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Será verdade?

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Por MARÍLIA VERÍSSIMO VERONESE* Será uma outra masculinidade possível, ou permaneceremos eternamente nesse looping de decepções, acusações, dúvidas e sofrimentos? As perdas são para todas e todos os envolvidos em casos de assédio sexual. Perdas de reputação, perdas profissionais, pessoais, familiares, de saúde, de paz. Recentemente, quando meu professor e orientador (fiz estágio sanduíche em Coimbra, em 2003, estando ligada a essa Universidade até hoje, 21 anos depois) foi acusado de assédio, uma parente me escreveu e perguntou: será verdade??? Ontem à noite, quando foram divulgadas as denúncias contra Silvio Almeida, os primeiros comentários que chegaram para mim foram variações em torno do “será verdade?”. Pessoas incrédulas, assombradas, diante da admiração que sentiam tanto pelo acusado, como por uma das denunciantes, aquela que representa sua irmã, cujo assassinato revelou os bastidores da podridão miliciana, policial, institucional. Era para estarmos todos juntos nas lutas... esse triste e inesperado episódio nos provoca uma dissonância cognitiva, termo de Leon Festinger que foi recuperado por autores atuais. As mulheres que são feministas, críticas do patriarcado cis-hetero-normativo, têm fechado em torno de uma escolha: nunca questionar a veracidade de uma vítima de assédio que denuncia. Isso porque são séculos de descrença, de opressão, de suportar caladas as violências, de se envergonhar por violações sofridas. Somos educadas para “não criar problemas”. Somos subjetivadas pelos sistemas de dominação operantes, sendo o patriarcado o mais antigo deles. Essa aposta pode, eventualmente, estar errada? Raríssimas vezes, pode sim. Lembro de apenas um caso: o de Julian Assange. Ali, a teoria conspiratória tinha alguma base; os poderosos do mundo armaram contra ele, que os desafiou. Contudo, meus caros e caras, é extremamente raro. Assim, este texto parte do pressuposto ético-político da veracidade das denúncias e da solidariedade às denunciantes. Passei um vídeo para meus alunos esta semana, no qual Regina Navarro Lins, num USP-Talks, falava que antes da descoberta da participação masculina na reprodução humana, as mulheres eram respeitadas e há hipóteses de sociedades matriarcais, pois matrilineares. Tudo muda quando, ao iniciar a domesticação dos animais, percebeu-se que ovelhas desgarradas não tinham filhotes. A observação aguçou-se e caíram as fichas: é o macho que fertiliza a fêmea. Tal fenômeno teria coincidido com o início da propriedade privada: daí passou a ser importante garantir a paternidade, para fins de herança. Foi a partir daí que a mulher foi aprisionada ao espaço privado, que se inventou que ela deveria ser recatada, do lar e só se relacionar com o senhor seu marido. Nem preciso dizer o quanto as religiões patriarcais, como as tradições judaico-cristã e islâmica reforçaram esse pensamento e essas práticas. Essa ideologia tomou conta de praticamente todo o globo. Afinal, propriedade privada também se tornou uma obsessão generalizada. Todo o tipo de maldade, guerra, atrocidade foi praticada em função dela. E também ela se revestiu de um caráter moral, sacrossanto. Mas isso já foge do meu foco e fica para outro texto; voltemos ao tema dos assédios. No primeiro caso que citei, tratava-se de um “pai” intelectual, alguém que me ensinou muito sobre a conexão do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado, essa complexa articulação que sustenta relações tão desiguais de poder e de saber. Foi, para mim, um misto de tristeza, decepção, vergonha, culpa... mas culpa, de quê? De não ter sido assediada? De ter tido uma relação muito boa com o orientador? Não faz o menor sentido. Acontece que as emoções têm sua própria lógica, seus fluxos incertos que independem de ideias racionais. De qualquer modo, refletir sobre tudo isso tem me levado a pensar que o patriarcado é uma patologia. Ele rouba a lucidez, o bom senso e o equilíbrio tanto de homens quanto de mulheres. Não falo aqui de machistas contumazes, dos que cultivam um modelo de masculinidade à lá coach do Campari, pois esses não têm qualquer lucidez para ser perdida. Me refiro a homens intelectualizados, inteligentes e... de esquerda. Como nesses dois casos que citei. O que leva um homem altamente sofisticado em termos intelectuais, com uma brilhante carreira e reputação a zelar, ceder a uma ridícula tentação quinta série de enfiar a mão entre as pernas de uma mulher? Que patética insânia é essa? Que falta completa de lucidez (nem falo de respeito, decência e dignidade, notem!) de colocar seu nome em risco por tamanha cretinice, já que se sabe que hoje as mulheres também intelectualizadas podem não ficar mais quietas?! Seria a certeza da impunidade que milênios de patriarcado fixaram nos genes masculinos? Ou seria mesmo uma posição alucinada que coloca sofisticados intelectuais de esquerda num nível Pablo Marçal de canalhice e Jair Bolsonaro de burrice e tosquice? Um misto de ambas as coisas? As mulheres são, por sua vez, colocadas em lugares de paralisia, medo, vergonha e pavor que estão longe da lucidez (me refiro aqui, especialmente, às mulheres adultas e informadas). Ao não denunciar, ao eventualmente seguirem engajadas na relação profissional e/ou pessoal com o assediador, dão “munição ao inimigo”. Num caso de eventual denúncia, anos passados dos eventos, perguntar-se-á: “por que não denunciou antes? Será verdade?”. No primeiro caso citado, uma das denunciantes relatou eventos que ocorreram em 2010, que foram terríveis, humilhantes e sofridíssimos. Por que seguiu escrevendo ao assediador até 2014 (tive acesso aos e-mails) em termos amistosos, inclusive solicitando recursos para participação em eventos, tratando-o por “meu querido amigo”? Isso pôs em dúvida a palavra dela diante de quem perguntou: será verdade? Não podemos entrar em dinâmicas de "eu aguento, porque tenho compensações, porque não posso falar, porque não acreditarão em mim"... Talvez eu não esteja me exprimindo bem e temo até ser mal interpretada (estou com as mulheres!), mas sinto que precisamos nós também de um aprendizado para enfrentar essas situações, para agir rapidamente, para não deixar a coisa andando por anos a fio, cronificando, naturalizando-se. Compartilhei com meus pares, minhas colegas de profissão, essas angústias, e as manifestações foram no sentido de entender que ainda estamos aprendendo que o que antes se vivia calada, hoje tem nome e não precisamos aceitar, não podemos mais aceitar. De compreender e assimilar como um valor inegociável, assim como as mulheres que nos antecederam aprenderam que violência sexual tinha nome e poderia ser considerada ilegal, um crime. Que não estava certo ceder diante dos desejos do homem, contrariando o seu próprio. Nesse difícil aprendizado, é natural que haja ambivalências e contradições, hesitações e dificuldades. Uma colega da área do direito ainda reforçou que se vê muito isso em processos judiciais, e que serve sempre para desqualificar a vítima e sua denúncia, por vezes com sucesso. Seja como for, acho que precisamos nos fortalecer e apoiar, para termos a força de gritar que fomos assediadas! No lugar da paralisia, o grito: não aceitarei essa violência! Ela é indigna e criminosa! Quando ela acontecer, será imediatamente rechaçada e denunciada. Acho que conseguimos chegar lá, com apoio mútuo e acolhimento. Com mudança cultural. Quanto aos homens, o “tratamento” da patologia começa por compreender que não têm de dominar nada nem ninguém além deles mesmos. Controlar os impulsos é o controle que precisam exercer: aquele sobre si mesmos. E saber que não se trata de jogo de sedução, que não é algo lúdico: é asqueroso, criminoso, inadequado, nojento. Nosso campo (esquerda, progressista, crítico, como queiram chamar) precisa dar conta da questão étnico-racial e de gênero, ou seguirá refém de arrogâncias impermeáveis à reflexão e autocrítica. Não há como mudar o cenário dantesco sem dolorosos processos, que revelem o que nos entristece tanto. Receio não haver outro caminho; vamos trilhá-lo juntos, homens e mulheres que sabem que isso tem de acabar, que basta, como diz a Mafalda do Quino. *Marília Veríssimo Veronese é Psicóloga social, docente e pesquisadora Foto da capa: reprodução Fonte: redes sociais Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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Quanto Tempo o Tempo Tem

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Quanto Tempo o Tempo Tem
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Por LÉA AARÃO REIS* O título acima denomina um documentário sobre a percepção do tempo por parte do ser humano, realizado por Walter Carvalho e Adriana Dutra em 2014. No caso presente, o bordão se aplica a A Escavação (The Dig), do australiano Simon Stone, realizado em 2021, um dos filmes mais apreciados pelas plateias de plataformas de streaming. É mais um trabalho baseado no modo como utilizamos o tempo através de datas históricas, acontecimentos notáveis, ciclos da vida e, sobretudo, da ciência da arqueologia. O filme mostra como percebemos o transcorrer do tempo e o enigma contido em uma noção de tempo construída pela nossa consciência e racionalidade; mas que, na verdade, é impossível de mensurar, apesar dos esforços para balizá-lo. Simon Stone adaptou um romance de John Preston com o mesmo nome. O conhecido escritor britânico é sobrinho de uma das personagens envolvidas nesse episódio, Margaret Piggott, como se vê no filme, uma história real que se passou em 1939, na iminência da entrada da Grã-Bretanha na guerra contra a Alemanha e do início dos bombardeios com a blitzkrieg germânica. A história de A Escavação é a seguinte: naquele ano de 1939, uma viúva, Edith Pretty (atriz Carey Mulligan, perfeita no papel), contratou um competente escavador de terrenos, um autodidata chamado Basil Brown, para explorar uma área do seu vasto terreno em Sutton Hoo. Uma formação geológica de montes de terra próximos ao mar sugeria que ali talvez tivesse havido ações humanas e indícios disso enterrados debaixo do solo. E havia. A descoberta arqueológica de Edith e de Basil Brown (o ator Ralph Fiennes, como sempre, empático) é hoje considerada uma das mais importantes do século 20 e a maior e mais lucrativa operação arqueológica do Reino Unido com esse tesouro descoberto e retirado das terras de Sutton Hoo. Vestígios de uma sociedade que amava a arte, e a sua descoberta fez com que fossem revistos capítulos importantes da história europeia. Amuletos, joias e uma considerável quantidade de ouro encontrado no barco mortuário de um guerreiro da Idade Média, no total 250 objetos, encontram-se atualmente em exposição e em lugar de destaque no Museu Britânico. O material é a prova da existência e da ação dos anglo-saxões em época anterior à dos vikings e constitui a origem da certidão de nascimento dos britânicos. O filme rastreia, inicialmente, a trajetória de Basil Brown, um outsider que nunca cursou uma universidade, mas que estudou profundamente assuntos de seu interesse: idiomas (era poliglota), astronomia e arqueologia. Um homem livre e, esse sim, um verdadeiro libertário. Veja Também: Programas – de 5 a 13 de setembro | Rede Estação Democracia - RED No desenrolar da trama, Brown se afeiçoa ao filho de Edith, um garoto de sete anos, Robert, que logo fica fascinado pelo escavador. Na vida real, Robert veio a ser astrônomo e morreu adulto, já maduro, em Londres. Mais adiante, o roteiro de A Escavação se desvia desse rumo familiar e se fixa nas consequências e situações advindas dos tesouros encontrados. A doença terminal de Edith, o sofrimento do seu pequeno filho ao perceber que ficará sem a mãe, a arrogância, a cupidez e a inveja habitual dos competidores, no caso dos arqueólogos profissionais e funcionários do Museu Britânico. Esses, é claro, relutam em confiar na experiência e no talento de Brown. O ator Ken Stott (da famosa série O Hobbit) faz um arrogante burocrata como o pomposo Charles Phillips, querendo levar o crédito pela fantástica descoberta que finalmente atrai o interesse do Museu Britânico. Novos personagens coadjuvantes surgem, com suas próprias histórias e paixões, deixando um sabor de carência no espectador, que talvez espere mais substância no amadurecimento do perfil do escavador e do seu entorno. E das relações com sua companheira, com a viúva Edith e com o menino Robert; sobretudo as querelas apenas sugeridas, entre a proprietária das terras e dos tesouros nelas encontrados e seu confronto com os burocratas. Embora o desvio e a dispersão da narrativa possam incomodar às vezes, o filme não cai nas armadilhas do lugar-comum meloso e medíocre com vistas à bilheteira. O diretor Simon Stone é inteligente, sensível e parece ser consciente do que informa ao espectador: apenas um pequeno recorte da passagem do tempo. Em certo momento, por sinal, ele destaca as palavras de John Preston colocadas na boca do escavador Simon Brown e ditas à viúva Edith, doente e triste por deixar o filho sozinho quando morrer. “Desde a primeira impressão humana na parede de uma caverna, fazemos parte de algo contínuo. Então, nós não morremos.” Edith, na realidade, morreu três anos após a conclusão das escavações de Sutton Hoo. E o nome de Simon Brown só foi registrado no Museu Britânico bastante tempo depois. *Léa Aarão Reis é jornalista. Foto da capa: Filme: Quanto tempo o tempo tem - Divulgação. https://youtu.be/gAE2aRlsHYo

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Lula exalta democracia em pronunciamento da Independência

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Lula exalta democracia em pronunciamento da Independência
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Por PEDRO RAFAEL VILELA - Agência Nacional, Brasília Na véspera do Dia da Independência, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu a democracia e a convivência "civilizada" entre grupos opostos, em pronunciamento veiculado em cadeia nacional de rádio e televisão na noite desta sexta-feira (6). "Amanhã é dia de comemorarmos a independência do Brasil. E é também um bom momento para celebrarmos a democracia. Nenhum país é de fato independente sem o exercício pleno da democracia", afirmou o presidente, em vídeo de pouco mais de 4 minutos. "A democracia é mais do que votar no dia da eleição. É lutar pela conquista de direitos. O direito de fazer três refeições por dia, morar com dignidade, ter um bom emprego, salário justo, segurança para cuidar da família e conquistar um futuro melhor para nossos filhos", acrescentou. Ao destacar que democracia não é "pacto de silêncio", mas debate de opiniões divergentes na sociedade, o presidente enfatizou que isso deve ser feito em um ambiente de respeito, e condenou a difusão do ódio e deslegitimização da vontade popular. "Democracia é o diálogo, é a convivência civilizada entre opostos. É o respeito à vontade do povo expressa livremente nas urnas. Não é o direito de mentir, espalhar o ódio e atentar contra a vontade do povo. Em momentos decisivos da história, a defesa da democracia é capaz de unir adversários de longa data. Foi assim na construção da aliança para garantir a governabilidade do país, após as eleições de 2022", comentou, citando o arco político de alianças criado após a tentativa de golpe do dia 8 de janeiro de 2023. "A vitória da democracia permitiu que trouxéssemos de volta as políticas de inclusão social que retiraram milhões de pessoas da pobreza. Permitiu que tivéssemos, de novo, uma política externa ativa e altiva, à altura da grandeza do Brasil. Que a saúde e a educação voltassem a ser prioridade. Que a ciência derrotasse o negacionismo. E que o combate a todas as formas de desigualdade voltassem à ordem do dia". No pronunciamento, Lula exaltou medidas do seu governo, como a retomada de obras por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a geração de emprego e a retirada de 24,5 milhões de pessoas da fome. O presidente ainda destacou a criação de uma Política Nacional de Segurança Pública, em diálogo com os 27 governadores. "Juntos, vamos derrotar o crime organizado". Neste sábado de manhã, Lula participa do tradicional desfile cívico-militar do Dia da Independência, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Pedro Rafael Vilela é repórter da Agência Nacional/Brasília Edição: Carolina Pimentel https://youtu.be/hrs2oXUDefI?si=k-Rc5jcMcbQPYLh2      

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Propostas sindicais para o G20 Social

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Propostas sindicais para o G20 Social
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Por CLEMENTE GANZ LÚCIO* O Brasil preside neste ano o G20, fórum de cooperação econômica que reúne as 19 maiores economias do planeta, além da União Europeia e da União Africana. Nos dias 18 e 19 de novembro, na cidade do Rio de Janeiro, ocorrerá a Cúpula do G20[1], evento com participação dos Chefes de Estado, com o lema “Construindo um Mundo Justo e um Planeta Sustentável”. Três eixos prioritários mobilizam o evento: combate à fome e à pobreza; mudança climática e desenvolvimento sustentável; e reforma das instituições multilaterais. O processo de preparação do G20 envolve Grupos de Engajamento[2], com o objetivo de ampliar o debate para que a sociedade apresente propostas que influenciem a Cúpula de Líderes. Os organizadores estimam que, até novembro, o Rio de Janeiro terá recebido mais de 120 eventos, incluindo reuniões ministeriais, eventos paralelos e grupos de engajamento. A presidência brasileira inovou ao criar mais um Grupo de Engajamento, o G20 Social[3], espaço para a mobilização de contribuições de atores não-governamentais, contando inclusive com um espaço digital de participação. Nos dias 14 a 16 de novembro, ocorrerá a Cúpula Social do G20, no Rio de Janeiro, evento que acolherá encontros autogestionados de organizações e movimentos sociais[4]. No encontro do G20 Social, realizado em agosto no Rio de Janeiro, apresentei quatro propostas das Centrais Sindicais para enfrentar e superar a pobreza, a fome e a desigualdade a partir do mundo do trabalho. Essas propostas consideram os graves problemas historicamente presentes na realidade do mundo do trabalho, tais como informalidade, precarização, vulnerabilidade, rotatividade, insegurança, falta de proteção trabalhista e previdenciária, entre outros. De forma prospectiva, essas propostas também levam em conta três grandes movimentos em curso, que terão altíssimo impacto sobre o mundo do trabalho: a crise ambiental e a emergência climática; a inovação tecnológica, digitalização e inteligência artificial; e a retomada de estratégias de industrialização das maiores economias, revertendo as dinâmicas da globalização. Esses três movimentos podem agravar ainda mais os problemas já acumulados no mundo do trabalho, ampliando a pobreza e as desigualdades. Contudo, se encarados estrategicamente, podem se transformar em oportunidades para enfrentar e superar esses desafios. A primeira proposta é priorizar, na política de desenvolvimento produtivo, as micro e pequenas empresas, a economia solidária e popular, o cooperativismo e o trabalho autônomo. O objetivo é criar condições para o investimento em inovação e tecnologia, formação e qualificação, acesso ao crédito, simplificação administrativa e proteção trabalhista, com direitos sociais e trabalhistas equivalentes ao trabalho formalmente protegido, entre outros instrumentos de política pública que aumentem a produtividade dessas organizações e a geração de empregos de qualidade. A segunda proposta é incentivar o crescimento da base salarial por meio de políticas de valorização do salário mínimo, proporcionando aumentos reais de acordo com o crescimento da produtividade da economia. Incentivar a proteção sindical por meio do direito à ampla organização e representação coletiva, fortalecendo a negociação e a contratação coletiva para todas as formas de ocupação e relações de trabalho, constitui a terceira proposta. Por fim, a quarta proposta é promover uma regulamentação de como e para que se utilizam a Inteligência Artificial e as “big techs”, tendo como fundamento o ser humano, a sociabilidade, a liberdade e a democracia. Essas quatro propostas prioritárias estão na "Pauta da Classe Trabalhadora", documento unitário das Centrais Sindicais, e podem servir como referências comuns para a promoção do trabalho decente no âmbito das economias que compõem o G20, a fim de, a partir do mundo do trabalho, superar a fome, a pobreza e as desigualdades. [1] Site do G20 Brasil 2024: https://www.g20.org/pt-br/sobre-o-g20/cupula-rio-2024 [2] Os 13 grupos de engajamento que fazem parte do G20 Social são: C20 (sociedade civil); T20 (think tanks); Y20 (juventude); W20 (mulheres); L20 (trabalho); U20 (cidades); B20 (business); S20 (ciências); Startup20 (startups); P20 (parlamentos); SAI20 (tribunais de contas); e os mais novos J20 (cortes supremas) e O20 (oceanos). [3] Site do G20 Social: https://www.g20.org/pt-br/g20-social [4] Link para inscrever evento autogestionado: https://brasilparticipativo.presidencia.gov.br/processes/G20/f/209/ *Clemente Ganz Lúcio é Sociólogo, coordenador do Fórum das Centrais Sindicais, membro do CDESS – Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável da Presidência da República, membro do Conselho Deliberativo da Oxfam Brasil, consultor e ex-diretor técnico do DIEESE (2004/2020). Foto da capa: Movimentos sociais no G20: vozes da sociedade apresentam propostas sobre justiça social, transparência e políticas mais inclusivas nas cúpulas globais - Crediot: Departamento Audiovisual/PR - G20 Social no Rio: Brasil impulsiona debate global sobre fome e pobreza com participação ativa da sociedade civil Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.      

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Programas – de 5 a 13 de setembro

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Programas – de 5 a 13 de setembro
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Por LÉA AARÃO REIS* *No espaço de 24 horas, esta semana, as forças israelenses aniquilaram 33 palestinos na Faixa de Gaza. Entre eles, crianças que, segundo testemunhas, estavam caminhando para comprar pão. Segundo informações da Al Jazeera, além delas, outras cinco crianças ficaram feridas quando “forças israelenses atacaram um prédio residencial perto do Hospital dos Mártires de Al-Aqsa, em Deir El-Balah, no centro de Gaza, logo após o fim de uma pausa nos combates pela vacinação contra a poliomielite”. *Para não esquecer e para não se habituar: neste domingo, dia 8, em Paris, grande manifestação de rua contra o massacre na Faixa de Gaza. Às 14 horas, na Place de la Republique. *Na Europa, cresce a campanha contra prisões que vêm sendo processadas ao norte de Ramallah, na Cisjordânia, no campo de refugiados de Al-Jalazon. *Uma quarta novela do autor palestino Ghassan Kanafani está sendo lançada e se encontra em pré-venda, com desconto, até o dia 16. Com O que lhes restou, de 1966, está completa a coleção de volumes do festejado escritor, que inclui Homens ao sol, de 1963, Umm Saad, de 1969, e Retorno a Haifa, de 1970 (Editora Tabla). *Grande programa: começou a 27ª edição da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Este ano, a Colômbia é o país convidado para esse evento, que oferece lançamentos de livros, palestras, apresentação de catálogos de editoras, debates e encontros de leitores com autores. O público infantil, crianças de até 12 anos, tem entrada gratuita, assim como idosos a partir de 60 anos. A Bienal vai até o dia 16, no Distrito Anhembi, Av. Olavo Fontoura/Portão 38, em Santana. Das 9 às 22 horas. *Entre os presentes nessa grande feira do livro, estão as editoras Ciranda Cultural, Intrínseca, Grupo Record, Cia. das Letras, Editora VR, Faro Editorial, Melhoramentos, Editora Vozes, Sextante, Panini, Planeta, Harper Collins, Globo Livros, Novo Século, Edições SESCSP, Livraria Drummond, Edições Loyola. *O país preferido na atual estação de turismo de classe média de meio de ano, no continente latino-americano, é a Colômbia. San Andrés, ilha tropical, vendida como “paraíso”, e Medellín, a cidade de diversões, novas ideias e tendências. Na Rússia, a Colômbia também está em evidência, mas por razões não tão amenas. Lá, foram presos vários combatentes colombianos nas formações do exército ucraniano. Mercenários. *Honestino Guimarães, líder estudantil da Universidade de Brasília e considerado “desaparecido político”, será interpretado pelo ator Bruno Gagliasso no filme de Aurélio Michiles intitulado Honestino. A produção teve acesso a cartas do estudante e procura fazer jus à memória do militante e presidente da UNE, na época, que foi torturado, assassinado e é um forte símbolo da luta pela democracia em Brasília. Seu corpo está desaparecido até hoje. A família não pôde enterrá-lo. *Paraty em Foco, o Festival Internacional de Fotografia de Paraty, de 11 a 15 deste mês, está homenageando Sebastião Salgado, que vai ministrar uma aula mestra no próximo dia 14. A exposição Sebastião Salgado em Foco estará aberta na Praça da Matriz de Paraty. *No Dia da Amazônia, 5 de setembro, costuma ser saudada a maior floresta tropical do mundo. Houve pouco a comemorar este ano, visto claudicar, no Brasil, a atenção e o cuidado para defender e preservar uma das maiores riquezas da humanidade. *Estão abertas até o próximo dia 27 as inscrições para o prêmio Afro de Nagô: Potências da Quebrada, um estímulo à promoção da cultura negra e à educação, na periferia de São Paulo, através de trabalhos de artistas e educadores(as) moradores dessas áreas. São premiados projetos de educação, música, dança e poesia produzidos por artistas do samba, funk, rap e autores de videoclipes. Iniciativa do coletivo Casa no Meio do Mundo, da zona norte da capital paulista. *Um dos mais importantes programas eleitorais é prestar atenção nas promessas dos candidatos, muitas vezes fáceis e fúteis, de suas agendas ambientais. Assim como pautas de educação, saúde e segurança, trata-se de um tema crítico em todos os municípios brasileiros. A ver quais são os projetos reais e viáveis dos futuros prefeitos e vereadores relativos à preservação do meio ambiente. *Até que a Música Pare, da cineasta gaúcha Cristiane Oliveira, estreia dia 3 de outubro nos cinemas. Lançamento interessante. Grande parte do filme é falado em talian, língua brasileira, uma mistura do português com as línguas dos imigrantes que vieram do norte da Itália para o Brasil no século dezenove. É o terceiro longa-metragem da diretora. No seu currículo constam os premiados Mulher do Pai (direção, fotografia e atriz coadjuvante no Festival do Rio) e A primeira morte de Joana, prêmio do Júri da Crítica em Gramado. O filme é uma coprodução com o grupo italiano Solaria Films. *De autoria de João Ricardo Dornelles, professor de direito da PUC-Rio, coordenador do grupo Núcleo de Direitos Humanos nessa universidade, e membro do Instituto Joaquin Herrera Flores, um artigo com forte repercussão: “Não é preciso gostar do Maduro para estar do lado certo. O que se espera é que a soberania da Venezuela seja plenamente respeitada, sem ingerências e pressões internacionais, para que o povo venezuelano possa construir os caminhos de solução pacífica para a crise que se arrasta por muito tempo”. *O professor Dornelles acrescenta: “Se para derrotar o fascista Trump é interessante apoiarmos Kamala sem grandes ilusões, não entendo por que não se pode apoiar Maduro para derrotar a extrema-direita neofascista venezuelana”. Clique aqui e leia na íntegra. *Sugestão de leitura oportuna: artigo recente de Robert Reich, ex-secretário do Trabalho dos EUA e professor de política pública na Universidade da Califórnia, em Berkeley, intitulado Musk está fora de controle – Veja como Controlá-lo, publicado no The Guardian e traduzido pelo Instituto Humanitas Unisinos. Clique aqui para ler. *O livro de Reich, The System – Who Rigged It, How We Fix It (O Sistema – Quem o Manipulou, Como Corrigi-lo, da Editora Picador), mostra como o poder econômico corrompeu o sistema político norte-americano. Reich é autor também de Saving Capitalism: For the Many, Not the Few e The Common Good. Sobre ele diz o senador Bernie Sanders: “Para entender o que está acontecendo em nosso país é fundamental se quisermos consertar isso; e Robert Reich é um professor excepcional.” *Informações do Festival de Cinema de Veneza: Ainda estou Aqui, de Walter Salles, ovacionado pela plateia na sua estreia mundial. É a terceira vez que o cineasta participa da festa no Lido, onde esteve em 2001 acompanhando Abril Despedaçado. Em 2009, ele recebeu o prêmio Robert Bresson pelo conjunto da sua obra. *Na última parte do filme atual de Walter Salles, o personagem de Eunice, mulher do deputado Rubens Paiva, assassinado pela ditadura civil-militar de 64, é interpretado por Fernanda Montenegro. Diretor e atriz se reencontraram vinte e seis anos depois de trabalharem juntos em Central do Brasil. Antes de estrear no Brasil, Ainda estou Aqui segue para o Festival de Cinema de Toronto e para o Festival de Nova Iorque do Lincoln Center. *Ainda sobre o recente Festival de Veneza, uma grande surpresa. A apresentação do documentário de Michael Lurie e Eric Friedler sobre uma comédia sombria realizada por Jerry Lewis em 1972 e nunca exibida, The Day the Clown Cried (O Dia em que o Palhaço Chorou). Vários trechos desse filme lendário vêm agora ao público em From Darkness to Light, com depoimentos de Lewis, que faleceu em 2017. Trata-se de nada mais nada menos do que a terrível história de um palhaço deprimido e decadente, prisioneiro de campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial e encarregado de levar crianças até as câmeras de gás. Jerry Lewis conta o porquê decidiu filmar essa história. *Leitura vivamente sugerida ao se completarem oito anos do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff: Pactos e Disputas Político-Comunicacionais sobre a Presidente Dilma, volume organizado por Maria Helena Weber, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O trabalho pretende recuperar a força de seu período na administração do país e abordar questões de gênero e preconceito decorrentes do exercício de poder. Apresentadoras da obra: Flávia Birolli, da UnB, e Celi Regina Pinto, da UFRGS. “Não podemos esquecer a trajetória e o impacto de Dilma Rousseff na política brasileira,” relembra o livro. Para acessar o seu conteúdo, clique aqui. *Até o próximo sábado, dia 7, cinema cult. O Bigas Luna Tribute presta homenagem a um dos cineastas e artistas mais importantes do cinema espanhol das últimas décadas. Bigas Luna produziu 16 longas-metragens com sucesso internacional e criou uma vasta obra de artes plásticas exibida em galerias de diversos países: pintura, fotografia, vídeo, escultura e performances até sua morte, em 2013. No auditório do Instituto Cervantes/Rio de Janeiro e na sala 2 do Estação Net Rio, em Botafogo. Entrada franca. *Léa Aarão Reis é jornalista. Ilustração: Marcos Diniz Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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O Último a Sair, Por Favor, Apague a Luz

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O Último a Sair, Por Favor, Apague a Luz
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Por CARLOS ÁGUEDO PAIVA* As Estimativas Populacionais para 2024 e o “Ajuste” do Censo 2022 O Censo Demográfico de 2022 resultou de um esforço hercúleo por parte do IBGE. Sua realização teve de superar enormes dificuldades: cortes de verbas no Governo Bolsonaro, epidemia de Covid-19, alteração de datas, trocas de direção do órgão (associadas a tentativas de simplificação dos questionários, com impactos negativos sobre as informações produzidas e a comparabilidade dos Censos), dilação de prazos, finalização do processo em um ano de eleições presidenciais em que a polarização política atingiu níveis jamais vistos anteriormente no país, etc. Diante de tantos desafios, é natural que tenha sido ampliada a margem de erro de alguns (vale frisar: alguns; não de todos) resultados. Como a distribuição de recursos federais e estaduais para os municípios leva em consideração – dentre outros critérios – o tamanho da população, as associações de municípios se levantaram para questionar os primeiros resultados do Censo. A Confederação Nacional dos Municípios chegou a pedir um novo Censo Demográfico (veja aqui). E, como é natural, a imprensa fez eco (aqui). Em geral com aquele tom a mais, que torna a notícia mais atraente, dramática e algo sensacionalista. O que os críticos parecem não alcançar entender são dois elementos cruciais. Em primeiro lugar, o Censo não é realizado primariamente ou fundamentalmente para “contar as pessoas”. Essa é uma de suas funções. Mas sequer é a mais relevante. Na verdade, os Censos subestimam sistematicamente o número de pessoas no país. Como o sabe todo e qualquer demógrafo. O segundo elemento é que o próprio Censo gera informações suficientes para, com o apoio de informações secundárias, ajustar a subestimação que lhe é imanente. Em agosto de 2024, o IBGE apresentou sua estimativa da população do ano corrente (212,3 milhões de pessoas). E, simultaneamente, anunciou que o cálculo da população de 2024 estava baseado na revisão da população censitada em 2022, que passou de 202,95 milhões de pessoas para 210,86 milhões de pessoas (veja aqui). Alguns veículos de imprensa voltaram a carga, denunciando os “erros do IBGE” e jogando água no moinho do descrédito sobre as estatísticas oficiais (veja aqui). Para além de um certo apego à denúncia e ao escândalo, o que vem à luz com tantas críticas à atuação do IBGE é a ignorância acerca dos princípios mais elementares do levantamento de informações estatísticas. O primeiro deles é que todos os levantamentos de base declaratória – inclusive os Censos - contêm vieses importantes definidos pelos interesses daqueles que declaram (ou não!) suas rendas, patrimônio e padrão de organização familiar, etc. Para dar um exemplo radical: existem bígamos? Sim, existem. Seria de se esperar que os respondentes aos Censos informassem essa condição ao recenseador? Claro que não. Outro exemplo: em 2017 foi realizado o Censo Agropecuário. Os recenseados declararam que, em conjunto, possuíam 170 milhões de cabeças de gado bovino naquele ano. Porém, a Pesquisa Pecuária Municipal (PPM) de 2017 contabilizou 211 milhões de cabeças de gado vacum, com base em informações obtidas junto aos frigoríficos e abatedouros, ao sistema nacional de controle de zoonose, às Secretarias Estaduais e Municipais de Agricultura, ao Sistema Emater, etc. Em quem confiar? Na PPM, claro. É amplamente sabido que os declarantes tendem a diminuir seu patrimônio pelo temor de fiscalização e confronto das informações dadas ao IBGE e à Receita Federal. Só que daí não se extrai que o Censo Agropecuário não tenha serventia alguma. Seu objetivo não é contar as cabeças de gado. Seu objetivo é avaliar a estrutura fundiária, as práticas agrícolas utilizadas nas diversas culturas, o padrão de assistência técnica, o tipo de defensivo agrícola utilizado, o avanço ou o recuo de práticas agroecológicas e, secundariamente, avaliar a confiabilidade das declarações dos recenseados pelo registro da diferença entre o rebanho real (que a PPM busca resgatar) e o declarado pelos gestores agrícolas. Algo similar se dá com os Censos Demográfico. Sua função primordial não é a de “contar o número de habitantes” no país, nos Estados e nos municípios. O Censo Demográfico serve para conhecer o país. Em especial, para sabermos a estrutura de trabalho, da apropriação e da distribuição da renda e do patrimônio (imóveis, bens de consumo, anos de estudo, etc.). Este panorama é apropriado e sistematizado para cada município e Estado do país e é estratificado para a população pelos mais diversos critérios, tais como gênero, etnia (cor), religião, faixa etária, naturalidade (onde nasceu), dentre inúmeras outras variáveis. Mas o Censo também tem por função contar quantos somos. Pois as estimativas da população dependem do Censo Demográfico; elas também são calculadas com base nos dados do Censo. Ele não é a única fonte. Mas é uma fonte importante. Como? Em primeiro lugar, é preciso entender que há dois Censos, e não um só. Na grande maioria das residências visitadas aplica-se apenas o questionário simplificado, com poucas perguntas, do tipo: Quantas pessoas habitam o domicílio? Qual é o maior rendimento da família? Mas, em cada município, é definida uma amostra representativa para a qual é aplicado o questionário completo. É através dele que somos informados se os domiciliados são nativos do território ou migraram para o mesmo e quando o fizeram; o número de pessoas ocupadas na família; o rendimento de cada um dos ocupados; o rendimento familiar total e médio; etc. Tal como no Censo Agropecuário, é de se esperar que essas declarações não sejam 100% fidedignas. Especialmente as pessoas de estrato social superior tendem a subestimar sua renda e patrimônio. Mas, para a felicidade dos estatísticos e cientistas sociais, a tendência a ocultar informações apresenta uma distribuição normal com variância relativamente pequena. E quando os erros são uniformes, os resultados alcançados são passíveis de interpretação e, eventualmente, ajustes para correção dos vieses. São exatamente estas informações que alimentam o que muitos vem chamando de “ajustes” ao Censo. O termo não é preciso, na medida em que dá a impressão de que “houve erro e, agora, se faz uma gambiarra”. Não se trata disso. Pelo contrário: trata-se de usar as informações do Censo e de fontes secundárias para fazer a crítica lógica e teórica de dados brutos originais que sempre contêm vieses. Um exemplo:  é de se esperar que a percentagem de domicílios classificados como vagos (sem morador) varie muito de um território para outro. Sem dúvida. Municípios com saldo migratório líquido negativos devem ter mais residências ociosas do que aqueles que estão recebendo população de fora. Mas se esta percentagem é muito elevada em municípios que estão recebendo um número elevado de imigrantes é provável que a subestimação (normal) tenha sido maior do que a média. Esta contradição acende um alerta. Levando à busca de informações secundárias, tais como: variação do número de registros de nascimentos e óbitos, de matrículas escolares, de empregados e desempregados formais, de MEIs (microempreendedores individuais), de consumo de energia elétrica, etc. Até que se chega a resultados mais robustos, em que o conjunto das informações obtidas – através do Censo e do seu balizamento com outras fontes – apresentam a máxima consistência possível. O que o “Ajuste” do Censo revela sobre a Economia Gaúcha? Revela o que já sabíamos: que ela vai mal, obrigado. De acordo com os dados preliminares para a população de 2022 (divulgados no ano de 2023), o RS teria apresentado uma das menores taxas de crescimento demográfico dentre as 27 Unidades da Federação. Apenas Alagoas, Rio de Janeiro, Bahia e Rondônia teriam apresentado uma taxa de crescimento inferior à nossa. A estimativa da população de 2024, contudo, alterou essa hierarquia levando à queda do desemprenho relativo do RS. De acordo com as novas informações, Rondônia, Rio de Janeiro e Bahia apresentaram um desemprenho superior ao do RS. De sorte que caímos, da 23ª. posição para a 26ª. posição. Se tomamos os dados já divulgados da estimativa populacional de 2024 por referência, a mudança leva a uma participação ainda menor da população do nosso Estado na população do país. Por oposição, a participação de SC foi ampliada e a do Paraná pouco se alterou. Evolução da Participação das UFs na População Brasileira entre 1970 e 2024 FDB: Sidra-IBGE Não é raro nos depararmos com analistas que buscam “naturalizar” esta perda de participação do RS na população nacional, afirmando que ela se manifesta desde meados do século passado e que faria parte de nossas “tradições europeias de planejamento familiar”. Bull shit. Não há qualquer diferença substantiva entre os padrões culturais dos imigrantes europeus que vieram para o RS, para SC e para boa parte do Paraná (que, aliás, teve toda a sua porção sudoeste colonizada por gaúchos). E, não obstante, a dinâmica demográfica dos nossos dois vizinhos é muito distinta da nossa. Aliás, o caso do Paraná é tão impressionante (ainda que os números não deixem este fenômeno tão evidente) quanto o de SC. Entre 1970 e 1991 o Paraná foi o Estado federado com o pior desempenho demográfico do Brasil. Entre 1991 e 2010, seu desempenho ainda será relativamente baixo, mas já será superior ao desempenho do RS. Por fim, entre 2010 e 2022 seu desempenho o colocará entre os “top ten”. O que mudou? A taxa de fecundidade? A taxa de mortalidade? O crescimento vegetativo? Não. O que mudou foi a atratividade para migrantes de outras partes do país. Após a crise da economia cafeeira, em meados dos anos 70, o Paraná viveu um longo período com saldos migratórios negativos. Este movimento era impulsionado pela substituição do café (cultura permanente intensiva em mão de obra) pela soja (cultura temporária intensiva em maquinário). O reequilíbrio do saldo migratório do Paraná a partir dos anos 90 é indissociável do ingresso resoluto e acelerado do Estado na produção de proteína animal (frango, suíno, leite e derivados, etc.). Estas culturas agropecuárias são intensivas em mão de obra no campo e na cidade, pois o produto rural não pode ser exportado sem ser processado, e seu processamento também é intensivo em mão de obra. Como o seu transporte, que se realiza o ano todo (e não apenas “na safra”) e exige caminhões refrigerados, cuja produção e manutenção também é exigente em mão de obra. Mas enquanto Paraná e Santa Catarina especializam-se em áreas de alta empregabilidade, com elevada agregação de valor e mercado internacional crescente, o RS navega em outras águas e busca destinos “mais elevados”. Tantos os gestores públicos (das mais diversas inclinações políticas) quanto suas assessorias econômicas têm uma outra preocupação: a produtividade. Por vezes, temos a impressão de que a imagem de futuro que povoa os sonhos desses visionários é uma economia totalmente automatizada e tecnificada, que gera o mínimo de emprego. Se possível, nenhum. Assim, a produtividade do trabalho iria (com Buzz) “ao infinito, e além”. E nem ouse perguntar se uma tal economia não se depararia com problemas de demanda efetiva, com carência de mercado e clientes. Quem o fizer, vai se deparar com um sorriso irônico e piedoso de seu interlocutor. Os economistas gaúchos já superaram o keynesianismo há muito tempo. Nosso desempenho teórico é tão extraordinário quanto nosso desempenho econômico e demográfico: estamos explodindo de tanto retroceder. E já alcançamos o ricardianismo. Desse jeito, só cabe fazer um pedido: por favor, o último que abandonar o navio, apague as luzes. Isso eleva a produtividade. Mas deixe as centrais elétricas funcionando, talquei. Pois as máquinas não funcionam sem energia. Beijim, beijim, tchau, tchau. *Carlos Águedo Paiva é economista, Doutor em Economia, Diretor Presidente da Paradoxo Consultoria Econômica. Ilustração da capa: www.vejasp.abril.com.br Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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