizada, mas não impediu a urgência de um pacote fiscal para o cumprimento das metas dos próximos dois anos, que contenha o crescimento dos gastos públicos no intervalo definido no NAF (0,6% a 2,5% a.a. em termos reais).
Resumidamente, o pacote fiscal é composto das seguintes medidas:
- Salário mínimo: deixa de crescer conforme a inflação mais a variação do PIB, sem restrições, devendo se manter no intervalo de variação das despesas públicas do NAF, já citado acima;
- Abono salarial: antes concedido a todos que recebem até 2 salários mínimos (atualmente R$ 2.824,00), passará para a faixa de até R$ 2.640,00, sendo corrigido anualmente pela inflação até chegar ao equivalente a 1,5 salários mínimos (SM);
- Aposentadoria e benefícios: o governo pretende “aperfeiçoar os mecanismos de controle” para combater fraudes na concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e do Bolsa Família;
- Equilíbrio fiscal e fim de iniquidades: a ideia é conter os chamados “supersalários” do setor público e o excesso de benefícios concedidos às forças armadas;
- Emendas parlamentares: limitar crescimento das emendas impositivas (individuais e de bancada) ao do arcabouço fiscal, restrição a emendas nas despesas discricionárias, impedimento que as emendas não impositivas cresçam em termos reais, dentre outras medidas.
- Imposto de renda: aumento da faixa de isenção do IR para R$ 5 mil (limite hoje é de 2 salários mínimos) a partir de 2026[1] e fixação de alíquota efetiva mínima para os mais ricos[2];
- Outras medidas fiscais: até 20% da complementação da União ao FUNDEB poderá ser destinada a matrículas em educação em tempo integral (saindo do orçamento do MEC), orçamento da Lei Aldir Blanc condicionada à execução no ano anterior, redução de R$ 1 bilhão em concursos públicos em 2025, ajuste orçamentário de R$ 18 bilhões para subsídios e subvenções, prorrogação da Desvinculação das Receitas da União (DRU) até 2032, criação de despesa deve observar o NAF, correção pelo IPCA do Fundo Constituição do Distrito Federal e novos gatilhos fiscais sobre benefícios tributários e gastos com pessoal.
Segundo previsões iniciais do governo federal (ver quadro abaixo), a aplicação desse conjunto de medidas (sem as mudanças propostas para o Imposto de Renda) impactaria R$ 30,6 bilhões em 2025, aumentando para R$ 79,9 bilhões em 2030, gerando uma redução de R$ 327 bilhões nos seis próximos anos.
Analisando mais pontualmente as medidas, pode-se dizer que a contenção da elevação do salário mínimo, se permite uma redução de R$ 109 bilhões aos cofres públicos até 2030, esse montante, mais a diminuição dos salários dos trabalhadores do setor privado, também impactará de forma recessiva, caindo a massa salarial e, consequentemente, o nível de consumo, dado o alto nível de propensão a consumir de quem recebe um salário mínimo. Tende a comprometer inclusive o ritmo de crescimento econômico, ou até mesmo a distribuição de renda, bastante desigual sem essa medida. Isso porque, se na regra atual, a variação em termos reais do salário mínimo é de acordo com o crescimento do PIB, com a nova medida, sempre que essa variável crescer acima de 2,5%, a diferença deixará de ser repassada à variação do salário mínimo.
Para a fração daqueles que recebem mais de R$ 2.640,00 até dois salários mínimos (R$ 2.824,00), ainda deixarão de receber o abono salarial a partir do ano que vem. Segundo cálculos do governo federal, as despesas públicas com esse benefício cairão R$ 18 bilhões até 2030. Igualmente à medida sobre o salário mínimo, também será recessivo, reduzindo a renda e consequentemente o consumo dos trabalhadores.
Estima-se que as medidas sobre o Bolsa Família e o BPC impactarão na diminuição de R$ 17 bilhões e R$ 12 bilhões, respectivamente, nas despesas públicas até 2030. Da mesma sorte, dado a elevada propensão a consumir desses beneficiários, o mesmo círculo vicioso tenderá a se manifestar, sendo tão recessivo quanto a “economia” com o abono salarial.
Chama a atenção a medida sobre o FUNDEB, que ao ter que passar a cobrir a integridade das despesas com educação em tempo integral, deverá reduzir o orçamento do MEC com outras despesas da pasta na ordem de R$ 42,3 bilhões até 2030, repercutindo ainda mais no comprometimento dos já insatisfatórios indicadores da educação, como o IDEB, e a própria prestação desse fundamental serviço público. Ou seja, trata-se de uma medida que afeta sobremaneira os mais jovens, principalmente aqueles de baixa renda.
Por outro lado, algumas medidas vão ao encontro de diminuir as desigualdades e os privilégios dos mais ricos. No setor público, é o caso daqueles que recebem os “supersalários” e dos militares de alta renda, e que por auferirem elevados rendimentos, possuem uma propensão menor a consumir, refletindo menos no crescimento econômico.
Já no conjunto da sociedade, as medidas sobre o Imposto de Renda também colaboram para amenizar a desigualdade e tornar nosso sistema tributário mais justo e menos regressivo. Em que pese não conste no quadro de estimativas do impacto sobre o erário público, a ideia é que a elevação da faixa de isenção para R$ 5 mil – e consequentemente a possível redução de alíquota para aqueles que ganham acima desse valor até faixa acima de R$ 7,5 mil que incidirá a alíquota máxima – tenderá a ser compensada fiscalmente pelo aumento da tributação mínima sobre os 1% mais ricos. Inclusive, embora o IR não incida diretamente sobre dividendos e juros sobre capital próprio (JCP), precisam ser declarados e compõem o total de rendimentos passível de tributação mínima de 10%. Logo, quem ganha mais de R$ 50 mil, contando essas fontes de renda, mas não contribui pelo menos com 10% no IR, elevará sua cota de contribuição[3]. De qualquer modo, a proposta de alíquota mínima de 10% sobre os mais ricos, pelo seu potencial de incremento de receita, também está alinhada com a austeridade fiscal do pacote.
Finalmente, as medidas de retenção sobre as emendas parlamentares, se por um lado tendem a gerar uma redução de R$ 39,3 bilhões nas despesas públicas até 2030, provavelmente causarão instabilidade política na base aliada do governo e, principalmente, fortalecer a oposição no congresso. Dificilmente os nossos representantes políticos aceitarão passivamente essa contenção de despesas com emendas, “cortando na própria carne”, o que infelizmente é bastante incomum. Se milhões de brasileiros terão que bancar esse pacote fiscal, nada mais justo que nossos congressistas também aloquem melhor esses recursos escassos onde traga mais benefício para a sociedade, e não meramente para suas bases eleitorais. Isso sem falar que, ao contrário da maioria da população, seus rendimentos estarão isentos, diferentemente dos trabalhadores que recebem de 1 a 2 salários mínimos, ou os beneficiários do Bolsa Família e do BPC. Mesmo aqueles políticos que se encontram na faixa dos 1% mais ricos, e que não pagam atualmente a alíquota mínima de 10%, possuem uma margem muito maior para suportarem os efeitos recessivos do pacote fiscal que a grandíssima parte da nossa população, os 99% restantes.
Contudo, também é digno de nota que nenhuma medida do pacote fiscal anunciado serve para beneficiar diretamente os mais privilegiados, como a isenção de impostos de importação de jet-skis, balões e dirigíveis dada no Governo Bolsonaro, ou incide sobre bens isentos, como o imposto sobre livros aventado por Paulo Guedes. Isso não quer dizer que as críticas feitas acima às propostas do atual pacote fiscal não mereçam consideração, ou possam ser relevadas.
Por último, e não menos importante, cabe acompanhar qual será o impacto político sobre a popularidade do governo Lula com esse pacote fiscal. Conforme artigo dos professores André Cunha e Alessandro Miebach no Sul21, o poder legislativo tende a apresentar projetos de lei e emendas às medidas do pacote fiscal. Inclusive, há uma proposta concorrente de autoria de membros da oposição com impacto fiscal maior (R$ 1,5 trilhão) e medidas ainda mais restritivas, tais como a desindexação e desvinculação do orçamento, atingindo fortemente as áreas da educação e saúde.
Se algumas medidas impactam mais parcelas da população pouco inclinada a votar em sua reeleição em 2026, como militares de alta renda, servidores públicos que ganham supersalários e o 1% mais rico, outras prejudicam o bem-estar de sua base eleitoral, como aqueles que recebem até 2 salários mínimos e beneficiários do Bolsa Família e do BPC. Como a popularidade de Lula não se encontra num patamar alto, restará que esse público seja compensado com medidas efetivas pelo atual governo na segunda metade de seu mandato, e não vãs promessas eleitoreiras, como acesso ao consumo de “picanha e cerveja” pelos mais pobres. Enquanto isso, o governo Lula tenta se equilibrar na corda bamba: de um lado, oferece um pacote de austeridade fiscal para cumprir o NAF, acalmar o “humor” o mercado financeiro, satisfazer sua base aliada e conter os avanços da oposição; do outro lado, inclui medidas compensatórias que incidem sobre os mais ricos, visando conferir um caráter mais “humanista” ao pacote fiscal, todavia, aumentando as “dificuldades da nossa gente” em ter uma vida digna, gente que pode perder a confiança no governo e comprometer sua legitimidade e popularidade.
[1] No seu primeiro anúncio, o governo não explicou como seria a incidência sobre a faixa superior a R$ 5 mil. Em matéria do O Globo, é informado que quem ganha acima desse valor terá o benefício reduzido gradativamente até o limite de R$ 7.500,00. Essa hipótese será considerada no artigo.[2] Também não foi anunciada qual será essa alíquota no material disponibilizado pelo governo. Só faz menção que o 1% mais rico tem alíquota efetiva de 4,2% e para o 0,1% mais rico, a alíquota efetiva é de 1,75%. Na mídia, falou-se de aumentar as taxações para 10% de alíquota mínima para quem ganha mais de R$ 50 mil por mês e limitação da isenção de despesas com saúde para aqueles que ganham acima de R$ 20 mil. Igualmente, essa reportagem servirá de base para análise dessa medida.[3] Para mais detalhes, ver matéria da Infomoney: https://www.infomoney.com.br/onde-investir/dividendos-terao-ir-de-10-entenda-imposto-minimo-proposto-pelo-governo/.
*Christian Velloso Kuhr professor e economista do Instituto PROFECOM, autor de livros como Governo Figueiredo (1979-1985): política econômica e ciclo político-eleitoral.
Foto de capa: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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