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DIANTE DAS ENCHENTES, DA SECA E DO FOGO, DINO SALVA O PAÍS DA SÍNDROME DO  FISCALSMO

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DIANTE DAS ENCHENTES, DA SECA E DO FOGO, DINO SALVA O PAÍS DA SÍNDROME DO FISCALSMO
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Por CARLOS DE ASSIS* DESASTRES CLIMÁTICOS E POLÍTICA FISCAL Tenho insistido recorrentemente que o sistema fiscal-monetário brasileiro, tal como expresso na Lei de Responsabilidade Fiscal de 2.000 e sintetizado no “arcabouço” de Fernando Hadad de 2.023, é incompatível com a necessidade de financiamentos do setor público para enfrentar os efeitos da Era de desastres climáticos extremos. Isso acaba de ser reconhecido pelo ministro Fábio Dino, do Supremo Tribunal Federal, ao autorizar que o Executivo recorra a créditos extra orçamentários para o enfrentamento, a adaptação e a prevenção dessas tragédias. A decisão foi referenda pela ministro-chefe da Advocacia Geral da União, Jorge Messias, que a considerou pertinente e muito “corajosa”. Entretanto, essa decisão do ministro Dino, embora estabeleça um necessário marco legal para gastos primários acima da meta fiscal de equilíbrio orçamentário, não enfrenta o problema da conexão entre esse déficit, o conjunto da Economia e os objetivos de desenvolvimento sustentável – portanto, com estabilidade inflacionária – justificadamente perseguidos pelo Brasil. Isso será tratado na segunda de cinco partes deste texto, a qual será publicada nos próximos domingos  com foco especialmente na política monetária, complementando essa primeira, dedicada à política fiscal. O sistema fiscal-monetário brasileiro apoia-se em boa parte, ainda hoje, na criação pelo Banco Central, em 1.979, do  Selic (Sistema de Liquidação e Custódia), como base de suas operações no mercado aberto. O propósito era evitar a dolarização da economia no contexto de uma situação hiperinflacionária. Foi o jeito brasileiro de superar, a curto prazo,  a desconfiança do mercado na política monetária. Entretanto, tendo sobrevivido à Constituição de 1.988  e à Lei de Responsabilidade Fiscal de 2.000, e mesmo com a inflação razoavelmente controlada, a taxa Selic foi mantida e passou a ser um dos fatores de maior distorção da política fiscal-monetária do País. Fixada em intervalos de 45 dias e  alinhada diariamente à meta estabelecida para ela, a taxa Selic, como principal instrumento de controle da liquidez e da inflação pelo Bacen,  tem forte viés inflacionário, pois baseia-se sobretudo em expectativas subjetivas dos diretores do Bacen e do próprio mercado financeiro (Boletim Focus), cujo interesse maior é aumentá-la e mantê-la em níveis elevados. Dessa forma, avança à frente do IPCA do IBGE, e, estendendo-se além do mercado aberto, funciona como um indexador geral de quase toda a economia, em especial da Dívida Pública. Assim, é um dos motivos para que o serviço da Dívida tenda a explodir ano a ano. Isso constituiria um grande desafio para o Brasil em qualquer tempo, mas está se tornando ma ameaça sem precedentes na era dos desastres climáticos extremos. É que, tendo se amarrado dentro de uma institucionalidade fiscal que lhe deixa pouca margem de manobra para atender as necessidades mínimas do povo, que são inscritas no orçamento primário dos entes públicos, estados como o Rio Grande do Sul, sujeito às maiores enchentes e alagamentos de sua história, e os integrantes de praticamente todos os biomas brasileiros, arrasados por secas e incêndios devastadores, estão se tornando fiscal e financeiramente inviáveis. O RS, por exemplo, só escapou da derrocada  absoluta  e da inviabilidade econômica se o Governo, para salvar o Estado, não tivesse negociado com o Congresso, primeiro, o congelamento de sua dívida e do pagamento dos juros por três anos, representando um montante de R$ 23 bilhões; e, posteriormente,   a aprovação por medida provisória de crédito extraordinário, no valor de R$ 1,828 bilhão, fora do “arcabouço fiscal”, para ações de apoio e de reconstrução no Estado. Contudo, esses valores são insignificantes diante da extensão da tragédia. Segundo estudo divulgado em junho pela Federasul (Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul),  os danos causados por  enchentes e alagamentos na infraestrutura econômica do Estado - portanto, sem considerar as perdas em vidas humanas, mais de 100, e com desabrigados e desalojados -, estão sendo calculados em cerca R$ 176 bilhões. Já o governador Eduardo Leite estima  prejuízo ainda maior, de cerca de R$ 200 bilhões. Diante disso, fica claro que todo o orçamento do Estado, fixado para 2.025 em R$ 80,3 bilhões, não cobre sequer metade desse prejuízo. Governo federal, sempre obtendo do Congresso autorização para escapar do “arcabouço fiscal” em que se meteu,  iniciou ainda no início de maio um programa rápido e eficaz de ajuda ao Estado, começando  com recursos para assistência imediata às famílias atingidas no montante de R$ 11 bilhões, evoluindo   para cerca de R$ 78 bilhões em fins de maio e início de junho, destinados a reconstrução. O total dessa ajuda para um único não tem precedentes na história da República. Sem ela, só sobraria para no orçamento primário do Estado, fixado em R$ 83 bilhões para o próximo ano, R$ 5 bilhões para realização de todas as suas funções. São números que  mostram que, sem ajuda federal, e considerando o que exige dos entes federativos a Lei de Responsabilidade Fiscal, ou seja, déficit zero ou mínimo (0,25% para mais ou para menos), o Rio Grande do Sul está mais que inviabilizado financeiramente e em total bancarrota. Assim,  pelo menos nesse Estado e na maioria dos atingidos por desastres extremos, a LRF está morta.  Tudo indica que estará morta também na própria União, na medida em que forem computados os danos financeiros causados pelas queimadas sem precedentes e por futuros desastres climáticos no resto do território nacional – o que vem sendo previsto recorrentemente pela Ciência e comprovado pela experiência. Desastres climáticos não são apenas enchentes e alagamento que destroem a infraestrutura das regiões atingidas, como se viu dramaticamente no RS. A imensa dimensão do País, dividido em cinco biomas com características diferentes, implica variações no clima que vão desde as enchentes no Sul até as secas e incêndios prolongados na Amazônia, no Pantanal, no Leste e no Centro-Oeste.  Diferente é o impacto que isso provoca no orçamento público. O primeiro diz respeito ao necessário e imediato socorro às famílias atingidas, que não podem esperar muito tempo pela assistência social do governo. O impacto seguinte recai principalmente   na reconstrução da infraestrutura, da logística e do patrimônio estatal. Especialmente quando seus efeitos são dramatizados pela mídia, provocando comoção nacional, como no caso gaúcho e das queimadas. Nos grandes incêndios em áreas privadas e de proteção ambiental, embora igualmente dramáticos, o impacto fiscal pode ser menor, pois afeta principalmente o patrimônio estatal. Finalmente, no caso das secas, os custos materiais principais costumam ser absorvidos pelo próprio setor privado, quando não há pressão política para auxílio, ao menos, das vítimas humanas. Independentemente de sua dimensão, o impacto orçamentário das tragédias climáticas exige respostas fiscais. A pior delas é insistir no fetiche do equilíbrio do orçamento primário, no qual as despesas de fundamental interesse público do Estado, fixadas previamente no projeto de Lei Orçamentária Anual, são confrontadas com as despesas financeiras, que, constitucionalmente – devido a uma fraude que será explicada adiante – não tem limites legais. Dessa forma, para assegurar o déficit fiscal zero, o Governo tem adotar cortes recorrentes no orçamento primário. É disso que a decisão de Flávio Dino livrou o Executivo. O Governo do Rio Grande do Sul, como os demais estados, está submetido às mesmas regras fiscais-monetárias estabelecidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal de 2.000, editada por Fernando Henrique Cardoso, e, antes dela, pela Constituição neoliberal de 1.988. Não tem a menor possibilidade de cumpri-las. O Estado está virtualmente quebrado nos termos dessa institucionalidade. Só existe por subvenção do Governo federal, que lhe garantiu, para enfrentar os desastres de maio e junho, cerca de R$ 77 bilhões, contra um orçamento estadual de R$ 83 bilhões para o próximo ano. E está previsto que lhe serão repassados ainda mais recursos federais. É fato que o RS é particularmente vulnerável a desastres climáticos. O Estado encontra-se numa região de anticiclone e em sua costa há duas correntes marítimas extremamente violentas: a Tropical Brasileira e a das Malvinas. O litoral  é contínuo e sem acidentes. As correntes marítimas impedem os rios de desaguarem diretamente no mar. Só há saídas para enchentes no Rio Uruguai e na Lagoa dos Patos. Como a região é de anticiclone, o mar é instável. E as chuvas são contínuas ao longo de todo o ano. Com o desmatamento da Amazônia, a instabilidade pluviométrica aumenta. Dessa forma, novos desastres na região são previsíveis. Isso, entretanto, era muito bem conhecido das autoridades gaúchas, que se omitiram, como o governo Bolsonaro e a maioria quase absoluta de governadores e prefeitos, quanto à prevenção dos desastres na era das variações climáticas extremas.  De 2.023 a 2.024, o Rio Grande do Sul empenhou apenas R$ 579 milhões em valores correntes para o enfrentamento de desastres naturais em diversas frentes.  O orçamento estadual da Defesa Civil  para 2.022 ficou em R$ 10 milhões, chegou  a R$ 118 milhões em 2023, caindo para R$ 109 milhões previstos para 2024. No  Brasil como um todo, segundo o TCU, entre 2.010 e 2.024 (até maio) – portanto,  ao longo de quase 14 anos – foram autorizados somente R$ 70 bilhões no orçamento da União, em termos reais, para enfrentamento dos desafios climáticos. Assim mesmo, só foram efetivamente gastos 65% dele. No período 2.012 a 2.023, neste último caso já considerando as medidas de ajuste negociadas com o Congresso para a transição de governo, os valores programado e sua realização efetiva não diferiram muito, proporcionalmente, do período anterior, evoluindo de R$ 33,75 bilhões previstos para R$  21,79 bilhões realizados. Note-se, com isso, que o País não tem apenas um problema de valores dos orçamentos de prevenção de desastres extremos; tem, também, um problema de eficiência na sua utilização. De qualquer forma, porém, o ponto de partida crucial sempre será a questão do financiamento das ações dos governos em termos de resposta rápida, reconstrução e prevenção das tragédias. E para isso não há uma solução apenas privada: o Governo federal, os governos estaduais e os municípios terão de encontrar meios para defender a vida e as condições de existência das populações atingidas pelos desastres, assim como para reconstruir a infraestrutura. Pelos dados mencionados acima, não existia até pouco tempo uma consciência no País da dimensão dos efeitos das mudanças climáticas. Isso necessariamente terá de mudar, diante de suas consequências efetivas. Mas também no plano político essa pedagogia dos desastres e das respostas dadas a elas tem que funcionar, quando menos para dar ênfase  ao  cinismo neoliberal diante delas: o deputado Aécio Neves, por exemplo, prócer do PSDB,  apontou como demagógicas as medidas que Lula adotou logo depois da tragédia no Sul. Foi quase imediatamente desmentido, na prática, pelas ações de socorro que o Presidente teve de dar ao Estado em fases posteriores. Se o governador Eduardo Leite estiver certo na sua estimativa de que os custos totais da tragédia gaúcha poderão atingir R$ 200 bilhões, o déficit público estadual  em 2.025, que inclui  R$ 162 milhões já previsto oficialmente, deve igualar a duas vezes e meia todo o orçamento – excluindo-se prejuízos e custos da parte de reconstrução do próprio setor privado. Nessa hipótese, o RS não poderá sobreviver como um estado fiscalmente independente dentro da institucionalidade fiscal-monetária brasileira, cuja premissa básica, expressa na Lei de LRF e replicada no “arcabouço” de Fernando Haddad, é o déficit zero ou mínimo (0,25% do PIB para mais ou para menos) no orçamento primário – que a ideologia antiestatizante dos privatistas radicais exige na mídia, mas que o setor privado real jamais assumiria como responsabilidade dele. Estamos falando de um estado e de uma tragédia climática. Há 26 estados e o Distrito Federal no Brasil e dezenas de tragédias climáticas que ocorreram nos últimos anos e que estão ocorrendo na maioria deles, com imensos prejuízos humanos e materiais. Por certo que o desastre recente no Rio Grande do Sul foi de uma escala sem precedentes. O Estado, como visto, é propício a  variações climáticas extremas, e portando  nem todo o País estaria condenado a vivenciar situações semelhantes. Entretanto, tragédias climáticas de custos astronômicos não se limitam a determinadas regiões ou a tipos específicos: secas no Nordeste, em fins de 2.023, causaram custos estimados em R$ 150 bilhões, especialmente na agropecuária. Tomando por base a recorrência de grandes tragédias climáticas no Brasil apenas nos últimos 10 anos, e incluindo secas e incêndios além de enchentes e alagamentos, houve desastres no Estado do Rio de Janeiro  (2.010, com 231 mortos e 5 mil desalojados), Região Serrana, também no RJ (2.011, com 916 mortos), Pantanal (2.011, 17 milhões de animais mortos em incêndios), Minas Gerais (2.020, 90 mil mortos), Petrópolis, RJ (2.022, 241 mortos), Nordeste (2.022, seca prolongada em Pernambuco e Alagoas). Portanto, a probabilidade de mais casos é muito alta. Sabemos que é impossível evitar ou  enfrentar diretamente essas tragédias longamente anunciadas pela Ciência. O melhor que podemos fazer é recorrer a medidas preventivas e nos adaptar a elas, ao menor custo humano e material possível. Não se trata de uma questão que possa ser resolvida de forma convencional pelos poderes públicos. É que não estamos diante de um problema convencional, mas de um desafio que pode nos acompanhar por anos e décadas à frente, o que justifica que lhe seja dada absoluta prioridade nos orçamentos governamentais. Isso custará muita atenção, muito planejamento e muito dinheiro. Porém, não há saída a não ser uma mudança profunda na política fiscal, violando velhos fetiches e preconceitos. Tomando por base o que tem ocorrido no RS e projetados com realismo para o futuro, os recursos que serão necessários para enfrentar – melhor dizendo, para nos adaptar – aos desastres climáticos extremos, considerando ações indispensáveis de resposta rápida, reconstrução e prevenção,  de forma alguma caberão  nos orçamentos primários dos entes públicos atingidos, o que implica a reforma radical sugerida como nova política econômica que descarte a aplicação do  “equilíbrio fiscal” na forma sumária determinada pela Constituição, e  reforçada em detalhes pela LRF. A essência do desafio constitui em extinguir a regra do orçamento primário  equilibrado a qualquer custo, substituindo-a por  outra, através de emenda constitucional, que concilie a política fiscal com crescimento econômico a altas taxas e com inflação estabilizada, em confronto com os fetiches do neoliberalismo econômico. Os gastos públicos terão de ter algum limite, mas os limites devem obedecer a critérios inteligentes e compatíveis com os interesses da Sociedade, em especial dos setores mais vulneráveis dela. O fetiche de que déficits orçamentários  produzem sempre  ou evitam queda da inflação é comum entre  economistas ditos “ortodoxos”, e se espalhou pelo mundo após as crises de dívida externa dos países em desenvolvimento nos anos 1.980. Para “ajudar” os países endividados a pagar suas dívidas externas, o governo dos Estados Unidos exigiu dos devedores a desestatização e  privatização das empresas públicas, enquanto  o  FMI lhes impôs políticas fiscais e monetárias extremamente restritivas, hoje chamadas neoliberais. As metas perseguidas eram gerar superávits comerciais com o exterior e, internamente, combater a inflação e mantê-la baixa. Na prática das negociações, o Fundo, exercendo o papel que os antigos chargistas brasileiros chamavam de “o amigo da onça”, atraía o Brasil com uma taxa de juros relativamente baixa nos seus empréstimos, que cobriam apenas parte do financiamento da dívida, e o entregava às garras leoninas do sistema bancário internacional privado, para que completassem, com taxas de juros extorsivas,  os recursos restantes para o financiamento global da dívida. Com isso, iniciou-se o processo que levaria à globalização e à hipertrofia do sistema financeiro do País. Acovardados diante do poder econômico dos banqueiros, acolitados estes pela proteção política do Governo norte-americano, nossas autoridades, notavelmente o presidente Fernando Henrique Cardoso e seu negociador Pedro Malan, se curvaram às imposições dos credores e aceitaram que nos impusessem  um acordo, em 1.997, com títulos financeiros “podres” (Brady) que nos exigiram descontos vergonhosos de até 30% do valor de face. Esses títulos foram aceitos para privatização das estatais, como a Vale do Rio Doce, vendida por R$ 3 bilhões, e cujos lucros, já no primeiro ano sob controle privado, alcançaram mais de R$ 10 bilhões – sem falar em seu patrimônio, estimado na época em R$ 300 bilhões!   Com imensos sacrifícios para o País e para os trabalhadores, refletidos nas menores taxas de crescimento econômico e nos menores salários reais em décadas, especialmente depois do Plano Real e da Lei de Responsabilidade Fiscal, vimos fazendo equilíbrio ou até superávits fiscais nos orçamentos anuais, cortando recursos destinados ao orçamento primário, ou seja, às despesas públicas de maior interesse para a população, em favor do orçamento financeiro – para o qual, sintomaticamente, não há limites, graças a uma deformação da Constituição de 88 a ser esclarecida adiante. Dessa forma, estreita-se cada vez mais a margem para gastos primários e de investimentos públicos essenciais para o povo, enquanto se prevê, já para o próximo ano, incluindo a carteira do Bacen, um estoque da Dívida Pública Federal de R$ 9,514 trilhões. Os juros computados estão subestimados. O custo médio anual da dívida nos últimos 12 meses é de 10,10%, o que poderá  gerar no final de 2024 o provável pagamento dos juros de mais de R$ 1 trilhão. Isso é quase metade do orçamento primário previsto de R$ 2,222 trilhões e se deve,  sobretudo, à deformação de um mercado aberto que desvia da produção para a especulação grande parte dos recursos financeiros que giram na economia.   Diz-se que o equilíbrio fiscal garante o desenvolvimento sustentável, com estabilidade inflacionária da economia.  Isso, felizmente, é falso. Se fosse verdadeiro, não teríamos chances de retomar o crescimento econômico a altas taxas diante de situações que exigem grandes déficits fiscais, como no momento. De fato, a despeito de suas recorrentes declarações até o início do ano de que garantiria o equilíbrio  orçamentário a qualquer custo, atendendo ao “mercado”, o presidente Lula, diante do fato concreto da tragédia no RS, não se furtou a quebrar sua promessa e lhe dar uma resposta rápida, diante de uma questão humanitária que comoveu todo o País. O Presidente seguiu o que determinou sua consciência e, passando por cima de interesses das oligarquias financeiras e de seus asseclas ideológicos no “mercado” e na aristocracia do próprio Governo, na mídia e na política, está violando de forma pragmática a ideologia do equilíbrio fiscal a qualquer custo, apelando para medidas extraordinárias negociadas com o Congresso, agora com apoio do STF, que contornem o “arcabouço fiscal”.  Sabidamente, ele  não é um acadêmico. É conduzido especialmente pelo coração. Nessa trilha, como nos mandatos anteriores,  vai no caminho certo. O “arcabouço fiscal” foi um desvio para viabilizar politicamente  a difícil transição de Bolsonaro para uma regime de esperança. Terá de ser refeito diante dos fatos. Assim, em face do risco objetivo apontado pela Ciência e pela experiência  para sobrevivência da própria humanidade com as mudanças climáticas provocadas pelo próprio homem,    fica claro que nenhuma ideologia pode se superpor,  na prática,  a ações concretas de adaptação à nova Era. Nesse contexto, defender o  equilíbrio no orçamento fiscal, em nome de uma suposta “austeridade”, só teria sentido se fosse para cortar despesas financeiras, deixando a margem necessária para nos adaptar  aos inevitáveis desastres climáticos do futuro. Do contrário, naufragaremos todos no “austericídio” fiscal. A receita fiscal neoliberal, como visto, sustenta que, para ter crescimento econômico com estabilidade inflacionária, é preciso equilibrar o orçamento primário. Na era dos desastres climáticos extremos, isso é um contracenso. O orçamento fiscal primário é onde se contabilizam, entre outras despesas de interesse público, os custos devidos aos desastres climáticos. Se for preciso equilibrar o orçamento global, é preciso cortar no financeiro, a fim de abrir margem para o crescimento do primário. Acontece que o orçamento financeiro é intocável, conforme nossa Constituição neoliberal determina.  Assim,   só no plano  ideológico pode-se conciliar equilíbrio ou superávit primário, estabilidade monetária e crescimento econômico.   Com os desastres no Sul, e seus custos,  o Presidente tomou um rumo duplamente certo. Primeiro porque, diante de tragédias humanitárias, o Estado, independentemente de ideologias, tem de agir para socorrer suas vítimas humanas e materiais; segundo, e isso é essencial, déficit primário não necessariamente causa inflação, como disse antes. É o que de fato mostraram, por exemplo, os gastos deficitários de quase R$ 700 bilhões arrancados quase à força do ultraneoliberal Paulo Guedes,   em 2.020, como medida de emergência para combater a Covid. Eles, efetivamente, não geraram inflação relevante em 2.021 e 2.022. De forma similar, embora com maior presteza, Lula está  forçando o Congresso comandado pelo Centrâo (ou simplesmente fisiológico) a acompanhá-lo nas medidas provisórias que estão dando amparo legal à aplicação de recursos federais para ajuda aos gaúchos e aos estados vítimas das queimadas. É claro que os montantes liberados são insuficientes  diante dos  custos estimados de reconstrução, sendo que o próprio Governo estadual, e provavelmente a maioria dos 463 municípios arrasados, não poderão contribuir em nada para diminuí-los.    Na prática, isso afetará também o orçamento primário federal de 2.025, cuja previsão de equilíbrio fiscal exigiu um corte, ainda no corrente ano, da ordem de R$ 15,5 bilhões, para que fosse enquadrado na regra de déficit zero ou de, no máximo,  de desvio de 0,25% do PIB para cima ou para baixo.  Com a tragédia no Sul, sua realização no próximo ano ficou comprometida  e terá de incorporar,  além das despesas de emergência na ajuda ao Estado, os custos de reconstrução e de prevenção que o Governo estadual, virtualmente falido, não conseguirá suportar, e que o Governo federal terá de assumir.              Entretanto, serão os custos de resposta, reconstrução de infraestrutura e de prevenção de possíveis novos desastres climáticos em todos os Estados, no futuro, que representarão grandes desafios  para o Governo federal e os estados. Até que não se aprove no Congresso uma lei que estenda aos outros estados as mesmas medidas de socorro prestado ao Rio Grande do Sul, todos eles  estão submetidos às mesmas políticas fiscais-monetárias restritivas do orçamento primário, sujeito à ditadura da oligarquia financeira, dos grandes conglomerados industriais  e da tecnocracia estatal que vem se apropriando historicamente do Tesouro público.  Se, no corrente ano, quando ainda estava sendo fixado orçamento primário  para 2.025, o Governo federal viu-se obrigado a cortar a contragosto os gastos de interesse público de R$ 15,5 bilhões a fim de garantir o equilíbrio fiscal, imagine-se quanto terá de cortar na sua execução para pagar essas e outras futuras despesas de reconstrução de  infraestrutura e prevenção de novos desastres, quando a conta dessa e de possivelmente outras despesas  bater às suas portas,  já que os governos estaduais ultraendividados não terão como pagá-los?  Como se viu, até o momento quem está assumindo a conta principal dos desastres no RS é o Governo federal – o que, na verdade, como se verá, é até justo, porque só ele pode emitir moeda. A condição para essa emissão, porém, é que, oriunda de déficit primário, seja aplicada em financiamentos de bons projetos públicos de produção de bens e serviços de uso popular, para manter o custo de vida sob controle. Isso se verá melhor adiante.             Está cientificamente comprovado, e atestado pela realidade, que  mudanças climáticas acompanhadas de desastres extremos continuarão a ocorrer, ciclicamente, em face do aquecimento global provocado principalmente pelo aumento de dióxido de carbono e de metano na atmosfera, de derretimento das geleiras nos polos, no aquecimento das águas dos oceanos. Isso não reverte a curto e médio prazos. Significa que, em todos os níveis de governo,  medidas preventivas devem ser tomadas para segurança da população. O que implicará a mobilização de recursos consideráveis do orçamento primário, que, como já observado, está esmagado sob o orçamento financeiro. Conclui-se daí que, para enfrentar os desafios climáticos futuros, os governos têm que romper os limites da institucionalidade fiscal em que se encontram, diante da evidência de que o orçamento primário não poderá suportar seus custos. A ideia neoliberal de que o orçamento global a União pode ser ajustado mediante cortes sucessivos no primário é simplesmente inviável: no limite, o Estado Social desapareceria, e o investimento público em infraestrutura teria de ser zerado. A compatibilização do orçamento fiscal federal com os custos atuais e futuros que resultam ou resultarão dos desastres climáticos está sendo realizada mediante  medidas legais extraorçamentárias, ou seja, pela liberação de recursos pelo Congresso por fora do “arcabouço fiscal”, agora autorizados pelo STF. Isso resolve o problema contábil de um ponto de vista formal. Contudo, os custos reais existem e têm que ser pagos pelo Governo e pela Sociedade em termos efetivos. Isso só se consegue com o crescimento acelerado do PIB, o que implica uma profunda reforma financeira na economia. Como se verá adiante.   Este texto é o primeiro de uma série de cinco que serão publicados nos próximos domingos, com focos em: política monetária, prevenção de desastres climáticos,  ataque ao Estado nacional e construção de uma nova Sociedade a partir dos APLs.   Foto:  Valter Campanato/Agência Brasil Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia. *Jornalista, economista, doutor em Engenharia de Produção, professor de Economia Política aposentado da UEPb.    

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Água, Fogo e Inércia: Lula e a Distopia Climática

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Água, Fogo e Inércia: Lula e a Distopia Climática
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Por ANDRÉ MOREIRA CUNHA E ALESSANDRO DONADIO MIEB* O Brasil em Chamas Seca extrema e proliferação de grandes incêndios florestais: o Brasil está em chamas. O Instituto Nacional de Estudos Espaciais (INPE) monitora, por satélite, as queimadas no Brasil. Em 2024, já foram atingidos 224 mil Km2 até o final de agosto, o que equivale a quase o dobro da média histórica (2003-2024) de 137 mil Km2, sempre considerando-se o acumulado dos oito primeiros meses de cada ano. Para o consolidado anual, a média do período 2003-2023 foi de 330 mil Km2/ano. Em termos de ciclos políticos, a média dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (2003-2015) foi de 357 mil Km2/ano; nas gestões Michel Temer e Jair Bolsonaro (2016-2022) atingiu 273 mil Km2/ano; e no primeiro ano do atual governo, ficou em 372 mil Km2. Os incêndios de 2024 têm sido particularmente marcantes, tendo em vista a ocorrência da maior seca no país dos últimos setenta anos. De acordo com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais convive-se com o pior valor do Índice Padronizado de Precipitação e Evapotranspiração desde 1951 e a maior área atingida pela estiagem: 59% do território nacional. Seus efeitos também se fazem sentir na intensa deterioração da qualidade do ar em regiões atingidas ou não, no país e no exterior. Sobre as causas da seca, o INPE registra haver a interveniência de aspectos não diretamente controláveis por políticas públicas locais e nacionais, como o aquecimento global, com outros, que resultam de dinâmicas que poderiam ser objeto de ação governamental, como a expansão da fronteira de exploração econômica em diversos biomas.             O Fogo Incontrolável e a Inércia do Poder O Brasil ainda preserva importante parcela de suas coberturas florestais, primárias (originais) e secundárias (reflorestamento), e de sua biodiversidade, que se constituem em ativos estratégicos. O MapBiomas apurou que as florestas ocupam 58% do território do país. Há importante concentração desse manancial de recursos nas regiões que são mais sensíveis aos fenômenos adversos derivados da elevação das temperaturas médias e o avanço da fronteira econômica. Em relatório recente, a UNEP (United Nations Environment Programme) indica que os grandes incêndios florestais se originam da “... interação complexa de fatores biológicos, meteorológicos, físicos e sociais que influenciam sua probabilidade, comportamento, duração, extensão e resultado (ou seja, gravidade ou impacto).” (p. 8). Os modelos de simulação utilizados sugerem que algumas regiões serão particularmente mais afetadas pela maior incidência desses eventos, dentre as quais o sul da Amazônia, o Ártico e a Indonésia (p.10). Para a UNEP, os governos, isoladamente, possuem pouco controle direto sobre vários dos fatores que influenciam os grandes incêndios, como o aquecimento global ou as secas prolongadas. Ainda assim, poderiam atuar para mitigar seus efeitos e alterar determinados processos sociais, como a exploração econômica de biomas sensíveis. No caso do Brasil, as políticas governamentais das últimas décadas, priorizaram a ocupação do hinterland e a expansão da fronteira econômica da agricultura e da mineração, inclusive em regiões como Serrado, Pantanal e Amazônia. Tal vetor de crescimento une os períodos de ditadura e de democracia, bem como os governos de direita e de esquerda. Não foi diferente nos anos 2000, quando a crise climática ganhou maior relevo.   O Desenvolvimentismo Motoserra No anúncio do Novo PAC, evidenciou-se que a gestão Lula prioriza aspectos estratégicos que também orientaram a ocupação econômica do centro-norte do país desde os governos militares. Os problemas climáticos contemporâneos ou os potenciais positivos da “economia verde” seguem em posições hierarquicamente inferiores na agenda governamental. São priorizadas grandes obras de infraestrutura que, assim como no exemplo da usina hidroelétrica de Belo Monte,  aprofundam os corredores de acesso aos biomas mais sensíveis e expostos, como Pantanal e Amazônia, particularmente: “... a Hidrovia Araguaia-Tocantins e a Ferrogrão, projetadas para o transporte de soja do cerrado brasileiro para portos do Pará e outros estados do Norte, e a pavimentação da BR 319, que liga Rondônia ao Amazonas ...”. A exploração de petróleo na Margem Equatorial Norte reafirma o modelo energético responsável pela emergência da crise climática. As políticas de recuperação e/ou de preservação dos recursos naturais são por demais tímidas. Assim, por exemplo, o “Plano Floresta + Sustentável” tem a meta de plantar 4 milhões de hectares de florestas comerciais até 2030, vale dizer, ou 667 mil hectares/ano. Isso equivale a cerca de 1/3 do desmatamento médio anual do período 2019-2023, conforme relatado pelo RAD 2023 do MapBiomas. Trata-se de um objetivo incompatível com a reversão da trajetória atual de destruição, que está sendo potencializada pelas queimadas recorrentes e mais intensas. Conforme indicamos em artigo anterior, as políticas creditícias e tributárias mantêm os incentivos existentes ao modelo primário-exportador, intensivo na exploração das novas fronteiras para a mineração e a agropecuária. Há abundância de fontes de fomento que não discriminam adequadamente atividades e/ou regiões onde há maior destruição dos ecossistemas. Já os recursos disponibilizados para instrumentos como o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal (Lei nº 11.284/2006), o Fundo Clima (Lei 12.114 em 09/12/2009), ou as captações de títulos verdes, nos marcos do Arcabouço Brasileiro para Títulos Soberanos Sustentáveis, seguem insuficientes. Diante da contundência dos incêndios de 2024, o Ministro da Fazenda admitiu ser necessário colocar o tema no orçamento. Ao ser confrontado com o dilema entre a preservação do equilíbrio fiscal e a necessidade de combater a emergência climática, Fernando Haddad indicou que:  “Se é evento extraordinário que não vai se repetir, você tratar de maneira segregada não me parece que se desvia do foco do arcabouço fiscal ... Agora, se você começar a ter ocorrência cotidiana disso, se isso se tornar despesa recorrente, vai ter que ser feita uma adequação do Orçamento federal.” Trata-se da admissão do óbvio: a questão climática não foi prioritária até aqui e não possui espaço orçamentário adequado.   Um Pacto pelo Futuro ou Mais do Mesmo? A sociedade civil e os governos, em seus diversos níveis, buscam reagir ao agravamento da crise climática. Lideranças empresariais vieram a público, por meio de manifesto, indicar a necessidade de articulação entre os setores público e privado. Essas lideranças assumem ser necessário “... colaborar com o Executivo na estratégia de combate ao desmatamento ilegal e na recuperação de áreas degradadas. Precisamos contribuir com o Legislativo na criação de leis que disciplinem o licenciamento ambiental e protejam as florestas. Precisamos incentivar um Judiciário atuante na defesa do direito constitucional ao meio ambiente ...”. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) defendeu a importância de uma “... resposta imediata, robusta e coordenada entre todos os setores da sociedade e diferentes níveis de governo” por meio de “... ações integradas, envolvendo a prevenção ambiental e o fortalecimento da saúde pública...”. Os governos locais e federais têm sido incitados a agir com maior intensidade no combate aos incêndios por força da intervenção do STF. Esse liberou o uso de créditos extraordinários para o enfrentamento das queimadas, o que motivou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a articular um “pacote de novas medidas”. Nos últimos dias, além de visitar as regiões mais atingidas, o presidente anunciou o desejo de criar “Plano Nacional de Enfrentamento aos Riscos Climáticos Extremos”. Para tanto “... vamos estabelecer uma Autoridade Climática e um Comitê Técnico-Científico que dê suporte e articule a implementação das ações do Governo Federal junto com o governo estadual e junto com as prefeituras.”. Com a força incontrolável da “agenda negativa”, o presidente Lula parece querer se mover com maior força na direção de elevar o status político da temática ambiental. Ao fazer isso, no contexto atual, o governo parece reagir mais às pressões externas, do que por convicção de que a prioridade é necessária. Deixou-se escancarada a inércia do poder, tema explorado pelo jornalista Elio Gaspari, que indicou as razões para o adiamento da criação da Autoridade Climática. Para ele: “Contra a criação dessa entidade militaram dois grupos com interesses quase antagônicos. De um lado estavam os que pretendiam defender o meio ambiente, protegendo seus quadrados de poder na burocracia. De outro, estavam os interessados em preservar um estado de coisas que mantinha a defesa do ambiente no mundo do palavrório. Nenhum dos dois queria a Autoridade Climática. Prevaleceram e continuam detestando a ideia.” Não faltam boas ideias e, possivelmente, intenções ainda melhores por parte de lideranças empresariais e políticas. Todavia, até aqui, os problemas se acumulam de forma mais rápida que as supostas soluções. A equação política não facilita a vida do governo federal. Há importante poder de veto de segmentos da sociedade que “ganham”, pelo menos no curto prazo, com o avanço da fronteira econômica em biomas ainda preservados. O próprio governo federal mira na geração de impostos, empregos e renda com esse prisma imediatista e contribui para manter o status quo. “Agendas positivas” e resultados rápidos são sempre preferíveis aos investimentos no futuro em temas tão complexos como o das mudanças climáticas. O presidente Lula, com a habilidade que lhe é peculiar, conseguiu introduzir elementos novos e importantes na estrutura do Estado brasileiro para valorizar a questão ambiental, a despeito das pressões em contrário. Agora, trata-se de encarar uma realidade ainda mais desafiadora e que não cabe nos arranjos existentes. Para enfrentar os desafios que se colocam não bastam palavras ou novas estruturas estatais. Será necessário reorganizar as políticas públicas e alocar recursos orçamentários em volumes muito maiores, conforme já sinalizamos em artigos anteriores. As estruturas de incentivos fiscais, creditícios bem como os marcos regulatórios devem sofrer revisões no sentido de induzirem, de maneira efetiva, as atividades econômicas sustentáveis e, também, de punirem atividades incompatíveis com o adequado manejo dos recursos ambientais. Cabe o questionamento em relação a capacidade da sociedade brasileira em prosseguir procrastinando o enfrentamento da crise climática. As evidências indicam que, ao longo do século XXI, o país enfrentará crescentes desafios ambientais, com impacto severo sobre a atividade econômica e o bem-estar de sua população. Os espaços para as estratégias de acomodação de interesses conflitantes estão sendo reduzidos pela força das águas e do fogo. *Docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS Foto: Agência BrasilOs artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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ATENTADOS CONTRA A RAZÃO

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ATENTADOS CONTRA A RAZÃO
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De SOLON SALDANHA* Me impressiona como a extrema-direita gosta de sofrer atentados. Seus candidatos parecem atrair a presença de psicopatas e fico pensando se não seria pela afinidade de comportamentos. Muito interessante também é como esses episódios acontecem. Sempre há uma circunstância pra lá de inovadora e surpreendente. Como por exemplo a facada sem sequer uma gota de sangue, sofrida por Jair Bolsonaro pouco antes do pleito que o levaria à presidência, em 2018. Rendeu a desculpa perfeita para não comparecer a debate algum, alguns dias de descanso da cansativa campanha e milhares de votos frutos do “coitadismo”. Donald Trump, em meados de julho, teria sido outro a sofrer tentativa de assassinato, durante comício que fazia na Pensilvânia. Quando um tiro supostamente o atinge de raspão ele leva à mão até a orelha e a retira limpinha, como se vê nas imagens que correram o mundo. Então ele se abaixa e, algum tempo depois, levanta com “sangue” em ambas – na mão e na orelha. Claro que desta feita os disparos foram reais, tanto é verdade que uma pessoa da plateia morreu, antes que o atirador fosse abatido por agentes do serviço secreto. Agora, pensem comigo: a bala de um fuzil AR-15, como o encontrado com o atirador, tem quase o tamanho de um dedo. E se desloca na velocidade de 975 metros por segundo, o que equivale a uns dez quarteirões. Então, se tocasse de leve na cartilagem que forma a concha externa do nosso aparelho auditivo, o deceparia instantaneamente. Ele usou um curativinho de gaze, por poucos dias. Agora no domingo, coincidentemente pouco depois de ter sido divulgada uma pesquisa que mostra Kamala Harris, do Partido Democrata, cerca de cinco pontos percentuais na sua frente, nas intenções de voto, pronto: Trump sofre outro. Entretanto, esse não foi público como o anterior e sim bem privado. No seu campo de golfe particular, situado em West Palm Beach e longe dos olhos de quaisquer testemunhas, um homem teria sido visto cerca de 450 metros distante de onde ele estava e armado. Incrível é que o atirador não deu nenhum tiro, saiu do local caminhando e foi detido pelos seguranças mais adiante, desarmado. Ou seja, depois de facada sem sangue e bala de fuzil quase inofensiva, inventaram a “intenção atentatória”. Aqui no Brasil temos pelo menos um outro episódio que acabou sendo inserido no anedotário político, tamanho o seu absurdo. Quando José Serra disputava a presidência contra Dilma Rousseff, em 2010, teria sofrido uma “agressão covarde” em evento no Rio de Janeiro. Petistas foram acusados de arremessar contra a sua cabeça, com pontaria precisa, um objeto contundente. Foi retirado do ambiente pelos seus seguranças e encaminhado para fazer uma tomografia. A requisição foi de Jacob Kligerman, médico carioca que havia sido secretário de César Maia e presidente do Instituto Nacional do Câncer, para esse segundo cargo nomeado pelo próprio Serra. Imagens da cena foram recuperadas e reproduzidas com o uso de câmera lenta, mostrando que fora uma pequena bolinha de papel que o atingira. Pior ainda: o arremesso fora feito por um assessor do candidato. Nem integrantes de “Os Trapalhões” teriam sido tão criativos. Agora, tivemos também um fato no qual as vítimas foram trocadas de lado pela narrativa oficial. Este não ocorreu contra um candidato, mas em favor da manutenção de uma ditadura que claudicava. Em 30 de abril de 1981 estava ocorrendo um show musical no Centro de Convenções do Riocentro, na capital carioca, com cerca de 20 mil pessoas no local. Para justificar a manutenção do aparato de repressão então existente, setores do Exército Brasileiro e da Polícia Militar do Rio de Janeiro planejaram um atentado que, com certeza, teria terminado com muitos mortos. Seu objetivo era culpar grupos que se opunham ao sistema vigente e manter o governo na mão das Forças Armadas. Com cadeados, fecharam os portões de saída, enquanto se preparavam para detonar uma bomba. Vidas seriam perdidas com a explosão e também com as pessoas sendo pisoteadas na tentativa desesperada de fugir do local. Não deu certo devido ao fato de o artefato explosivo ter sido detonado acidentalmente no colo do sargento Guilherme do Rosário, que com ele estava dentro de um automóvel Puma, no estacionamento, esperando a ordem e o momento de agir. Ele perde a genitália e a vida. Ao seu lado, o capitão Wilson Dias Machado ficou gravemente ferido, mas sobreviveu. Jamais pode falar sobre o caso, tendo sido promovido posteriormente por “bravura”. Entre os vários outros suspeitos se encontrava o truculento general Newton Cruz. Patética foi a apresentação feita pelo Exército para a imprensa, dias depois, com projeção de fotos e a apresentação de uma perícia forjada. Um esquerdista teria aberto a janela do carro e jogado sobre o colo do sargento a tal bomba. Isso foi tão ridículo que resultou na renúncia do general Golbery do Couto e Silva, então Chefe da Casa Civil e tido como a “eminência parda” do governo. E o tiro – ou a bomba – saiu pela culatra, com o episódio acelerando a queda do regime militar.   *Jornalista e blogueiro. Texto publicado originalmente no Blog Virtualidades. Foto: Divulgação Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.  

Cultura

O Brasil visto por três estrangeiras

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O Brasil visto por três estrangeiras
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Por NUBIA SILVEIRA* Jemima Kindersley, Elizabeth Macquarie e Rose Freycinet. As três mulheres – duas inglesas e uma francesa –, esposas de oficiais da Marinha, visitaram o Brasil, acompanhando seus maridos, entre 1764 e 1820. Elas deixaram suas impressões sobre o país, ou melhor, sobre duas cidades, Salvador e Rio de Janeiro, em cartas detalhadas sobre o que viram e viveram. A beleza natural do país sempre é exaltada pelas viajantes, numa época em que os europeus não tinham informações sobre a colônia portuguesa. Os depoimentos destas três visitantes estão reunidos em Mulheres viajantes no Brasil (1764-1820), organizado e apresentado por Jean Marcell Carvalho França e editado pela José Olympo. Jemima esteve em Salvador nos meses de agosto e setembro de 1764, quando a Coroa portuguesa proibia e entrada de estrangeiros em seus domínios além-mar. Quem conseguia driblar as ordens da Monarquia, como Jemima, esposa do capitão Nathaniel Kindersley, funcionário da Companhia das Índias Orientais de Bengala, tinha seus passos totalmente vigiados. A inglesa conta que as autoridades locais designaram um oficial e um soldado para controlarem seus passos. Reclama por ser seguida até mesmo dentro da casa, em que se hospedou, pertencente a um cirurgião francês, “casado com uma portuguesa nativa”. “Na primeira noite em que dormi em terra, os vigias dormiram no corredor próximo ao meu quarto”, afirma a indignada Jemima. O relato da senhora Kindersley não é nada simpático ao governo local – “desconfiado e pouco hospitaleiro” – e aos portugueses – “muito reservados e hostis aos estrangeiros”. Para ela, os portugueses que migraram para o Brasil, vieram com “um sentimento muito diferente daquele que tem um inglês quando deixa o seu país para se estabelecer numa colônia”. E explica: “Nós ingleses temos sempre o desejo de voltar para casa, enquanto os portugueses se estabelecem com suas famílias por gerações e passam a ver o lugar como sua casa”. Nas sete cartas, escritas em Salvador, Jemima não deixa de falar o que pensa, tendo sempre um olhar crítico sobre a sociedade tropical. Mas tropeça na última carta, em que desculpa os portugueses de seus tantos vícios: “Os portugueses têm demonstrado grande humanidade e mesmo civilidade no tratamento dos nativos do país, os quais, ainda que conquistados, foram deixados em liberdade”. A segunda visitante foi, a também inglesa, Elizabeth Macquarie, que chegou ao Rio de Janeiro, um ano após a transferência da família real para o Brasil, abrindo os portos para visitantes e comerciantes estrangeiros. “No dia 6 de agosto de 1809, avistamos terra e, no dia seguinte, lançamos âncora no porto do Rio de Janeiro.” O que ela e os demais tripulantes viram foi uma imagem que encantou a todos: “a tarde estava clara uma brisa constante e suave impulsionava-nos e o sol punha-se atrás do Pão de Açúcar, tornando a cena ainda mais bela e impressionante”. Como fizera Jemima, 45 anos antes, Elizabeth não fala de sua vida familiar. Restringe-se a escrever sobre as belezas do lugar, as pessoas que conhece, com as quais convive socialmente, os passeios que faz e as dificuldades que enfrenta. Certa feita, ao lado dos capitães Macquaire e Cleaveland, passou por um grande susto: eles saíram a passeio numa “pequena e antiquíssima carruagem”, puxada por duas mulas e “conduzida por um preto com aparência de macaco”, que não falava inglês como eles não falavam português. O cocheiro os levou por um caminho suspeito, onde parou a carruagem. Começou, então, a falar em português e a gesticular, como se estivesse furioso. Uma multidão rodeou os visitantes, que não entendiam o que estava acontecendo. “Incapazes de compreender uma única palavra, ficamos paralisados no lugar onde estávamos, com muito medo.” Elizabeth diz ter pensado que a sorte estava contra eles e “o passeio seria um fiasco”. A francesa Rose Freycinet, muito mais alegre do que as inglesas, fala até demais sobre o marido Louis, comandante do navio Uranie. Sobre sua chegada ao Rio de Janeiro, em 6 de dezembro de 1817, afirma: “O tempo estava magnífico e pudemos deliciosamente repousar os olhos na bela vegetação desta parte do Novo Mundo”. Um oficial da Casa Real subiu a bordo e comunicou aos viajantes que “o rei acolheria os franceses da melhor maneira possível e providenciaria tudo o que lhes fosse necessário”. Teve mais sorte do que Jamima e Elizabeth. Rose ficou feliz em encontrar compatriotas, pessoas que a fizeram sentir-se à vontade e bem-vinda. Mas não gostou nada de saber de alguns costumes da terra, como o que mandava qualquer pessoa – “não importando a sua posição social ou idade” – ajoelhar-se, na rua, à passagem do rei, mesmo que fosse na lama, o que ela classificou de “constrangedora cerimônia”. O seu olhar sobre a família real não foi nada positivo. Em companhia de amigos, Rose teve a oportunidade de participar de uma cerimônia religiosa, em que Dom João VI e sua família estiveram presentes. Ela sentou-se em frente à realeza, podendo observá-los e analisá-los por um bom tempo. “O rei parece estar bem -- diz a francesa --, mas é um homem de pouca majestade. O príncipe é alto e bastante bonito, mas suas maneiras são péssimas e a sua pessoa, vulgar. Vestia-se, na ocasião, com um fraque marrom e uma calça de nanquim, traje bastante ridículo para as 8 horas da noite, numa grande festa pública. Ainda que mais simples, o traje do rei era bem melhor; além do mais, ele é um homem de idade, a quem ser permite mais.” Na descrição de Rose, ninguém merece elogios entre os nobres, nem mesmo a princesa austríaca Maria Leopoldina, que desposara Dom Pedro I, em maio de 1817.  “As maneiras da princesa real, a meu ver, em nada lembram a postura nobre e cerimoniosa que se cultiva na corte da Áustria; aqui, ao que parece, a princesa é descuidada tanto com seus trajes quanto com sua aparência.” As três autoras comparam o Brasil com seus países, em que a terra visitada as encanta por suas belezas naturais. A sociedade, porém, é vista como inferior às da Inglaterra e França. Nos relatos surgem preconceitos em relação aos portugueses, que consideram preguiçosos, sujos e grosseiros. As mulheres são criticadas pelo seu comportamento, dando a entender que são recatadas durante o dia, mas não à noite. Mulheres viajantes no Brasil (1764-1820) é de fácil e agradável leitura. Fica aqui a minha sugestão para quem tem curiosidade sobre o Brasil dos séculos XVIII e XIX. *Nubia Silveira é jornalista. Foto da capa: Divulgação. Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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Especialistas alertam que incêndios em vegetação são, em geral, intencionais.

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Especialistas alertam que incêndios em vegetação são, em geral, intencionais.
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Embora a seca intensifique os incêndios, a principal causa são queimadas intencionais para limpar áreas desmatadas Especialistas ressaltam que, embora o clima esteja extremamente propício à propagação do fogo, é necessária uma ação intencional para iniciar os incêndios. Mesmo em condições de seca e calor intensos, fontes acidentais, como bitucas de cigarro, cacos de vidro ou latas, têm impacto insignificante nas queimadas que destroem a fauna, a flora e afetam todo o Brasil. Christian Berlinck, especialista em ecologia do fogo do ICMBio, explica que para iniciar um incêndio é necessário um calor de aproximadamente 300°C. No entanto, medições indicam que cigarros raramente ultrapassam 150°C, e a maioria não chega a 100°C. Estudos conduzidos pelo grupo de Berlinck revelam que apenas um em cada 100 cigarros atinge uma temperatura suficiente para iniciar um pequeno foco de fogo. O mesmo ocorre com cacos de vidro e reflexos de latas, que em experimentos não ultrapassaram 100°C. Na Amazônia, os incêndios geralmente ocorrem em áreas desmatadas que foram "limpas" de troncos e galhos para grilagem ou expansão ilegal de propriedades rurais. Além disso, há casos em que o fogo é utilizado para evitar a fiscalização da extração ilegal de madeira. Em outros biomas, quando os incêndios não são ilegais, são moralmente questionáveis. Historicamente, o fogo tem sido utilizado para manejo de plantações, pastagens e queima de lixo, sendo a forma mais simples e econômica. No entanto, com o clima cada vez mais adverso, cientistas alertam há anos, sem sucesso, que essas práticas são inviáveis durante os períodos de seca, quando o fogo rapidamente se descontrola. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a Amazônia e o Cerrado registraram aumentos de 98% e 100%, respectivamente, nos focos de calor em comparação ao ano passado. Na Mata Atlântica, o aumento foi de 124%. No entanto, o Pantanal apresentou um crescimento explosivo de 1.946%. Não é surpreendente que o Mato Grosso do Sul tenha o maior aumento percentual entre os estados brasileiros, com um crescimento de 669% em relação ao acumulado até este período de 2023. A Amazônia, por sua vez, tem a maior área queimada, com aproximadamente 5,7 milhões de hectares.   Irá cabar com tudo? Karla Longo destaca que, embora o problema esteja mais evidente e frequente agora, a poluição causada pela queimada de vegetação natural é uma questão que persiste há décadas. Nesta época do ano, a poluição nas cidades brasileiras está mais associada aos restos carbonizados de florestas, campos e pantanais do que às emissões de veículos e indústrias. Ela ressalta também que os danos à saúde causados pelo fogo são suportados pela população em todo o país.   Com informações de O Globo Foto: Agência Brasil/Marcelo Camargo      

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