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Reflexões sobre a guerra de Israel contra o povo palestino

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Reflexões sobre a guerra de Israel contra o povo palestino
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Por TADE*U VALADARES* O fato de nossas desgraças serem em grande medida sistêmicas é, de certa forma, motivo de desespero, já que pode ser extremamente difícil mudar os sistemas. Mas também é motivo de esperança”. (Terry Eagleton, Esperança sem otimismo, p. 180). “Every person born into the world represents something new, something that never existed before, something original and unique…If there had been someone like her in the world, there would have been no need for her to be born” (Martin Buber citado em John Diamond, Narrative means for sober ends, p. 78). “Il n´y a pas lieu de parler de réconciliation entre nous et les Arabes d´Eretz Israel, ni maintenant, ni dans un avenir proche”. (Vladimir Z. Jabotinsky, Le Mur de Fer, 1923). “After the formation of a large army in the wake of the establishment of the state, we will abolish partition and expand to the whole of Palestine” (Ben-Gurion. In: Simha Flapan, The Birth of Israel. p. 22). “If we stop the war now, before all its goals are achieved, this means that Israel will have lost the war, and this we will not allow” (Benjamin Netanyahu. Entrevista recente à CNN). “… quando invece lo sforzo delle forze revoluzionarie è insuficiente per prendere il potere, e allo stesso modo insuficiente è la forza della reazione a riassicurare il vechio potere, allora “avviene la distruzione reciproca delle forze in conflitto com l´instaurazione della pace dei cimiteri, magari sotto la vigilanza di una sentinella straniera”. (Massimo L. Salvadori citando Antonio Gramsci em Gramsci e il problema storico della democrazie, Einaudi, 1970, p. 138). Comecemos por simplesmente registrar notícias circuladas nesta segunda-feira, 18 de março, a respeito da guerra imposta há mais de cinco meses pelo estado de Israel ao povo palestino em Gaza. Haaretz, o mais importante jornal israelense, destacou que: (i) em Gaza a situação é de fome catastrófica. O total de famintos passa de 1 milhão e 100 mil pessoas; (ii) o Secretário Geral da ONU, Antonio Guterres, denunciou esse estado de coisas com sombrio comentário: “Este é o número mais alto de pessoas enfrentando fome catastrófica jamais registrado”. Em nenhum outro lugar isso ocorreu; em nenhum outro momento, realçou Guterres; (iii) o Ministro para Assuntos de Política Externa da União Europeia, o espanhol Joseph Borrell, opinou, um tom abaixo na escala harmônica, que “Israel está provocando fome em Gaza”; e (iv) a reação da chancelaria israelense foi típica: “É tempo de o ministro Joseph Borrell parar de atacar Israel e reconhecer nosso direito de autodefesa contra os crimes do Hamas”. Passemos do plano declaratório a dados estatísticos que conformam um conjunto macabro: (a) de 7 de outubro até 18 de março, 31.726 palestinos, 2/3 deles mulheres, crianças e idosos, pereceram em Gaza. Vidas ceifadas pela máquina de guerra israelense, escândalo que a Corte Internacional de Justiça, apresentada a queixa da África do Sul, aceitou considerar com vistas a, no devido tempo longo, definir se a guerra contra a população de Gaza é genocida ou não. Por enquanto, a Corte, obedecendo aos ritos processuais, admitiu apenas a plausiblidade de que crime de genocídio esteja sendo cometido por Israel. (b) os desaparecidos sob escombros são mais de 7 mil; e o total dos feridos – também eles em sua imensa maioria mulheres, crianças e idosos – era, dia 18, quase 74 mil. Até alguns dias, portanto, a guerra imposta a Gaza vitimou 112.518 palestinos. Essas cifras que são muito mais do que números (pensemos na frase de Martin Buber), significam que cada uma das vítimas, tanto as palestinas como as israelenses, é ou foi um mundo total ou parcialmente destruído. A essa realidade entre estatística e buberiana há que agregar: desde o início da guerra isaelense mais de 400 palestinos foram assassinados na Margem Ocidental. Como se não bastasse, o ministro da Segurança Nacional, Ben-Gvir, anunciou que a partir do início das operações em Gaza foram emitidas mais de 100 mil autorizações para aquisição de armas. Pensemos nos colonos israelenses na Cisjordânia e na permanente cumplicidade entre eles e as forças israelenses que dominam os territórios ocupados. Pensemos no que esse tipo de notícia nos diz quanto à violência colonial que também se abate, embora com menos intensidade, na Cisjordânia sob ocupação. Para completar o quadro: em 7 de outubro passado, os combatentes do Hamas, da Jihad Islâmica e de outros pequenos grupos anticoloniais que resistem à opressão israelense recorrendo à luta armada – direito-limite dos povos colonizados, reconhecido pela Assembleia Geral das Nações Unidas em especial por meio da resolução 37/43 – realizaram sua maior e mais importante operação insurgente. O resultado – espantoso para todos nós, mas especialmente traumático para o Estado sionista, a sociedade israelense e as chamadas forças de defesa – foi a morte de 1.200 pessoas, entre civis e militares; ferimentos em mais de 3.000; e aprisionamento de contingente de militares e civis que hoje, após as trocas havidas durante o primeiro cessar-fogo, é estimado em 129 pessoas. Esses dados nos indicam que o total de mortos e feridos israelenses é de 4.329; que o total de mortos e feridos palestinos alcança 112.518 pessoas; que a proporção entre uns e outros é de 26 mortos ou feridos palestinos para cada morto ou ferido israelense. Também nesse tétrico balanço comparece a desproporcionalidade brutal da reação de Israel aos ataques dos grupos armados que operam a partir de Gaza. Guerra de escarmento, guerra de punição e expulsão coletiva da população a pretexto de eliminar o Hamás e os outros grupos armados, coisa aparentemente impossível. Passemos às notícias circuladas em 19 de março por The Guardian, jornal de referência que pode ser considerado ‘pendant’ do israelense Haaretz. Naquela data, o cotidiano britânico informou que as continuadas e significativas restrições impostas pelos militares israelenses à entrada de ajuda humanitária em Gaza, somadas à maneira implacável como as forças sionistas continuam a conduzir suas operações bélicas, poderiam estar sinalizando a operacionalização de estratégia centrada na imposição de morte por fome. O jornal fala em ‘starvation’ e, com o característico comedimento britânico, sugere que ‘starvation’, no caso, parece ser crime de guerra. Ainda segundo The Guardian, o Programa Alimentar Mundial – a maior agência humanitária do planeta – estima que um mínimo de 300 caminhões com alimentos deveria ingressar diariamente na Faixa de Gaza para atender de maneira muito precária às necessidades imediatas da população faminta. No dia 17, observa o periódico, 18 caminhões receberam autorização da potência ocupante para ingressar naquele território. Sabemos, os que se informam, que a insuficiente quota de 300 caminhões/dia é preenchida apenas de raro em raro. Outra notícia importante: a ideia, flutuada pelos EUA e outros aliados e parceiros ocidentais, de reinstituir a Autoridade Palestina na Faixa de Gaza, mereceu reação imediata de Benjamin Netanyahu: “Trazer a Autoridade Palestina para Gaza é trazer uma entidade comprometida com a destruição do Estado de Israel. Não há diferença entre sua meta e a do Hamas. É uma entidade que educa para o terrorismo; que recompensa atos terroristas. A ambição da inteira liderança palestina, qualquer que seja sua forma, é a eliminação dos sionistas.” Importante, nesse contexto, correlacionar as manifestações extremistas de Benjamin Netanyahu desde 7 de outubro último com os resultados das pesquisas de opinião realizadas em Israel após iniciada a guerra contra o povo palestino em Gaza. Um exemplo talvez seja mais do que suficiente. Em 21 de fevereiro passado, transcorridos mais de quatro meses da guerra declarada por Tel Aviv, o Instituto Democracia de Israel realizou pesquisa de opinião que lhe permitiu detectar o seguinte: 63% dos judeus israelenses se opõem à criação de Estado palestino. Isso, obviamente, dá uma medida da rejeição da grande massa da população judia de Israel à “solução dos dois estado”’, ideia que, lançada 87 anos atrás (Relatório Peel, 1937), foi encampada pela ONU quando do reconhecimento do Estado de Israel em 1948 e da partilha da Palestina histórica. No longo caminho que levaria à criação de dois estados, o máximo alcançado foi inscrito nos fracassados processos de Oslo I e II (1993 e 1995). A ideia da criação de dois estados, quando a área em princípio destinada à consagrar a territorialidade palestina se tornou coleção de bantustões, volta a flutuar depois de seu evidente naufrágio. A imaginação criadora de políticos e diplomatas reduziu-se a esforços retóricos. De acordo com a mesma pesquisa, 71% dos entrevistados acreditam que o eventual estabelecimento de um Estado palestino manteria ou aumentaria o ‘terrorismo’; 51% dos indagados consideram improvável uma vitória completa das forças israelenses na guerra iniciada por Israel em 7 de outubro; mas em fevereiro passado 75% dos cidadãos judeus israelenses (a opinião dos ‘árabes israelenses’, cidadãos de segunda, é naturalmente outra) aprovavam a planejada operação militar contra Rafah, território reduzidíssimo onde se concentraram, para escapar da matança iniciada em outubro, mais de 1.5 milhão de palestinos. Esse, em linhas gerais, o ‘estado de espírito’ nada sionista-buberiano que há tempos anima ampla maioria dos nacionais israelenses. À luz desses dados, e da fé no uso de força cega que esse ‘estado de espírito’ confirma, há que registrar: (1) a guerra genocida contra a população de Gaza – por mais que em termos jurídicos continue no limbo do plausível, junto com Soderini e as crianças não-nascidas – tem tudo para durar muito mais do que nós, todos horrorizados, possamos imaginar; (2) essa é uma guerra já perdida por Israel ao menos em duas frentes: a da batalha pelos corações e mentes da chamada ‘opinião pública mundial’ e a da mobilização das ruas por movimentos sociais, partidos, sindicatos e mais, críticos do estado sionista. A batalha pela conquista da ‘opinião pública global’ inclui sua fração ocidental, de fato a única verdadeiramente importante para Israel. Tal batalha parece perdida para o estado sionista, apesar de todos os esforços dos que, sionistas ou não, apoiam a guerra. Na segunda frente, de caráter complementar-operacional ‘vis-à-vis’ a primeira, o conjunto dos movimentos contrários à guerra e às práticas militares de Israel, também dá sinais de ser vitorioso nas ruas. Dito em outros termos, a dinâmica das mobilizações em favor de Israel, contraposta à que pede sua condenação política, ética e moral, junto com a imediata cessação da guerra, ganha força, espaço e público à medida que a barbárie continua a imperar em Gaza. Os argumentos sionistas, não sem motivos, perdem densidade à luz da realidade marcada pelos massacres diários amplamente difundidos nas várias mídias. No limite e no prazo longo, o apoio popular à Palestina, aos de Gaza e aos da Cisjordânia pesará decisivamente. Por enquanto, isola mais e mais o estado sionista e os governos e movimentos que o apoiam. Mesmo no plano simbólico, sempre tão difícil de conceituar com precisão, é fácil perceber: esvai-se o mito da democracia israelense, ao mesmo tempo em que se afirma visão contraposta, a que entende o estado sionista como encarnação de uma das últimas expressões históricas do colonialismo europeu de povoamento, no caso de Israel agravado, tal como na África do Sul ‘boer’, pela dimensão aparteísta de fundo étnico. Em suma, na luta ideológica Israel já não tem como eficazmente se contrapor às críticas de fundo tanto político quanto ético e moral. Isso está ocorrendo, com intensidade e ritmos distintos, tanto nos EUA quanto no Canadá, Reino Unido, Irlanda, Europa continental, Austrália e Nova Zelândia. Em alguns desses países e regiões, a derrota ‘in fieri’ começa a ficar clara. Em outros, ainda se encontra no estágio de acumulação de forças. De todo modo, o vetor final parece estabelecido: o futuro se configura extremamente negativo para Israel. Essa tendência geral se aplica com ainda maior força, naturalmente, a todo o mundo árabe, a todo o mundo islâmico, aos países em que minorias muçulmanas são importantes. Nesse registro, pensemos na África, sobretudo. Mas esse mesmo movimento, ainda que comparativamente bem menos potente, também está presente na América Latina. Apesar disso, e a despeito dos primeiros ‘sinais de insatisfação’ emitidos ao longo das últimas semanas por líderes ocidentais (Biden, Borrell, Macron, etc.), o ‘crescendo’ da mobilização popular de fato não chegou a se aproximar minimamente de seu objetivos maiores: a cessação da guerra e a criação da espantosa possibilidade de se estabelecer a paz. A questão é tão intratável que nem mesmo hipotético segundo cessar-fogo com seis semanas de duração, medida que efetivamente nada resolve, foi até agora conssensuado. Mesmo que venha a se concretizar, a adoção da medida por si mesma nada resolve, apenas interrompe o massacre. No plano estritamente jurídico, o processo aberto pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça muito provavelmente conduzirá, em 2, 3, 4 anos ou mais, à condenação de Israel pelo crime de genocídio. Mas no plano estritamente jurídico o crime ainda não é crime, o genocídio não passa de hipótese plausível. No plano do real cotidiano, por outro lado, o plausível já se metamorfoseou, dada a brutalidade dos fatos, em genocídio escancarado. Passemos a outro nível de análise. Em texto anterior, postado no site A Terra é Redonda menos de duas semanas atrás, utilizei como epígrafe outra frase de Vladimir Jabotinsky, o mais importante, o mais claro e o mais duro formulador de uma variante específica de sionismo, a revisionista, antípoda do sionismo filosófico em muito idealista, humanista, ético, cultural e moral defendido por Buber e Scholem. A variante revisionista de sionismo, em sua dureza e pureza, tornou-se progressivamente mais forte na Palestina histórica e, depois, no estado de Israel. Mas a conquista da primazia ideológica foi lenta, o sionismo revisionista havendo sido minoritário desde a década de 20 do século passado até ao menos a guerra de 1967. A partir de então cresceu muito, embora só viesse a alcançar o poder executivo dez anos depois, quando Menachem Begin, sionista revisionista histórico, tornou-se primeiro ministro. Para Vladimir Jabotinsky – cujas ideias estrategicamente decisivas foram elaboradas num texto curto, datado de 1923 e intitulado A muralha de ferro – um acordo entre os judeus em Eretz Israel e o ‘povo árabe” (Jabotinsky não reconhecia um povo palestino, apenas o povo ou a nação árabe) não era premente. Ao contrário, deveria ser evitado a todo custo. Prioritário era construir a Muralha de Ferro – sinônimo de força militar e capacidade estratégica incontrastáveis – capaz de impor a vontade de poder sionista ao povo árabe, isto é, ao povo árabe em Eretz Israel e ao restante da nação árabe circunvizinha. Essencial: a Muralha teria de ser forte em tal escala que tornasse impossível qualquer ameaça ou mesmo influência árabe. Só então, para Vladimir Jabotinsky, um acordo entre os dois povos seria possível e necessário. Só quando a correlação de forças viesse a ser totalmente favorável ao povo judeu, só quando fosse definitivamente quebrada a espinha dorsal da resistência do povo árabe, o lado sionista se disporia a efetivamente ‘negociar a paz’. Noutras palavras, a ideia fundamental – a Muralha de Ferro como sua metáfora – era fortalecer Israel ao máximo em termos estratégico-militares internos, enquanto que, no plano externo, os sionistas construiriam alianças pragmáticas com uma ou outra das grandes potências ocidentais com interesses geopolíticos permanentes, de caráter colonial, no Oriente Médio. Assim, se pensarmos em Maquiavel, de certa forma ocorreria um feliz encontro entre ‘virtú’ (a muralha interna) com ‘fortuna’ (as alianças pragmáticas que reforçassem, no plano geopolítico mais amplo, a dominância sionista). Assim procedendo, a população judia na Palestina da década de 1920 e o futuro estado de Israel estariam em condições de afinal impor um ‘acordo’ entre uma parte imensamente forte e outra praticamente indefesa. Vladimir Jabotinsky, reconhecido pela extrema direita sionista como seu ‘maître penseur’, é o fundador do sionismo revisionista, mas também foi um dos criadores da Hagannah em 1920. Essa linha do sionismo combateu todas as outras, com exceção do ‘sionismo político’ de Herz e seguidores. Ao longo de décadas, o sionismo revisionista se bateu de maneira encarniçada contra os demais integrantes do seu próprio arco ideológico, dos humanistas à Buber aos trabalhistas autointitulados socialistas, e, por óbvio, arremeteu contra os marxistas antissionistas que conseguiram transferir cerca de 40 mil judeus de esquerda para Eretz Israel durante a segunda aliá (1904-1914). Mas o principal adversário dos revisionistas foi o sionismo trabalhista liderado por Ben-Gurion, inimigo jurado de Vladimir Jabotinsky. Ben-Gurion, em fala sintomal, apelidou Jabotinsky de Vladimir Hitler. A menção a Vladimir Hitler não é gratuita. De fato, para boa parte dos historiadores, Vladimir Jabotinsky e o sionismo revisionista eram ou bem uma expressão adaptada do fascismo mussoliniano ou, para os mais lenientes, uma forma de protofascismo europeu. Para Michael Stanislavsky (Zionism – a very short introduction, p. 48): “Although he himself never crossed the line to full-fledged fascism … the youthful minions of his massively popular movement adopted the black-shirt uniforms of right-wing parties of the day, repeating his mantra that ‘all a Jewish boy needs to learn is to speak Hebrew and shoot a gun”. O contorcionismo apologético de Stanislavsky parece-me evidente, sua salvadora distinção entre protofacismo e fascismo ou nazismo tem o seu quê de refinamento acadêmico, mas afinal não se sustenta. Recordo, leitura minha de décadas e décadas atrás, que Curzio Malaparte, em Kaputt, se refere a Vladimir Jabotinsky como ‘o judeu favorito de Mussolini’. Sem dúvida, a disputa mais importante no interior do sionismo foi a que se deu entre os revisionistas, por um lado, e os trabalhistas, por outro. Mas deixando a dimensão pessoal de lado, o relevante é que tanto os sionistas revisionistas quanto os trabalhistas – os primeiros abertamente, os outros de maneira mais calculada, em geral encoberta – obedeceram à lógica da Muralha de Ferro. Ambos a implantaram. Os trabalhistas, na era Ben-Gurion do Israel inicial; os revisionistas, sobretudo a partir de 1977. Begin, o primeiro dos primeiros-ministros revisonistas. Benjamin Netanyahu, a encarnação mais recente. Essa é, de maneira algo sumária, a tese defendida pelo historiador israelense Avi Shlaim em sua obra maior, lançada em 1999 sob o título A muralha de ferro, Israel e o mundo árabe. O longo texto, mais de 700 páginas, mereceu uma atualização do autor, artigo circulado em 2002: “A Muralha de Ferro Revisitada”. Para Avi Shlaim, depois de um certo tempo, depois, no meu entender, de 1967, mas sobretudo depois de 1977, tanto os revisionistas quanto os trabalhistas passaram a pensar Israel e sua relação com o ‘povo árabe’ a partir do eixo central conformado pelas ideias de Vladimir Jabotinsky devidamente atualizadas. Hoje, tudo parece indicar que a metáfora da Muralha é compartilhada pela maior parte da elite sionista israelense, das forças armadas, da academia, e também pela mídia que conta e, mais importante de tudo, pelo eleitorado de Israel, isto é, pela fração do povo formada pelos cidadãos de primeira classe, os judeus israelenses, sejam eles sionistas ou não. Certo, minorias continuam a existir. Minorias continuam a criticar. Minorias persistem na oposição. Mas a caravana da maioria é que atravessa o deserto. A tese de Shlaim, chave que em muito ajuda a explicar o que ocorre no Estado e na sociedade israelense atuais. Contribui para entendermos o porquê de a intransigência de Israel ‘vis-à-vis’ a Palestina e seu povo ser completa, nisso Benjamin Netanyahu sendo apoiado pela massa dos cidadãos judeus, incluídos os que o querem ver fora do poder e, se possível, na prisão. A agressividade permanente de Israel contra os vizinhos árabes – nem falemos do Irã –o, e a virulência sem limites contra o povo palestino também são iluminadas pela metáfora de Vladimir Jabotinsky. Entretanto, claro, isso deve ser realisticamente matizado. A oposição é frontal entre Israel, estado e sociedade, e os povos árabes, mas o pragmatismo que a um só tempo marca as elites árabes e sua congênere israelense permite entendimentos sólidos e duradouros entre elas. O maior exemplo, a relação entre Israel e o Egito pós-Nasser. Seu maior projeto, o que estava sendo concretizado via acordos Abraão. No fundo do palco, o desejo sionista revisionista, hoje sionista em geral, de construir o Grande Israel às expensas do povo palestino. No fundo do palco, a imensa distância árabe entre elite do poder e povo. Porque aceito, inda que parcialmente, a interpretação elaborada por Avi Shlaim, é-me difícil acreditar que o Israel de hoje, o de Benjamin Netanyahu, e o Israel de amanhã, provavelmente o de Benny Gantz, sejam substantivamente diferentes. A visita de Benny Gantz a Washington e sua mensagem a Camila Harris e Joe Biden, similar às de Benjamin Netanyahu. Isso proclama que Netanyahu e Ganz são partes de um mesmo todo, o todo claramente pensado por Vladimir Jabotinsky, o todo metaforizado pela Muralha. Se estou no certo em alguma medida, então, até mesmo por derivação, é de se esperar que nenhuma liderança sionista atual tenha flexibilidade política, ideológica e até mesmo axiológica para satisfazer as demandas mínimas, eleitoralmente angustiadas, dos seus principais aliados e parceiros ocidentais. De certa maneira, também o Ocidente, não apenas Israel, tornou-se prisioneiro da Muralha de Ferro. Para o Ocidente estendido, esse que vai da América do Norte à Oceania, passando pela Europa, por Israel, pelo Japão, pela Coreia do Sul e outros aliados e parceiros, o nome atual desse cárcere com muros altos talvez seja “cumplicidade ocidental no genocídio em Gaza”. E se fechamos ainda mais o círculo da mentalidade revisionista, tudo fica mais claro: a psicologia de massa do eleitorado israelense, traduzida nas pesquisas de opinião pública circuladas pós-7 de outubro, denota algo desesperador. As pesquisas dizem aos gritos que a grande maioria dos judeus israelenses se tornou, estejam eles conscientes disso ou não, sionista revisionista na maneira de ver e pensar o mundo, por trabalhistas que muitos deles se proclamem. O complexo da Muralha de Ferro tornou-se artigo de consumo corrente. A Muralha se constituiu como parte indeclinável da psique nacional israelense fundada nas ideias antagônicas de cerco e de expansão. Porque penso assim, vejo com profunda frustração que o futuro da questão palestina – a ‘questão árabe’ de Vladimir Jabotinsky – não tem como, no prazo de muitos meses ou mesmo de poucos anos, alcançar o seu momento superior, a definitiva libertação palestina do jugo colonial sionista, sucessor do jugo colonial britânico. Porque penso assim, a tesoura do realismo cortando rente as asas do desejo, continuo a situar ainda muito longe aquilo por nós todos desejado, o desenlace vitorioso da luta secular da Palestina por sua autodeterminação. A guerra genocida imposta à população de Gaza decerto fará avançar o processo a um custo humano incalculável. Mas a vitória decisiva ainda se esconde por trás da linha do horizonte. Por isso mesmo, a luta do povo palestino por sua libertação nacional se tornou o exemplo mais duro, na escala planetária da arena internacional, de equilíbrio catastrófico a ser positivamente transformado. Em meio à catástrofe em curso, fiquemos com nossa única certeza: a libertação nacional do povo palestino é inelutável. Viva a Palestina livre! Libertas quae sera tamen! *Embaixador aposentado. Foto: REUTERS/Liesa Johannssen Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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Impacto ambiental e as tensões políticas

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Impacto ambiental e as tensões políticas
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Por ALEXANDRE CRUZ* O governo Lula lançou o Plano Safra, destinando R$ 400 bilhões ao agronegócio e R$ 85 bilhões à agricultura familiar, demonstrando um esforço significativo para apoiar ambos os setores. No entanto, a postura de confronto adotada por alguns grupos dentro do agronegócio tem gerado esforços, especialmente em relação ao problema das queimadas. Embora o Brasil esteja apresentando números econômicos positivos e o governo Lula tenha conquistas políticas, as queimadas criminosas ainda representam um desafio crítico. Elas estão sendo usadas como uma estratégia para desestabilizar o governo, afetando a imagem internacional do país e prejudicando a saúde da população. O governo está trabalhando em conjunto com o Judiciário para combater os incêndios e punir os responsáveis, buscando proteger o meio ambiente e a saúde pública. É importante considerar que nem todo o agronegócio está em conflito com o governo; muitos produtores estão dispostos ao diálogo e à cooperação. Contudo, uma parte do setor parece rejeitar a conciliação e pode estar contribuindo para a crise ambiental como uma forma de pressão sobre o governo. O desafio atual é encontrar um equilíbrio entre os interesses do agronegócio e a necessidade de proteger o meio ambiente, garantindo que as políticas públicas sejam eficazes e justas para todas as partes envolvidas. *Jornalista político Foto: Greenpeace Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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A Privatização do Parque Estadual de Itaúnas: Uma Ameaça à Comunidade, à sua Identidade Cultural e ao Patrimônio Natural

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A Privatização do Parque Estadual de Itaúnas: Uma Ameaça à Comunidade, à sua Identidade Cultural e ao Patrimônio Natural
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Da REDAÇÃO, com informações do Século Diário O projeto de privatização do Parque Estadual de Itaúnas (PEI), promovido pelo governo do Espírito Santo, tem gerado forte mobilização e resistência da comunidade local. Inserido no Programa Estadual de Desenvolvimento Sustentável das Unidades de Conservação (PEDUC), o plano prevê a concessão de áreas do parque para exploração turística, com construções como pousadas, restaurantes e estruturas de lazer, incluindo uma tirolesa e piscina flutuante. A proposta, liderada pelo secretário estadual de Meio Ambiente, Felipe Rigoni, promete impulsionar o turismo e gerar desenvolvimento econômico. No entanto, o processo tem sido criticado pela falta de transparência e pela ausência de consulta popular, o que levanta questionamentos sobre os verdadeiros impactos ambientais e sociais da privatização. A notícia do projeto pegou a população de Itaúnas de surpresa. Segundo Naiara Baptista César, cineasta e proprietária da Pousada Bem Viver, a informação chegou à comunidade "como uma bomba" e em um momento difícil para mobilizações, já que coincidia com o início do Festival Gastronômico local. “A comunidade não foi consultada, e muitos moradores sequer entenderam o que estava acontecendo”, afirmou Naiara. Como resultado, uma reunião pública foi organizada rapidamente, reunindo mais de 100 pessoas na sede do parque, numa rara demonstração de unidade da população. Durante o encontro, ficou claro que o descontentamento era generalizado. Moradores e comerciantes, que há anos cuidam do parque e promovem o turismo sustentável na região, expressaram preocupação com o impacto das novas estruturas sobre o ecossistema local, que inclui áreas de restinga, manguezal e um importante patrimônio arqueológico. A comunidade, que se orgulha de preservar o parque de forma sustentável, teme a transformação drástica de seu modo de vida e do turismo local. "Estamos comprometendo ecossistemas protegidos por lei", declarou Clovis Mendes, biólogo e membro do Conselho Estadual de Cultura, em referência aos danos ambientais que as construções poderiam causar à restinga, manguezais e ao patrimônio arqueológico tombado que o parque abriga. Além das preocupações ambientais, o projeto também gera temores sobre a elitização do turismo e o afastamento da comunidade local do processo decisório. “A comunidade tem sido desrespeitada. Esse projeto parece ser mais um empreendimento imobiliário do que uma concessão sustentável”, comentou Mendes. A sensação de exclusão é agravada pela falta de diálogo: o secretário Felipe Rigoni, em publicação no Instagram, afirmou que "o processo de concessão ainda está em fase de elaboração e incluirá consultas públicas", mas para os moradores, o anúncio da privatização antes mesmo da consulta pública parece um "atropelo" das etapas. Em reação à desinformação, a comunidade se organizou em Grupos de Trabalho (GTs) para monitorar e combater o projeto. Os grupos atuam em diversas frentes, incluindo a elaboração de um manifesto de repúdio e um abaixo-assinado, além de iniciativas de mobilização institucional e comunicação, com o objetivo de levar o caso ao Ministério Público Federal. Como apontado por participantes da reunião, "a participação social é essencial", e o esforço coletivo tem sido para garantir que o projeto não avance sem o devido escrutínio público. Um dos principais focos dos GTs é esclarecer a população local e os turistas sobre os riscos que o projeto traz para a preservação ambiental e para a cultura de Itaúnas. Outro ponto central da crítica é a possível descaracterização do modo de vida da comunidade. Pequenos empresários locais, como Miguel Vasconcellos, morador nativo e proprietário da Barraca Tartaruga, apontam que a concessão pode destruir a base do turismo sustentável que tem sido o motor da economia da vila. “O que tem aqui já funciona. A gente cuida do parque. Não precisamos de uma tirolesa ou de uma piscina flutuante”, disse Miguel. Esse sentimento de pertencimento ao espaço natural reflete a relação simbiótica que os moradores têm com o parque, visto não apenas como um recurso natural, mas também como um patrimônio cultural. O PEI é palco de eventos tradicionais, como o famoso Festival de Forró, que atrai turistas de todo o Brasil. Para os moradores, o risco é que a privatização traga um tipo de turismo predatório, que explore o local sem respeitar suas tradições e a identidade da comunidade. Silvia Sardenberg, servidora do Instituto Estadual de Meio Ambiente (IEMA), também questiona o impacto ambiental do projeto. Ela criticou a falta de profundidade nos estudos apresentados pelo governo estadual, apontando que as decisões foram tomadas sem a devida consideração dos riscos ambientais. Os moradores e empresários locais ouvidos lembram que o Estado não investe há anos no turismo na vila, o IEMA está sucateado, o PEI não tem concurso há tempos e trabalha com apenas três técnicos na gestão e as barracas da praia nunca conseguiriam autorização do Estado para realizarem reformas e melhorias. Segundo eles, o turismo no local precisa de um planejamento estratégico e os próprios moradores e empresários poderiam receber recursos e apoio para promovê-lo. No centro desse debate, está o embate clássico entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental. Embora o governo capixaba defenda o projeto como uma forma de gerar receitas e atrair mais turistas para o estado, a comunidade de Itaúnas vê a iniciativa como uma ameaça à sustentabilidade do parque e à qualidade de vida local. A resistência ao PEDUC em Itaúnas reflete um movimento crescente em diversas partes do Brasil, onde concessões de áreas de conservação para a iniciativa privada têm encontrado resistência popular. O desafio, como sempre, é encontrar um equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e a preservação ambiental e cultural, garantindo que o turismo e a exploração sustentável possam ocorrer sem comprometer a biodiversidade, as tradições e o bem-estar das comunidades locais. Diante desse cenário, é imperativo que o governo do Espírito Santo abra canais de diálogo reais com a população e revise o projeto à luz das preocupações levantadas. Itaúnas é mais do que um destino turístico; é um símbolo da riqueza natural e cultural do Brasil. E essa riqueza não pode ser sacrificada em nome de um desenvolvimento econômico que não leve em consideração as necessidades e o futuro de seus habitantes. Com informações do portal Século Diário Viva Itaúnas ES - Google Fotos - Clique para ver as fotos. Galeria de fotos de Itaúnas: Acervo BTC Foto da capa: Praça principal da Vila de Itaúnas ES - Pinterest  

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A resistência de um documentarista

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A resistência de um documentarista
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Por LÉA MARIA AARÃO REIS* Ato de Resistência – a luta dos blogueiros progressistas, que para muitos é conhecido como Ato de Resistência – um filme proletário, é um média-metragem de 45 minutos, do cineasta carioca Silvio Tendler, recordista de bilheteria de documentários nacionais. O trabalho de Silvio está especialmente em foco este mês, pela seleção que fez de filmes exibidos no Projeto Memória, Coração do Futuro, que se estende até o dia 11 de novembro, na Fundação Casa Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, com trabalhos relacionados aos 60 anos do golpe civil-militar. E mais: porque é oportuna também a próxima estreia do seu recente e aguardado Brizola, Anotações para Uma História, uma nova abordagem política do líder gaúcho, no próximo Festival do Rio 2024, de 3 a 13 de outubro. E porque são cada vez mais incisivos e urgentes os debates sobre a necessidade de uma internet gratuita, como mostram os entrevistados em Ato de Resistência. Essa batalha de ideias vem dos jornalistas do grupo Blogueiros Progressistas, reunidos em 2022, na cidade de Maricá, auditório do Cine Henfil, para o 7º Encontro Nacional de Comunicadores e Ativistas Digitais, e filmados por Tendler. Com roteiro e montagem de Patrícia Granja e Fabiano Skinner, produção de Ana Rosa Tendler e argumento do diretor, os blogueiros — que, dois anos depois do 7º Encontro, vêm se organizando em pequenas e médias empresas de notícias — discutiram sobre: A necessidade de contraponto cada vez mais enérgico e rápido contra a desinformação e manipulação das notícias por parte do movimento dos blogueiros progressistas, o Blogprog, nascido em 2010 para lutar com o infame “partido da imprensa golpista”, o PIG, assim batizado pelo saudoso jornalista Paulo Henrique Amorim. A campanha em favor de Julian Assange Livre, que desde 2019 se encontrava preso. A resistência às bigtechs e o fato de seis entre dez biomilionários, no mundo, pertencerem ao grupo de proprietários de empresas da indústria da comunicação, como é lembrado no filme. (Hoje, dois anos depois, assistimos à crescente e esmagadora influência desses bilionários da comunicação e da área da indústria militar internacional, nos períodos de eleições, como agora, e na vida democrática dos países ocidentais). O combate ferrenho às fake news e desmistificação da propagada ideia de que a repetição de uma mentira se torna verdade depois de algum tempo, como rezam as teorias da cognição. A necessidade dos blogs se organizarem em redes. “Informação na veia”, como dizia o jornalista Paulo Henrique Amorim, e uma ação coletiva e profissional para além da rebeldia pessoal. Financiamentos de blogs, verbas governamentais, treinamento de profissionais para o jornalismo digital, uso de laptops e de todas as tecnologias gratuitas, aprendizado de entrevistas realizadas através de celulares, etc. Em entrevista ao site de Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena, a dupla gaúcha do Tutaméia, Silvio comentou sobre a sua inspiração para Ato de Resistência. Quando visitou o presidente Lula em sua prisão, em Curitiba, levou seu filme Dedo na Ferida para estrear na Sala Lula Livre, uma área do Espaço de Formação Marielle Franco montado pelo MST, em terreno próximo à Vigília Lula Livre. Então, decidiu que o filme seria “uma espécie de manual da resistência”. Cinema de resistência é o que Tendler faz. “Meus filmes são um grande quebra-cabeças onde eu vou juntando caquinhos, pecinhas. Ora têm cara de labirinto, como o filme sobre o Glauber, ora cara de caleidoscópio, que é a cara do Utopia e Barbárie. Todos formam um grande e único filme, mas percebo que eles dialogam entre si e compõem uma grande viagem.” Uma das batalhas de Silvio é contestar a forma de exibição de filmes: “Os cinemas mudaram para dentro dos shoppings. E isso mudou a natureza do espetáculo, mudou a demanda de consumo. Acabou o espaço para os filmes da gente que hoje sobrevivem em pequenas salas, uma sessão por dia, para setenta espectadores. O nosso cinema está sendo assassinado. E aí então vem a resistência.” Resistência que ainda vai muito longe apesar da espera pela regulamentação das bigtechs, que é urgente e imprescindível. E vale lembrar: existem as plataformas gratuitas, os projetos dos movimentos populares, dos grupos organizados das periferias. Os cursos, os eventos gratuitos, debates programados, as sessões promovidas em escolas e em universidades, e não apenas o cinema online, mas os filmes on life que reproduzem, sem ficção, a vida real das populações. Como os docs do Silvio e dos seus combativos e resistentes colegas. *** *Em tempo: O 28º Encontro Nacional de Comunicadores e Ativistas Digitais (Blogprog.com.br) foi realizado em julho passado, no Sindicato de Jornalistas de São Paulo. Em Ato de Resistência (exibição no FatoFlix), alguns dos entrevistados, entre outros, são os jornalistas Altamiro Borges, do Centro de Estudos Barão de Itararé, Anderson Moraes, Rodrigo Vianna, Renato Rovai, Luiz Carlos Azenha e Letícia Sallorenzo. *Léa Maria Aarão Reis é jornalista Ilustração: Divulgação Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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Análise: situação econômica da Alemanha, locomotiva da região, representa uma ameaça para a Europa?

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Análise: situação econômica da Alemanha, locomotiva da região, representa uma ameaça para a Europa?
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Por FLÁVIO AGUIAR* Será a Alemanha uma ameaça para o restante da Europa? Calma: não estou falando de uma guerra, embora graças ao conflito na Ucrânia muitos países do continente, inclusive a Alemanha, estejam aumentando seus orçamentos militares. Estou falando de um outro campo de batalha: a economia. Na semana passada uma parte de uma das principais pontes da cidade de Dresden, na província da Saxônia, quebrou-se durante a madrugada e desabou no rio Elba. Equipes de engenharia passaram o fim de semana trabalhando febrilmente para remover os destroços, pois teme-se uma inundação com a cheia do rio, graças a intensas chuvas e neve precoce em sua cabeceira e sobre alguns de seus afluentes. Ouvi no rádio o comentário de um economista dizendo que esta era uma metáfora perfeita para a economia alemã. Esta vem desabando e a queda vem provocando um efeito cascata no continente, devido ao fato de que muitos outros países dependem das importações da e exportações para a Alemanha, cuja economia ainda é a mais forte da Europa. Depois de um longo período de prosperidade no começo do século XXI, os problemas da economia alemã começaram com a pandemia da COVID-19, que afetou seriamente o comércio, os serviços e os transportes. De início pequenos e médios estabelecimentos fecharam suas portas e, em seguida, a crise chegou às grandes lojas de departamentos. Para complicar mais a situação, uma parte dos consumidores acostumou-se a fazer compras pela internet. Os efeitos mais dramáticos da pandemia passaram, mas o hábito de comprar à distância não. Guerra na Ucrânia agravou a situação Até hoje grandes lojas estão fechando filiais pelo país afora. A situação se agravou com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. A Alemanha aderiu ao fornecimento de armas, ao apoio financeiro ao governo de Kiev e às sanções econômicas contra a Rússia. Os gasodutos Nord Stream 1 e 2, este último em construção, que traziam o gás russo para a Alemanha foram sabotados em setembro de 2022, num episódio até hoje não esclarecido. Em consequência de todo este processo, o fornecimento do gás russo foi interrompido bruscamente, atingindo seriamente a indústria alemã, que começou a encolher. Insumos agrícolas que vinham da Ucrânia também foram prejudicados pela guerra. O custo da energia subiu vertiginosamente, o dos alimentos também. A economia alemã se retraiu e o país se encontra agora à beira do abismo de uma recessão prolongada. Segundo Franciska Palma, analista da londrina Capital Economics, a queda na economia alemã começou em 2018 e se agravou a partir de 2020 e depois de 2022, e não há sinais de pronta recuperação. Em 2023, a economia do país caiu em 0,3%. A previsão para 2024 é de crescimento zero. Apesar dos esforços do governo, a situação não deve melhorar em 2025. Para responder à crise, Berlim deseja promover a biotecnologia, as tecnologias verdes, a Inteligência Artificial e as indústrias da defesa, isto é, militares. Mas está amarrado pelo princípio de que a dívida pública, ou déficit orçamentário, não pode ultrapassar os 0,35% do Produto Interno Bruto (PIB). Houve uma queda de braço interna à coalizão do governo, formada pelo SPD socialdemocrata, os Verdes e o liberal FDP (de Freie Demokratische Partei). Os Verdes e o SPD queriam aumentar o percentual da dívida pública em relação ao PIB, mas o FDP fechou questão e ganhou a parada: só permaneceria no governo se os 0,35% fossem mantidos. Desindustrialização O resultado de tudo é que a Alemanha entrou num processo acelerado de desindustrialização, arrastando consigo o continente todo. De julho de 2023 a julho de 2024 a produção industrial alemã caiu em 5,45%, índice superado apenas pela queda do setor na Hungria ( -6,4%) e na Estônia ( -5,8%). O recuo global foi de 2,2% na Zona do Euro e de 1,7% na União Europeia. Um sinal agudo da crise apareceu na Volkswagen, empresa culturalmente ligada à identidade alemã. Acossada também pela queda nas importações chinesas e pela concorrência deste país dentro da Europa, pela primeira vez em seus quase 90 anos de existência a empresa anunciou a disposição de fechar unidades de produção para equilibrar as contas. A montadora também anunciou a decisão de romper um acordo trabalhista de 30 anos com o sindicato dos trabalhadores, que protege salários e empregos. Como o sindicato tem uma forte representação no Conselho Diretor da empresa, a batalha promete ser dura. Como também a luta pela recuperação e pelo equilíbrio na economia alemã e europeia promete ser tenaz e longa. *Jornalista, professor universitário e autor. Foto: Divulgação Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.  

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DIANTE DAS ENCHENTES, DA SECA E DO FOGO, DINO SALVA O PAÍS DA SÍNDROME DO  FISCALSMO

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DIANTE DAS ENCHENTES, DA SECA E DO FOGO, DINO SALVA O PAÍS DA SÍNDROME DO FISCALSMO
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Por CARLOS DE ASSIS* DESASTRES CLIMÁTICOS E POLÍTICA FISCAL Tenho insistido recorrentemente que o sistema fiscal-monetário brasileiro, tal como expresso na Lei de Responsabilidade Fiscal de 2.000 e sintetizado no “arcabouço” de Fernando Hadad de 2.023, é incompatível com a necessidade de financiamentos do setor público para enfrentar os efeitos da Era de desastres climáticos extremos. Isso acaba de ser reconhecido pelo ministro Fábio Dino, do Supremo Tribunal Federal, ao autorizar que o Executivo recorra a créditos extra orçamentários para o enfrentamento, a adaptação e a prevenção dessas tragédias. A decisão foi referenda pela ministro-chefe da Advocacia Geral da União, Jorge Messias, que a considerou pertinente e muito “corajosa”. Entretanto, essa decisão do ministro Dino, embora estabeleça um necessário marco legal para gastos primários acima da meta fiscal de equilíbrio orçamentário, não enfrenta o problema da conexão entre esse déficit, o conjunto da Economia e os objetivos de desenvolvimento sustentável – portanto, com estabilidade inflacionária – justificadamente perseguidos pelo Brasil. Isso será tratado na segunda de cinco partes deste texto, a qual será publicada nos próximos domingos  com foco especialmente na política monetária, complementando essa primeira, dedicada à política fiscal. O sistema fiscal-monetário brasileiro apoia-se em boa parte, ainda hoje, na criação pelo Banco Central, em 1.979, do  Selic (Sistema de Liquidação e Custódia), como base de suas operações no mercado aberto. O propósito era evitar a dolarização da economia no contexto de uma situação hiperinflacionária. Foi o jeito brasileiro de superar, a curto prazo,  a desconfiança do mercado na política monetária. Entretanto, tendo sobrevivido à Constituição de 1.988  e à Lei de Responsabilidade Fiscal de 2.000, e mesmo com a inflação razoavelmente controlada, a taxa Selic foi mantida e passou a ser um dos fatores de maior distorção da política fiscal-monetária do País. Fixada em intervalos de 45 dias e  alinhada diariamente à meta estabelecida para ela, a taxa Selic, como principal instrumento de controle da liquidez e da inflação pelo Bacen,  tem forte viés inflacionário, pois baseia-se sobretudo em expectativas subjetivas dos diretores do Bacen e do próprio mercado financeiro (Boletim Focus), cujo interesse maior é aumentá-la e mantê-la em níveis elevados. Dessa forma, avança à frente do IPCA do IBGE, e, estendendo-se além do mercado aberto, funciona como um indexador geral de quase toda a economia, em especial da Dívida Pública. Assim, é um dos motivos para que o serviço da Dívida tenda a explodir ano a ano. Isso constituiria um grande desafio para o Brasil em qualquer tempo, mas está se tornando ma ameaça sem precedentes na era dos desastres climáticos extremos. É que, tendo se amarrado dentro de uma institucionalidade fiscal que lhe deixa pouca margem de manobra para atender as necessidades mínimas do povo, que são inscritas no orçamento primário dos entes públicos, estados como o Rio Grande do Sul, sujeito às maiores enchentes e alagamentos de sua história, e os integrantes de praticamente todos os biomas brasileiros, arrasados por secas e incêndios devastadores, estão se tornando fiscal e financeiramente inviáveis. O RS, por exemplo, só escapou da derrocada  absoluta  e da inviabilidade econômica se o Governo, para salvar o Estado, não tivesse negociado com o Congresso, primeiro, o congelamento de sua dívida e do pagamento dos juros por três anos, representando um montante de R$ 23 bilhões; e, posteriormente,   a aprovação por medida provisória de crédito extraordinário, no valor de R$ 1,828 bilhão, fora do “arcabouço fiscal”, para ações de apoio e de reconstrução no Estado. Contudo, esses valores são insignificantes diante da extensão da tragédia. Segundo estudo divulgado em junho pela Federasul (Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul),  os danos causados por  enchentes e alagamentos na infraestrutura econômica do Estado - portanto, sem considerar as perdas em vidas humanas, mais de 100, e com desabrigados e desalojados -, estão sendo calculados em cerca R$ 176 bilhões. Já o governador Eduardo Leite estima  prejuízo ainda maior, de cerca de R$ 200 bilhões. Diante disso, fica claro que todo o orçamento do Estado, fixado para 2.025 em R$ 80,3 bilhões, não cobre sequer metade desse prejuízo. Governo federal, sempre obtendo do Congresso autorização para escapar do “arcabouço fiscal” em que se meteu,  iniciou ainda no início de maio um programa rápido e eficaz de ajuda ao Estado, começando  com recursos para assistência imediata às famílias atingidas no montante de R$ 11 bilhões, evoluindo   para cerca de R$ 78 bilhões em fins de maio e início de junho, destinados a reconstrução. O total dessa ajuda para um único não tem precedentes na história da República. Sem ela, só sobraria para no orçamento primário do Estado, fixado em R$ 83 bilhões para o próximo ano, R$ 5 bilhões para realização de todas as suas funções. São números que  mostram que, sem ajuda federal, e considerando o que exige dos entes federativos a Lei de Responsabilidade Fiscal, ou seja, déficit zero ou mínimo (0,25% para mais ou para menos), o Rio Grande do Sul está mais que inviabilizado financeiramente e em total bancarrota. Assim,  pelo menos nesse Estado e na maioria dos atingidos por desastres extremos, a LRF está morta.  Tudo indica que estará morta também na própria União, na medida em que forem computados os danos financeiros causados pelas queimadas sem precedentes e por futuros desastres climáticos no resto do território nacional – o que vem sendo previsto recorrentemente pela Ciência e comprovado pela experiência. Desastres climáticos não são apenas enchentes e alagamento que destroem a infraestrutura das regiões atingidas, como se viu dramaticamente no RS. A imensa dimensão do País, dividido em cinco biomas com características diferentes, implica variações no clima que vão desde as enchentes no Sul até as secas e incêndios prolongados na Amazônia, no Pantanal, no Leste e no Centro-Oeste.  Diferente é o impacto que isso provoca no orçamento público. O primeiro diz respeito ao necessário e imediato socorro às famílias atingidas, que não podem esperar muito tempo pela assistência social do governo. O impacto seguinte recai principalmente   na reconstrução da infraestrutura, da logística e do patrimônio estatal. Especialmente quando seus efeitos são dramatizados pela mídia, provocando comoção nacional, como no caso gaúcho e das queimadas. Nos grandes incêndios em áreas privadas e de proteção ambiental, embora igualmente dramáticos, o impacto fiscal pode ser menor, pois afeta principalmente o patrimônio estatal. Finalmente, no caso das secas, os custos materiais principais costumam ser absorvidos pelo próprio setor privado, quando não há pressão política para auxílio, ao menos, das vítimas humanas. Independentemente de sua dimensão, o impacto orçamentário das tragédias climáticas exige respostas fiscais. A pior delas é insistir no fetiche do equilíbrio do orçamento primário, no qual as despesas de fundamental interesse público do Estado, fixadas previamente no projeto de Lei Orçamentária Anual, são confrontadas com as despesas financeiras, que, constitucionalmente – devido a uma fraude que será explicada adiante – não tem limites legais. Dessa forma, para assegurar o déficit fiscal zero, o Governo tem adotar cortes recorrentes no orçamento primário. É disso que a decisão de Flávio Dino livrou o Executivo. O Governo do Rio Grande do Sul, como os demais estados, está submetido às mesmas regras fiscais-monetárias estabelecidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal de 2.000, editada por Fernando Henrique Cardoso, e, antes dela, pela Constituição neoliberal de 1.988. Não tem a menor possibilidade de cumpri-las. O Estado está virtualmente quebrado nos termos dessa institucionalidade. Só existe por subvenção do Governo federal, que lhe garantiu, para enfrentar os desastres de maio e junho, cerca de R$ 77 bilhões, contra um orçamento estadual de R$ 83 bilhões para o próximo ano. E está previsto que lhe serão repassados ainda mais recursos federais. É fato que o RS é particularmente vulnerável a desastres climáticos. O Estado encontra-se numa região de anticiclone e em sua costa há duas correntes marítimas extremamente violentas: a Tropical Brasileira e a das Malvinas. O litoral  é contínuo e sem acidentes. As correntes marítimas impedem os rios de desaguarem diretamente no mar. Só há saídas para enchentes no Rio Uruguai e na Lagoa dos Patos. Como a região é de anticiclone, o mar é instável. E as chuvas são contínuas ao longo de todo o ano. Com o desmatamento da Amazônia, a instabilidade pluviométrica aumenta. Dessa forma, novos desastres na região são previsíveis. Isso, entretanto, era muito bem conhecido das autoridades gaúchas, que se omitiram, como o governo Bolsonaro e a maioria quase absoluta de governadores e prefeitos, quanto à prevenção dos desastres na era das variações climáticas extremas.  De 2.023 a 2.024, o Rio Grande do Sul empenhou apenas R$ 579 milhões em valores correntes para o enfrentamento de desastres naturais em diversas frentes.  O orçamento estadual da Defesa Civil  para 2.022 ficou em R$ 10 milhões, chegou  a R$ 118 milhões em 2023, caindo para R$ 109 milhões previstos para 2024. No  Brasil como um todo, segundo o TCU, entre 2.010 e 2.024 (até maio) – portanto,  ao longo de quase 14 anos – foram autorizados somente R$ 70 bilhões no orçamento da União, em termos reais, para enfrentamento dos desafios climáticos. Assim mesmo, só foram efetivamente gastos 65% dele. No período 2.012 a 2.023, neste último caso já considerando as medidas de ajuste negociadas com o Congresso para a transição de governo, os valores programado e sua realização efetiva não diferiram muito, proporcionalmente, do período anterior, evoluindo de R$ 33,75 bilhões previstos para R$  21,79 bilhões realizados. Note-se, com isso, que o País não tem apenas um problema de valores dos orçamentos de prevenção de desastres extremos; tem, também, um problema de eficiência na sua utilização. De qualquer forma, porém, o ponto de partida crucial sempre será a questão do financiamento das ações dos governos em termos de resposta rápida, reconstrução e prevenção das tragédias. E para isso não há uma solução apenas privada: o Governo federal, os governos estaduais e os municípios terão de encontrar meios para defender a vida e as condições de existência das populações atingidas pelos desastres, assim como para reconstruir a infraestrutura. Pelos dados mencionados acima, não existia até pouco tempo uma consciência no País da dimensão dos efeitos das mudanças climáticas. Isso necessariamente terá de mudar, diante de suas consequências efetivas. Mas também no plano político essa pedagogia dos desastres e das respostas dadas a elas tem que funcionar, quando menos para dar ênfase  ao  cinismo neoliberal diante delas: o deputado Aécio Neves, por exemplo, prócer do PSDB,  apontou como demagógicas as medidas que Lula adotou logo depois da tragédia no Sul. Foi quase imediatamente desmentido, na prática, pelas ações de socorro que o Presidente teve de dar ao Estado em fases posteriores. Se o governador Eduardo Leite estiver certo na sua estimativa de que os custos totais da tragédia gaúcha poderão atingir R$ 200 bilhões, o déficit público estadual  em 2.025, que inclui  R$ 162 milhões já previsto oficialmente, deve igualar a duas vezes e meia todo o orçamento – excluindo-se prejuízos e custos da parte de reconstrução do próprio setor privado. Nessa hipótese, o RS não poderá sobreviver como um estado fiscalmente independente dentro da institucionalidade fiscal-monetária brasileira, cuja premissa básica, expressa na Lei de LRF e replicada no “arcabouço” de Fernando Haddad, é o déficit zero ou mínimo (0,25% do PIB para mais ou para menos) no orçamento primário – que a ideologia antiestatizante dos privatistas radicais exige na mídia, mas que o setor privado real jamais assumiria como responsabilidade dele. Estamos falando de um estado e de uma tragédia climática. Há 26 estados e o Distrito Federal no Brasil e dezenas de tragédias climáticas que ocorreram nos últimos anos e que estão ocorrendo na maioria deles, com imensos prejuízos humanos e materiais. Por certo que o desastre recente no Rio Grande do Sul foi de uma escala sem precedentes. O Estado, como visto, é propício a  variações climáticas extremas, e portando  nem todo o País estaria condenado a vivenciar situações semelhantes. Entretanto, tragédias climáticas de custos astronômicos não se limitam a determinadas regiões ou a tipos específicos: secas no Nordeste, em fins de 2.023, causaram custos estimados em R$ 150 bilhões, especialmente na agropecuária. Tomando por base a recorrência de grandes tragédias climáticas no Brasil apenas nos últimos 10 anos, e incluindo secas e incêndios além de enchentes e alagamentos, houve desastres no Estado do Rio de Janeiro  (2.010, com 231 mortos e 5 mil desalojados), Região Serrana, também no RJ (2.011, com 916 mortos), Pantanal (2.011, 17 milhões de animais mortos em incêndios), Minas Gerais (2.020, 90 mil mortos), Petrópolis, RJ (2.022, 241 mortos), Nordeste (2.022, seca prolongada em Pernambuco e Alagoas). Portanto, a probabilidade de mais casos é muito alta. Sabemos que é impossível evitar ou  enfrentar diretamente essas tragédias longamente anunciadas pela Ciência. O melhor que podemos fazer é recorrer a medidas preventivas e nos adaptar a elas, ao menor custo humano e material possível. Não se trata de uma questão que possa ser resolvida de forma convencional pelos poderes públicos. É que não estamos diante de um problema convencional, mas de um desafio que pode nos acompanhar por anos e décadas à frente, o que justifica que lhe seja dada absoluta prioridade nos orçamentos governamentais. Isso custará muita atenção, muito planejamento e muito dinheiro. Porém, não há saída a não ser uma mudança profunda na política fiscal, violando velhos fetiches e preconceitos. Tomando por base o que tem ocorrido no RS e projetados com realismo para o futuro, os recursos que serão necessários para enfrentar – melhor dizendo, para nos adaptar – aos desastres climáticos extremos, considerando ações indispensáveis de resposta rápida, reconstrução e prevenção,  de forma alguma caberão  nos orçamentos primários dos entes públicos atingidos, o que implica a reforma radical sugerida como nova política econômica que descarte a aplicação do  “equilíbrio fiscal” na forma sumária determinada pela Constituição, e  reforçada em detalhes pela LRF. A essência do desafio constitui em extinguir a regra do orçamento primário  equilibrado a qualquer custo, substituindo-a por  outra, através de emenda constitucional, que concilie a política fiscal com crescimento econômico a altas taxas e com inflação estabilizada, em confronto com os fetiches do neoliberalismo econômico. Os gastos públicos terão de ter algum limite, mas os limites devem obedecer a critérios inteligentes e compatíveis com os interesses da Sociedade, em especial dos setores mais vulneráveis dela. O fetiche de que déficits orçamentários  produzem sempre  ou evitam queda da inflação é comum entre  economistas ditos “ortodoxos”, e se espalhou pelo mundo após as crises de dívida externa dos países em desenvolvimento nos anos 1.980. Para “ajudar” os países endividados a pagar suas dívidas externas, o governo dos Estados Unidos exigiu dos devedores a desestatização e  privatização das empresas públicas, enquanto  o  FMI lhes impôs políticas fiscais e monetárias extremamente restritivas, hoje chamadas neoliberais. As metas perseguidas eram gerar superávits comerciais com o exterior e, internamente, combater a inflação e mantê-la baixa. Na prática das negociações, o Fundo, exercendo o papel que os antigos chargistas brasileiros chamavam de “o amigo da onça”, atraía o Brasil com uma taxa de juros relativamente baixa nos seus empréstimos, que cobriam apenas parte do financiamento da dívida, e o entregava às garras leoninas do sistema bancário internacional privado, para que completassem, com taxas de juros extorsivas,  os recursos restantes para o financiamento global da dívida. Com isso, iniciou-se o processo que levaria à globalização e à hipertrofia do sistema financeiro do País. Acovardados diante do poder econômico dos banqueiros, acolitados estes pela proteção política do Governo norte-americano, nossas autoridades, notavelmente o presidente Fernando Henrique Cardoso e seu negociador Pedro Malan, se curvaram às imposições dos credores e aceitaram que nos impusessem  um acordo, em 1.997, com títulos financeiros “podres” (Brady) que nos exigiram descontos vergonhosos de até 30% do valor de face. Esses títulos foram aceitos para privatização das estatais, como a Vale do Rio Doce, vendida por R$ 3 bilhões, e cujos lucros, já no primeiro ano sob controle privado, alcançaram mais de R$ 10 bilhões – sem falar em seu patrimônio, estimado na época em R$ 300 bilhões!   Com imensos sacrifícios para o País e para os trabalhadores, refletidos nas menores taxas de crescimento econômico e nos menores salários reais em décadas, especialmente depois do Plano Real e da Lei de Responsabilidade Fiscal, vimos fazendo equilíbrio ou até superávits fiscais nos orçamentos anuais, cortando recursos destinados ao orçamento primário, ou seja, às despesas públicas de maior interesse para a população, em favor do orçamento financeiro – para o qual, sintomaticamente, não há limites, graças a uma deformação da Constituição de 88 a ser esclarecida adiante. Dessa forma, estreita-se cada vez mais a margem para gastos primários e de investimentos públicos essenciais para o povo, enquanto se prevê, já para o próximo ano, incluindo a carteira do Bacen, um estoque da Dívida Pública Federal de R$ 9,514 trilhões. Os juros computados estão subestimados. O custo médio anual da dívida nos últimos 12 meses é de 10,10%, o que poderá  gerar no final de 2024 o provável pagamento dos juros de mais de R$ 1 trilhão. Isso é quase metade do orçamento primário previsto de R$ 2,222 trilhões e se deve,  sobretudo, à deformação de um mercado aberto que desvia da produção para a especulação grande parte dos recursos financeiros que giram na economia.   Diz-se que o equilíbrio fiscal garante o desenvolvimento sustentável, com estabilidade inflacionária da economia.  Isso, felizmente, é falso. Se fosse verdadeiro, não teríamos chances de retomar o crescimento econômico a altas taxas diante de situações que exigem grandes déficits fiscais, como no momento. De fato, a despeito de suas recorrentes declarações até o início do ano de que garantiria o equilíbrio  orçamentário a qualquer custo, atendendo ao “mercado”, o presidente Lula, diante do fato concreto da tragédia no RS, não se furtou a quebrar sua promessa e lhe dar uma resposta rápida, diante de uma questão humanitária que comoveu todo o País. O Presidente seguiu o que determinou sua consciência e, passando por cima de interesses das oligarquias financeiras e de seus asseclas ideológicos no “mercado” e na aristocracia do próprio Governo, na mídia e na política, está violando de forma pragmática a ideologia do equilíbrio fiscal a qualquer custo, apelando para medidas extraordinárias negociadas com o Congresso, agora com apoio do STF, que contornem o “arcabouço fiscal”.  Sabidamente, ele  não é um acadêmico. É conduzido especialmente pelo coração. Nessa trilha, como nos mandatos anteriores,  vai no caminho certo. O “arcabouço fiscal” foi um desvio para viabilizar politicamente  a difícil transição de Bolsonaro para uma regime de esperança. Terá de ser refeito diante dos fatos. Assim, em face do risco objetivo apontado pela Ciência e pela experiência  para sobrevivência da própria humanidade com as mudanças climáticas provocadas pelo próprio homem,    fica claro que nenhuma ideologia pode se superpor,  na prática,  a ações concretas de adaptação à nova Era. Nesse contexto, defender o  equilíbrio no orçamento fiscal, em nome de uma suposta “austeridade”, só teria sentido se fosse para cortar despesas financeiras, deixando a margem necessária para nos adaptar  aos inevitáveis desastres climáticos do futuro. Do contrário, naufragaremos todos no “austericídio” fiscal. A receita fiscal neoliberal, como visto, sustenta que, para ter crescimento econômico com estabilidade inflacionária, é preciso equilibrar o orçamento primário. Na era dos desastres climáticos extremos, isso é um contracenso. O orçamento fiscal primário é onde se contabilizam, entre outras despesas de interesse público, os custos devidos aos desastres climáticos. Se for preciso equilibrar o orçamento global, é preciso cortar no financeiro, a fim de abrir margem para o crescimento do primário. Acontece que o orçamento financeiro é intocável, conforme nossa Constituição neoliberal determina.  Assim,   só no plano  ideológico pode-se conciliar equilíbrio ou superávit primário, estabilidade monetária e crescimento econômico.   Com os desastres no Sul, e seus custos,  o Presidente tomou um rumo duplamente certo. Primeiro porque, diante de tragédias humanitárias, o Estado, independentemente de ideologias, tem de agir para socorrer suas vítimas humanas e materiais; segundo, e isso é essencial, déficit primário não necessariamente causa inflação, como disse antes. É o que de fato mostraram, por exemplo, os gastos deficitários de quase R$ 700 bilhões arrancados quase à força do ultraneoliberal Paulo Guedes,   em 2.020, como medida de emergência para combater a Covid. Eles, efetivamente, não geraram inflação relevante em 2.021 e 2.022. De forma similar, embora com maior presteza, Lula está  forçando o Congresso comandado pelo Centrâo (ou simplesmente fisiológico) a acompanhá-lo nas medidas provisórias que estão dando amparo legal à aplicação de recursos federais para ajuda aos gaúchos e aos estados vítimas das queimadas. É claro que os montantes liberados são insuficientes  diante dos  custos estimados de reconstrução, sendo que o próprio Governo estadual, e provavelmente a maioria dos 463 municípios arrasados, não poderão contribuir em nada para diminuí-los.    Na prática, isso afetará também o orçamento primário federal de 2.025, cuja previsão de equilíbrio fiscal exigiu um corte, ainda no corrente ano, da ordem de R$ 15,5 bilhões, para que fosse enquadrado na regra de déficit zero ou de, no máximo,  de desvio de 0,25% do PIB para cima ou para baixo.  Com a tragédia no Sul, sua realização no próximo ano ficou comprometida  e terá de incorporar,  além das despesas de emergência na ajuda ao Estado, os custos de reconstrução e de prevenção que o Governo estadual, virtualmente falido, não conseguirá suportar, e que o Governo federal terá de assumir.              Entretanto, serão os custos de resposta, reconstrução de infraestrutura e de prevenção de possíveis novos desastres climáticos em todos os Estados, no futuro, que representarão grandes desafios  para o Governo federal e os estados. Até que não se aprove no Congresso uma lei que estenda aos outros estados as mesmas medidas de socorro prestado ao Rio Grande do Sul, todos eles  estão submetidos às mesmas políticas fiscais-monetárias restritivas do orçamento primário, sujeito à ditadura da oligarquia financeira, dos grandes conglomerados industriais  e da tecnocracia estatal que vem se apropriando historicamente do Tesouro público.  Se, no corrente ano, quando ainda estava sendo fixado orçamento primário  para 2.025, o Governo federal viu-se obrigado a cortar a contragosto os gastos de interesse público de R$ 15,5 bilhões a fim de garantir o equilíbrio fiscal, imagine-se quanto terá de cortar na sua execução para pagar essas e outras futuras despesas de reconstrução de  infraestrutura e prevenção de novos desastres, quando a conta dessa e de possivelmente outras despesas  bater às suas portas,  já que os governos estaduais ultraendividados não terão como pagá-los?  Como se viu, até o momento quem está assumindo a conta principal dos desastres no RS é o Governo federal – o que, na verdade, como se verá, é até justo, porque só ele pode emitir moeda. A condição para essa emissão, porém, é que, oriunda de déficit primário, seja aplicada em financiamentos de bons projetos públicos de produção de bens e serviços de uso popular, para manter o custo de vida sob controle. Isso se verá melhor adiante.             Está cientificamente comprovado, e atestado pela realidade, que  mudanças climáticas acompanhadas de desastres extremos continuarão a ocorrer, ciclicamente, em face do aquecimento global provocado principalmente pelo aumento de dióxido de carbono e de metano na atmosfera, de derretimento das geleiras nos polos, no aquecimento das águas dos oceanos. Isso não reverte a curto e médio prazos. Significa que, em todos os níveis de governo,  medidas preventivas devem ser tomadas para segurança da população. O que implicará a mobilização de recursos consideráveis do orçamento primário, que, como já observado, está esmagado sob o orçamento financeiro. Conclui-se daí que, para enfrentar os desafios climáticos futuros, os governos têm que romper os limites da institucionalidade fiscal em que se encontram, diante da evidência de que o orçamento primário não poderá suportar seus custos. A ideia neoliberal de que o orçamento global a União pode ser ajustado mediante cortes sucessivos no primário é simplesmente inviável: no limite, o Estado Social desapareceria, e o investimento público em infraestrutura teria de ser zerado. A compatibilização do orçamento fiscal federal com os custos atuais e futuros que resultam ou resultarão dos desastres climáticos está sendo realizada mediante  medidas legais extraorçamentárias, ou seja, pela liberação de recursos pelo Congresso por fora do “arcabouço fiscal”, agora autorizados pelo STF. Isso resolve o problema contábil de um ponto de vista formal. Contudo, os custos reais existem e têm que ser pagos pelo Governo e pela Sociedade em termos efetivos. Isso só se consegue com o crescimento acelerado do PIB, o que implica uma profunda reforma financeira na economia. Como se verá adiante.   Este texto é o primeiro de uma série de cinco que serão publicados nos próximos domingos, com focos em: política monetária, prevenção de desastres climáticos,  ataque ao Estado nacional e construção de uma nova Sociedade a partir dos APLs.   Foto:  Valter Campanato/Agência Brasil Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia. *Jornalista, economista, doutor em Engenharia de Produção, professor de Economia Política aposentado da UEPb.    

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