Opinião
CINEMA: Histórias Palestinas
CINEMA: Histórias Palestinas
De LÉA MARIA AARÃO REIS*
“Vocês conhecem alguma guerra em que bombardeiam ambulâncias com feridos”? Pergunta à câmera do documentário “Nascido em Gaza” (2014) um dos oito meninos sobreviventes ao ataque naval das forças israelenses, em 2014, nos bairros próximos da praia e do porto da cidade de Gaza, no qual morreram quatro crianças que jogavam futebol na areia. A maioria com menos de doze anos.
Mas “Born in Gaza”, em cartaz no streaming*, não está na coleção de produções realizadas na Cisjordânia com atores profissionais e homens e mulheres da população local. Trinta e dois desses filmes estão disponíveis em plataformas, com o título de “Histórias Palestinas” (“Palestinian stories”).
Eles narram a vida da população na Faixa de Gaza e Cisjordânia sob ocupação israelense desde 1967 e sua luta para constituir um estado próprio, independente. A maioria recebeu prêmios em festivais internacionais.
Um deles é o filme (ficção) “Pomegranates and Myrrh” (Romãs e Mirra), de 2008, dirigido pela palestina Najwa Najjar. A história: a jovem recém-casada Kamar vive um período difícil quando seu marido é preso por reagir aos maus tratos de soldados israelenses. Kamar redescobre sua paixão pela dança profissional. “Pomegranates and Myrrh” é como se chama o grupo ao qual ela pertence, enquanto o rapaz segue preso e torturado na cadeia.
Durante a última noite de filmagens, quase todas realizadas na cidade de Nablus, conforme a diretora Najjar relatou em entrevista quando do lançamento do seu filme, “soldados nos prenderam até cinco horas da manhã para interrogatório. A região onde eu vivo, entre Jerusalém e Ramallah, é uma terra de ninguém, onde não temos direitos. Terrenos são confiscados, crianças são presas e há bombardeios de três em três anos”.
O filme é simples, protagonizado por Khaled Abol Naga, ator egípcio popular no seu país e embaixador da Unicef, mas seu conteúdo documental é o mais significativo. Apresenta o confisco sistemático de terras de agricultores palestinos, a morosidade da justiça israelense em julgar casos de prisioneiros árabes e a brutalidade das tropas nas ruas das cidades e nos postos de controle policial que retalham a Palestina e impõem severas restrições à mobilidade da população nas suas próprias terras.
“Nascido em Gaza” é dirigido pelo argentino Hernán Zin, vindo de estudos de Ciência Política e Relações Internacionais, escritor que trabalha em Madri e é experiente correspondente de guerra.
Seu filme trata dos traumas das crianças após o ataque na região litorânea de Gaza. Os depoimentos dos meninos são dilacerantes, porém sempre respeitosos para com as crianças.
Mohamed, por exemplo, cata coisas para vender, nos lixões dos bairros devastados por bombardeios. Israel interdita a entrada de material de construção na Palestina. Assim ele consegue sustentar a família.
Udai fala de seus pesadelos e da sua insônia. Assistiu o irmão mais velho ser atingido e morrer ao seu lado no dia do ataque. Mahmud descreve como os carneiros e o cavalo da família que possuíam foram mortos e a terra bombardeada onze vezes. Os relatos são ilustrados por cine jornais de cada época. Documentos históricos dos sinistros episódios mencionados pelos garotos.
Rajak viu o pai, motorista de ambulância, ser atingido e morrer dentro dela. No mesmo bombardeio, 16 paramédicos também morreram. Meninas da escola de Jabalia, dentro de um campo de refugiados, relembram quando estavam nesse colégio da ONU bombardeado, confiantes porque pensavam ser um local seguro. Lá, foram 80 os feridos, e as garotas e seus pais comentam que perderam a confiança na instituição. Segundo a ONG britânica Save The Children, a cada cinco pessoas mortas no conflito, uma é criança.
Vem em boa hora essa coleção de filmes com histórias de violência homicida contra adultos e, sobretudo, crianças. Dados brasileiros do Instituto Fogo Cruzado apontam que 103 crianças foram baleadas, entre elas bebês. Trinta morreram vítimas da violência, apenas no Rio de Janeiro, nos últimos cinco anos. Sessenta e quatro dessas crianças da cidade foram atingidas dentro das suas comunidades.
A voz de um diretor palestino, Ameen Nayfeh expressa sua justificada satisfação por levar ao mundo, através do cinema, o seu trauma particular quando enfrentou grandes dificuldades para atravessar um posto de controle israelense e chegar ao leito de morte de seu avô, na Cisjordânia ocupada.
O premiado curta, de autoria de Nayfeh, “A travessia” (The Crossing) está na coleção de filmes que reforçam a necessidade de lembrar e denunciar repetidamente, e nunca esquecer, o drama e o sofrimento vivido pelos palestinos no seu cotidiano há muito tempo.
Há quanto tempo? Há cerca de meio século. No ano em que vimos, com nossos próprios olhos, em viagem a trabalho para jornal do Rio de Janeiro, as famílias expulsas de suas terras ancestrais atravessando a estrada, com os jumentos carregados de pertences básicos e levando crianças, atravessando defronte do carro de imprensa no qual estávamos. Cabisbaixos, amargurados, e encaminhados, talvez, para o gueto de Gaza.
“Histórias palestinas” e “Nascido em Gaza” estão no catálogo da Netflix.
*Jornalista carioca. Foi editora e redatora em programas da TV Globo e assessora de Comunicação da mesma emissora e da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Foi também colaboradora de Carta Maior e atualmente escreve para o Fórum 21 sobre Cinema, Livros, faz eventuais entrevistas. É autora de vários livros, entre eles Novos velhos: Viver e envelhecer bem (2011), Manual Prático de Assessoria de Imprensa (Coautora Claudia Carvalho, 2008), Maturidade – Manual De Sobrevivência Da Mulher De Meia-Idade (2001), entre outros.
**Este texto foi publicado em 29/11/2021 no site Carta Maior e atualizado em 15/10/2023.
Imagem: divulgação.
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