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Crucifixos e o STF
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Por EMERSON GIUMBELLI*
No dia 27 de novembro de 2024, encerrou-se no STF o julgamento de um caso que consagrou a seguinte tese, com repercussão geral:
“A presença de símbolos religiosos em prédios públicos, pertencentes a qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, desde que tenha o objetivo de manifestar a tradição cultural da sociedade brasileira, não viola os princípios da não discriminação, da laicidade estatal e da impessoalidade”.
O placar foi expressivo: 11 x 0. Ou seja, todos os ministros afirmaram seu acordo com Cristiano Zanin, o relator do caso. Nove deles fizeram acompanhar seu voto de arrazoados.
Embora a expressão “símbolos religiosos” seja genérica, a situação envolve fundamentalmente a presença de crucifixos em recintos estatais abertos ao público, tais como plenários das sedes de poderes legislativos e salas de tribunais. O próprio plenário do STF está adornado por um crucifixo, tão visível quanto o brasão da república.
Os votos dos ministros, considerados em seu conjunto, passam por várias discussões. Destaco ponto que toma relevância em alguns argumentos: o crucifixo fixado na parede de um tribunal não configuraria uma ação de proselitismo religioso. Dois magistrados lembram que o STF tomou decisões recentes que são contrárias ao uso de recursos públicos para garantir a presença de Bíblias em escolas e bibliotecas públicas, o que, aí sim, seria comprometer o Estado com a propaganda religiosa.
Sem dúvida, a distinção é relevante. Faz sentido também afirmar que a existência de um crucifixo não influencia as decisões judiciais, como mostram os casos em que o STF assumiu posições contrárias àquelas mantidas por igrejas cristãs – exemplos são o uso de células tronco em pesquisas e a permissão de aborto em situações de anencefalia.
Por outro lado, é difícil negar que a presença de crucifixos implica uma deferência ao símbolo de uma religião específica. Exatamente por isso a tese ganhadora exige que o objeto manifeste “a tradição cultural da sociedade brasileira”. Em consequência, lembrar da participação do catolicismo na formação histórica dessa sociedade é um ponto recorrente nos votos.
Contudo, cabe observar que essa participação ocorreu pela própria natureza da colonização, concebida como empreendimento econômico, político e religioso. O Brasil não escolheu ser católico. Foi forjado, inclusive com a ajuda da Inquisição, como Terra da Santa Cruz.
Uma vez independente, o Brasil aí sim escolheu estabelecer certos regimes de relação entre Estado e religião. A primeira Constituição optou por manter o regime anterior, apontando o catolicismo como religião oficial. Mas a segunda Constituição, no início da República, aprovou a separação entre Estado e religiões. Ainda que esse regime de separação tenha sido alterado em diversos pontos, não deixou de ser ratificado em todas as constituições republicanas.
Crucifixos sempre apareceram como um “detalhe” aparentemente insignificante na ornamentação de tribunais e parlamentos. Mesmo com a mudança republicana, mesmo sem qualquer lei que o obrigasse, continuaram a figurar nas paredes ou a compor os “enxovais” de objetos (ao lado de brasões e bandeiras) para novas edificações.
Em outras palavras, predominou o impulso de “deixar tudo como está”, também ratificada pela recente decisão do STF. Em 2007, o Conselho Nacional de Justiça já indicara na mesma direção, em meio a um debate muito mais substantivo do que o atual.
Vale observar que a ação do Ministério Público do Estado de São Paulo que originou o caso considerado pelo STF remonta a 2009. Naquele ano, a proposta original para a terceira edição do Plano Nacional de Direitos Humanos previa, entre suas ações, “desenvolver mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União”. Um pouco antes e um pouco depois, diversas demandas foram apresentadas nesse sentido. Entre 2012 e 2016 teve validade uma decisão do Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), que determinou a retirada de crucifixos e símbolos religiosos dos prédios da Justiça gaúcha.
Mas em 2024 temos um outro quadro. Podemos concordar que o STF tem coisas mais importantes para discutir ou que suas preocupações estão tomadas pelas notícias dos planos que arquitetaram um golpe de Estado em 2022. Considerando-se, no entanto, os votos dos ministros no julgamento, parece haver uma dificuldade de confrontar uma situação de privilégio.
Note-se que há decisões recentes do próprio STF que estão em sintonia com a valorização do pluralismo religioso. Não apenas a já mencionada oposição à compra de Bíblias para escolas e bibliotecas públicas, mas também a permissão para o abate animal em rituais de religiões de matriz africana e para acomodações destinadas a contemplar preceitos religiosos – como é o caso da recusa de transfusões de sangue reivindicada pelos Testemunhas de Jeová.
No entanto, no caso dos símbolos religiosos, predominou o “deixar tudo como está”. A questão é que, enquanto algumas coisas parecem ficar como estão, outras estão mudando. Há demandas sociais – por exemplo aquelas relacionadas aos direitos sexuais – que impõem novos debates. No campo religioso, o catolicismo perde fieis.
Um aspecto importante do julgamento sobre os crucifixos foi a participação, como “amiga da corte”, da Associação Nacional de Juristas Evangélicos. A ANAJURE colocou-se a favor da permissão da presença dos crucifixos, mesmo que estes sejam um símbolo mais propriamente católico. A maioria das igrejas evangélicas prefere apenas a cruz como representação do cristianismo.
Nesse caso, diferenças religiosas estariam sendo deixadas de lado em prol do argumento, que vem sendo articulado a propósito de outras questões, da “maioria cristã”. Ou será que atores evangélicos, ao apoiar uma causa católica, estariam vislumbrando um benefício mais direto no futuro? Por exemplo, a reconsideração de decisões que envolvem a Bíblia?
Em outro cenário, que retomaria as iniciativas que tivemos há cerca de 15 anos, a discussão sobre os crucifixos receberia a devida atenção, tornando-a relevante. Poderia se formar na sociedade brasileira uma opinião consistente de que sua presença em tribunais e parlamentos constitui um desrespeito ao princípio do pluralismo?
Já que entramos no terreno das conjecturas, peço licença para apresentar três breves peças de ficção. As personagens e situações são todas inventadas, mas elas colocam em jogo algumas das questões que cercam exatamente a valorização do pluralismo. Espero que as provocações compensem a pobreza da literatura.
O retrato de Mateus
A situação o intrigara. Na escrivaninha da mãe, o porta retrato estampava uma foto do irmão.
Mateus era temporão. Marcos nascera pouco tempo depois que seus pais haviam se casado. Já Mateus mal conhecera o pai, morto em um acidente quando o caçula tinha apenas dois anos. A mãe não se casara novamente. Dividia o trabalho com a atenção aos filhos. Mateus estava com 12 anos. O irmão tinha 21 anos e ainda morava na casa da família.
Durante o almoço, Mateus puxou o assunto:
- Mãe, você gosta de mim do mesmo jeito que gosta do Marcos?
- Claro! Por que essa pergunta agora?
- É que na sua escrivaninha só tem foto do Marcos...
- Sério? Nem havia me dado conta...
- Sim, acho que já tá lá faz um tempo...
- Por favor, Mateus, não se chateie. Nem sei explicar... É uma foto do Marcos quando ele era adolescente, não é? Sei lá, talvez seja um jeito de lembrar dessa fase da vida dele...
- Agora eu é que sou adolescente, né mãe?
- Meio adolescente, meio criança, né Mateus?
- Bom, mas você bem que podia colocar uma foto minha ao lado da foto do Marcos...
- É que, se eu colocar mais um porta retrato, vai ficar apertado para eu trabalhar. Sabe como eu preciso espalhar minha papelada...
- E se a gente fizesse uma foto juntos, eu e Marcos, para colocar no porta retrato?
- Já temos uma foto assim na sala aí do lado, né? É que eu gosto de ter aquela foto por perto, seu irmão na adolescência. Me traz boas lembranças! E não interfere em nada no carinho que eu sinto por você!
- Mas é estranho ter só a foto do Marcos perto de você quando trabalha, mãe...
- Me desculpe, Mateus, mas não tinha percebido que você podia não achar legal.
- Adoro meu irmão, mãe. Mas aquela foto faz parecer que você gosta mais dele do que de mim...
- Entendi... Vamos fazer o seguinte, Mateus: vou tirar o porta retrato de minha escrivaninha e guardar a foto na gaveta. A gente escolhe uma outra foto da família e acha um lugar melhor para esse porta retrato. Assim sobra mais espaço para eu trabalhar! Que tal?
- Demorô!
Católicos Direitos
Mais um dia de trabalho para Justino, juiz de Direito. Em seu gabinete, o juiz recebeu um representante dos Católicos Direitos, grupo que ele desconhecia.
- Em que posso ajudá-lo, senhor...
- Miguel! Meu grupo pediu que eu conversasse com o senhor.
- Pois não, Miguel...
- O senhor sabe que há um crucifixo na parede do tribunal onde ocorrem as sessões aqui do juizado...
- Sim, tá lá há um bom tempo. Quando cheguei aqui, já o encontrei na parede.
- Pois então, sr. Justino, eu e meu grupo gostaríamos que o senhor nos instruísse a fazer uma petição para a retirada do crucifixo da sala do tribunal...
- Não estou entendendo... Vocês não são católicos? Vocês não defendem os direitos dos católicos?
- Exatamente! Para nós, o crucifixo é um objeto religioso! E aqui não é um ambiente religioso. Meus filhos estudam em uma escola católica e eu até poderia ver se a escola aceitaria receber esse crucifixo aí do tribunal...
- Não sei se a coisa é tão fácil... De todo modo, o crucifixo não está aqui no tribunal por ser um objeto de devoção. É mais para sinalizar a formação da sociedade brasileira. Nossa nação começou com uma missa...
- Eu e meu grupo sabemos muito bem disso. A par da devoção, valorizamos muito as expressões culturais católicas. Algumas das igrejas aqui da cidade são protegidas pelo patrimônio histórico e achamos isso muito justo. Temos os feriados religiosos, todos estão ligados à nossa religião. A maioria das escolas é católica e ali as crianças aprendem sobre a religião e sua importância cultural. Algumas delas podem vir a ser magistrados, como o senhor...
- Realmente, foi o meu caso, estudei a vida toda em escolas católicas. Hoje estou afastado da religião. Mesmo assim, embora eu me oriente pelas leis de nosso país, acredito que a imagem de Jesus até me ilumine em minhas decisões...
- Essa iluminação o senhor vai encontrar em uma igreja. Voltando ao aspecto cultural, não vejo bem qual é a importância do crucifixo aí da sala. Ele tem algum valor artístico? Qual a história desse objeto? Para nós, ele tem a mesma aparência de um objeto de devoção, não difere em nada do que vemos em uma igreja.
- Atenção, sr. Miguel, tem outros símbolos aqui no tribunal... Tá meio escondida ali na fachada, mas há uma imagem da deusa Têmis, divindade pagã...
- Aí é diferente, sr. Justino. Até onde sei, não existe hoje em dia, aqui no Brasil, culto a essa deusa. Se fosse uma imagem de Oxalá, aí sim estaríamos fazendo um paralelo adequado. Nesse caso, como católico, não concordaria em entrar em um tribunal e me deparar com uma imagem de Oxalá.
- Ok, sr. Miguel. O problema é que nem sei como orientá-lo... Nunca imaginava que um dia viria alguém aqui, em nome de um grupo católico, para pedir a retirada de um crucifixo. Vou ter que me informar...
- Eu lhe agradeço, sr. Justino. É exatamente porque somos católicos que queremos fazer essa petição de retirada. Cada coisa no seu lugar. Aguardamos um retorno de sua parte. Bom trabalho!
Xangô na Assembleia
O clima no plenário da Assembleia Legislativa era de expectativa. A ialorixá Ana de Iemanjá era aguardada na cerimônia em sua homenagem, proposta por um dos deputados da casa. As atividades culturais e sociais de seu terreiro, mantidas com regularidade ao longo de décadas, justificavam a iniciativa. Já dirigida a lideranças de outras religiões, a homenagem seria feita pela primeira vez a uma sacerdotisa do candomblé.
Com algum atraso, chegou Mãe Ana com sua comitiva. Sua presença era incontornável aos olhos de todos. Paramentada com suas vestes religiosas, seu ojá azul se destacava entre os ternos que a maioria vestia. Não foi sem alguma dificuldade que Mãe Ana atravessou o corredor central do plenário. O motivo: trazia em seus braços uma grande tela com a imagem de Xangô.
A tela fora encomendada especialmente para aquela ocasião. Xangô estava representado por um homem negro que demonstrava muita força. Suas vestes eram vermelhas e em suas mãos havia um machado. Os gestos poderiam ser os de um dançarino.
Mãe Ana foi se aproximando da tribuna, mas em vez de parar ali seguiu até o fundo da sala. Bem embaixo de onde havia um crucifixo, encostou a tela na parede.
O presidente da sessão imediatamente interpelou a ialorixá: Sra. Ana, o que é esse quadro?
- É Xangô, sr. deputado! Orixá que se encarrega da justiça. É um presente para a Assembleia. Gostaria que o quadro ficasse ao lado daquela cruz com Jesus.
- Como membro da casa, agradeço o presente, Mãe Ana. Mas teremos que discutir onde colocaremos essa tela...
- Mas é só o Cristo que pode?
- Vou explicar, Mãe Ana: o crucifixo representa a tradição cultural da sociedade brasileira. É uma questão histórica, sobre a formação do Brasil.
- Mas minha religião é também parte dessa história! Meus ancestrais foram trazidos à força desde a época dos 1500. Os que sobreviveram não esqueceram de suas tradições. Deram um jeito de mantê-las, mesmo debaixo de proibições.
- Claro, Mãe Ana, não queremos desrespeitar sua religião...
- Pois bem, então se entenda aí com seus colegas e providencie um lugar digno para o quadro de meu Xangô. Não tenho nada contra o Cristo, desde que não queiram pintá-lo de branco. Tenho estudo e sei que loiro de olhos azuis ele não podia ser.
- Esse Cristo nem cor tem...
- Alguma cor tem que ter... Olha só o vermelho do Xangô. Vai ficar vistoso nessa parede. Tem bastante espaço aí, sr. deputado.
- É que não se pensou em ter outros símbolos em nosso plenário... Como lhe disse, vamos ter que discutir.
- Que discutam! Enquanto eu estiver recebendo a homenagem, o quadro fica aqui onde deixei. Estou pronta para começar!
*Emerson Giumbelli é professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Foto de capa: Marcello Casal JrAgência Brasil
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