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Espelho, espelho meu, A rede globo é mais doente do que eu?
RED
CPor CARLOS ÁGUEDO PAIVA*
Eu fui um duro crítico do PT durante 13 anos. Muito duro. Não perdi um único emprego por isso. Minhas críticas à Lava Jato e a Bolsonaro já me tiraram três empregos. Reinaldo de Azevedo em entrevista com o Presidente Lula.
Introdução
Eu sou um sujeito viciado em vícios. Nem gosto que me apresentem novos, pois me apego com muita facilidade. Os tenho às pencas. Mas creio que o meu vício maior é o da curiosidade. Minha curiosidade é meio sem limite; para mim, o sentido da vida encontra-se em aprender sempre mais e entender o máximo possível sobre o mundo. Leio e escrevo compulsivamente, converso demais (até exaurir os amigos), e sempre que me deparo com um tema instigante, busco ir o mais fundo possível na sua compreensão.
Ora, os temas são infinitos e meu tempo é limitado. E tive que achar atalhos para dar conta de atender minimamente minha curiosidade compulsiva. E encontrei três atalhos extraordinariamente úteis e funcionais. Em primeiro lugar, eu aboli a divisão entre “lugar para ler e estudar” e “outros lugares”. Eu leio na fila do banco, no restaurante, na mesa de bar, no ônibus, no avião, na sala de espera, no elevador e até caminhando na rua (a gente só tropeça no início; depois, aprendemos a manter um olho no livro e outro no caminho). O segundo atalho foram as viagens. Tu podes ler 50 livros sobre a China. Se forem livros efetivamente relevantes e minimamente complexos, isto te demandará dois anos de trabalho. Mas se passares um único mês viajando pela China, conversando com as pessoas nas ruas, visitando as Universidades, lendo jornais (há muitos em inglês, don’t worry) e livros que estão “bombando por lá” (há excelentes livrarias), observando as estruturas urbanas, os padrões de interação entre as pessoas, visitando os centros das principais cidades (sem esquecer das periferias), dando a devida atenção às dinâmicas de trabalho, de produção, de comércio e de oração (visitar templos é básico!), tu vais voltar com um conhecimento maior do que tu alcançarias lendo diversos livros no Brasil. Em geral, os livros te oferecem leituras contraditórias sobre o país. Sem que tu saibas qual delas é a mais confiável. Ou melhor: sem que tu contes com a base experiencial para entender as determinações das divergências e tentar articular uma síntese das oposições.
Mas, creio eu, o atalho mais importante para se chegar o mais perto possível do impossível - Entender o mundo! - é o atalho que nos foi ensinado por Apolo em Delfos: Conhece-te a ti mesmo! Por quê? Porque os dois primeiros atalhos - ler e estudar em lugares “inusuais” e viajar pelo mundo – só podem trazer conhecimento se pudermos confiar na interpretação que fazemos dos textos lidos e dos registros e interpretações que damos aos eventos observados em outros mundos. ... E como podemos nos asseverar de que estamos vendo “o que é” e não o que “queremos ver?”. A resposta é complexa, claro. Mas ela conta com um excelente ponto de partida: o que é que tu queres ver? Se souberes onde está o teu desejo, fica bem mais fácil de identificar se o que vês corresponde – ou não! – ao que tu queres ver. Se estiveres vendo o que não queres ver, há uma grande probabilidade de estares vendo (parte de) aquilo que é. Quando vês o que não queres ver, o princípio da realidade está se impondo sobre o princípio do prazer.
São inúmeros os “cortes epistemológicos” que vivi ao longo de quase quatro décadas de psicanálise. Mas há um momento que tem tudo a ver com o artigo de hoje. Eu vinha enfrentando (só para variar!) alguns problemas no trabalho. Como de praxe, colegas, chefias e avaliadores dos meus artigos tentavam me explicar que meus trabalhos não eram publicados porque eu escrevia demais, não respeitava normas acadêmicas, tergiversava, tratava de assuntos em excesso, usava de ironias e metáforas, enfim, não tinha uma redação científica. Como meus textos eram impublicáveis, minha produção era baixa. E como minha produção era baixa, eu era um péssimo funcionário, com produtividade muito abaixo da “média”. E que eu tinha que me esforçar mais para entrar na “média”.
Meu astral não andava nada bom. E este era o tema das sessões. Lá pelas tantas o analista me perguntou: O que tu sentes por estes arautos da “média”? E eu respondi: Pena! Ele redarguiu: Não sentes raiva? E eu retornei: Eu não sinto raiva de ninguém. Muito menos de gente pequena! E o analista me saiu com essa: Para quem faz análise há tantos anos tu te conheces muito pouco, não te parece?
Gol do Bangu. A verdade é que eu era um poço de raiva. E não conseguia reconhecer! Chorei. Muito. De tristeza e de alegria. Na verdade, “de epifania”. Me (re)descobri pequeno, passional, comum. Me (re)descobri alguém da “média”. Me (re)descobri humano, demasiado humano. Nas sessões seguintes, o tema passou a ser minha contribuição particular para o conflito no ambiente de trabalho. E descobri que minha tentativa de colocar uma máscara de “pena” na minha raiva aprofundava a distância e a incompreensão recíproca. Mudei. Pelo menos, tentei mudar. Adiantou de algo? Um pouco. Mas muito pouco. E essa foi outra grande epifania: o fato de nos descobrirmos neuróticos e corresponsáveis pelos conflitos torna o fardo da vida um pouco mais leve. Mas – tal como nas relações afetivas – as relações conflitivas envolvem pelo menos duas pessoas. E a neurose dos outros são dos outros. Não temos o poder de mudá-las.
A Globo precisa urgentemente de um divã!
Na segunda-feira, dia 9 de dezembro de 2024, Lula deu entrada no Hospital Sírio Libanês (HSL) para uma cirurgia de urgência com vistas a retirar uma hemorragia intracraniana que havia se formado em função da queda que sofreu em outubro desse ano. Seis dias depois, no dia 15 de dezembro, Lula teve alta e participou da entrevista concedida pela equipe médica com vistas a agradecer àqueles que o haviam atendido e àqueles que haviam orado por ele. Na sequência, ainda no HSL, Lula concedeu uma entrevista exclusiva para a repórter Sônia Bridi, da Rede Globo de Televisão, que viria a ser veiculada no Fantástico, programa de variedades da emissora no domingo. O que, nem Lula, nem ninguém poderia esperar era que, na segunda metade da entrevista (minuto 13: 50), a Globo fizesse duas inserções criticando e negando afirmações do Presidente. Exatamente quando Lula manifestava seu desejo de que todos os acusados de intentarem um golpe contra a sua pessoa e que, de acordo com o inquérito da Polícia Federal, envolvia o planejamento de seu assassinato, contassem com a presunção de inocência com a qual ele não havia contado. A equipe de reportagem do Fantástico faz, então uma pausa na entrevista, e busca demonstrar que Lula contou com todos os direitos e garantias constitucionais, e que, em momento algum, seu direito de defesa foi contestado.
Vou me dar ao direito de cometer mais um dos tantos sincericídios que tanto me caracterizam. Eu não sei o que mais me assusta nessa história. Se é a psicopatia do veículo e de sua equipe de jornalismo, ou a psicopatia do público que, como regra geral, tomou o intermezzo correcional – em que se informava que o Presidente era um MENTIROSO – como algo normal. Do meu ponto de vista, isso é tão assustador que sequer podemos ir ao ponto central com muita pressa. São muitas as camadas da loucura. O melhor é começar pelas beiradas; tal como recomendava o Engenheiro Leonel: mingau quente demais não se ataca pelo centro, pois queima a língua.
Comecemos com um exercício de distanciamento. Vamos tomar uma outra entrevista, de um outro veículo, com uma pessoa pública que cometeu algumas “malandragens” em sua história de vida para termos uma referência de “postura respeitosa”. No dia 12 de dezembro de 2024, a Carta Capital entrevistou o Ministro Gilmar Mendes do Supremo Tribunal Federal (STF). Havia dois temas centrais: as relações algo conflituosas dos três poderes da República e a Lava-Jato. Mendes fez uma série de críticas aos abusos cometidos pela falecida “República de Curitiba”, à politização do processo penal e à transformação do mesmo em espetáculo midiático explorado com gosto e gozo pela grande imprensa. E fez a defesa do STF como garantidor das instituições e agente de recuperação da isenção do Judiciário. Mais: com sua proverbial e reconhecida imodéstia, Mendes afirmou ter sido um dos primeiros (senão o primeiro) a perceber que “havia algo de errado” nos procedimentos de Curitiba. E acrescentou que sua sensibilidade para desvios nos devidos processos jurídicos lhe angariou o apelido de “Profeta”.
Logo após a entrevista de Mendes à Carta Capital, vieram à luz diversos artigos com críticas à ação do STF durante o período de vigência da Lava-Jato. Veja-se, por exemplo, o excelente artigo do amigo Benedito Tadeu César publicado na RED. O que unifica todas as críticas é a sinalização da irretorquível conivência do STF com os procedimentos da “Quadrilha de Curitiba”, desde a instauração da Lava-Jato, no primeiro mandato de Dilma, até o final do primeiro ano do mandato de Bolsonaro, quando Lula é solto.
Desde logo, o STF ignorou o fato do Fórum de Curitiba não ser a alçada pertinente para o julgamento das duas maiores improbidades de Lula: haver visitado um apartamento no Guarujá e se hospedar com alguma frequência no sítio de um amigo em Atibaia.
Para piorar, o STF – mais exatamente, o Ministro Gilmar Mendes – ignorou a cautelar interposta pela Advocacia Geral da União com vistas a acelerar o julgamento do “direito” da Presidente Dilma a indicar o ex-Presidente Lula como Chefe da Casa Civil em seu segundo mandato, após Eduardo Cunha haver dado autorização para o início do processo de impeachment em 2016. Gilmar Mendes pediu vistas e “sentou-se” em cima do processo, como que aguardando o escândalo adequado para negar o direito de Dilma indicar quem bem entendesse para o seu Ministério. E o escândalo aconteceu. Moro gravou uma conversa da Presidenta com o ex-Presidente após o término do período autorizado para a realização de grampos e a divulgou em rede nacional. Não era preciso ser “Profeta” de nada para entender que essa decisão era politicamente orientada, ilegal e inconstitucional. Mas, ao invés de punir Moro e de retirar de Curitiba – que nunca foi o Fórum adequado de julgamento do Presidente Lula por suas visitas a Guarujá e a Atibaia - o STF aplaudiu a farsa e impediu Lula de assumir a Casa Civil.
Como se isso não bastasse, o STF fez “vista grossa” para a inconstitucionalidade da “Lei da Ficha Limpa”, votada no Congresso com vistas a “combater a corrupção (do PT)”. Só realizou o devido julgamento da constitucionalidade da referida lei após o término das eleições de 2018, com a vitória da “vítima do atentado de Juiz de Fora” (sic, argh, cof, bah!).
O STF também pretendeu desconhecer algo que todos os jurisconsultos do país dos Tupis sabiam perfeitamente: que a “República de Curitiba” tinha alta ascendência sobre os impolutos Desembargadores do TRF-4 (a segunda instância pertinente para julgar Lula) em função da filmagem de uma festinha íntima (que ficou conhecida como a “festa da cueca”) onde alguns dos nossos mais aristocráticos e circunspectos tribunos mostravam todos os seus atributos. A imprensa sabia de algo à época? ... Acredito que sim; pois os nudes circulavam amplamente nas redes sociais jurisconsúlticas. Mas, após as denúncias de Tony Garcia em 2023, ninguém mais pode pretender desconhecimento do fato. Anyway, a mim sempre pareceu muito estranho que, já em 2018, NINGUÉM das instâncias superiores do Judiciário (ou da imprensa) questionasse a extraordinária diligência dos desembargadores do TRF-4, que colocaram o processo de Lula à frente de todos os demais, conseguissem julgá-lo em tempo ínfimo e ampliassem a sentença de Moro por unanimidade. Garantindo o período necessário para que, apesar de réu primário, Lula não pudesse cumprir a pena em liberdade no ano das eleições para a Presidência. SANTA COINCIDÊNCIA, BATMAN, BATGIRL E BATDOG!
Por fim, o STF ignorou a decisão da Corte de Direitos Humanos da ONU – onde Lula foi representado pelo Conselheiro da Rainha Elisabeth II, Geoffrey Robertson, que: 1) considerou o julgamento de Lula marcado por parcialidades e falta de isenção dos juízes da primeira e da segunda instância; 2) determinava que fosse garantida a liberdade de Lula até o trânsito em julgado; e 3) que ele tivesse seus direitos políticos preservados, incluindo-se o direito de ser candidato à Presidente no pleito de 2018. O STF não se contentou em ignorar as resoluções da Corte da ONU (a despeito do Brasil, por opção, haver reconhecido a soberania do órgão). Influenciado por postagens vindas do alto oficialato do Exército em defesa da luta contra a “corrupção”, o STF manteve a prisão de Lula e foi mais longe: o impediu de dar entrevistas no ano eleitoral.
Nem é preciso esclarecer que os dois casos – entrevista de Gilmar Mendes e entrevista do Presidente Lula no HSL – estão intimamente associadas. Mas o que importa resgatar aqui e agora é a alegação feita por Mendes. A alegação de que, tão logo o STF tomou consciência do fato de que a Lava-Jato extrapolava os limites do livre direito de defesa, foram impostos freios aos desatinos da dobradinha Sergio Moro – Deltan Dalagnol. Isso é uma mentira grotesca e aviltante. .... Não obstante, a Carta Capital não abriu um intermezzo na entrevista feita com Gilmar Mendes para “corrigir” as informações do Ministro. Por quê? Porque isso seria ainda mais grotesco e aviltante.
Quando se convida alguém para dar uma entrevista, está pressuposto o interesse naquilo que o entrevistado tem a dizer. Não importa se concordamos inteiramente com suas informações. Não importa se ele traz elementos que vão na contramão do que pensamos. Ou, antes: importa. Pois esse “outro lado” é exatamente o que se busca: a informação que não temos, a leitura que não temos. ... É absolutamente cabível e pertinente fazer, a posteriori, uma análise crítica das informações recebidas. Mas esse é um outro momento. Quando interferimos e alteramos a dinâmica do diálogo, introduzindo no meio do mesmo, uma leitura distinta, que o agente dialogante não pode contestar, estamos impondo uma relação discursiva desigual, estamos traindo o princípio do direito de resposta.
Vale fazer uma pequena observação lateral. Há alguns anos, a Carta Capital fez uma matéria sobre os negócios e vínculos empresariais do Ministro Gilmar Mendes. O Ministro entrou com um processo por calúnia e difamação. Perdeu nas instâncias iniciais. Mas venceu no Supremo Tribunal de Justiça; justamente aquele onde – de acordo com a revista – Mendes teria maior influência, em função de suas atividades empresariais no Instituto Brasileiro de Direito Público, cujos cursos e palestras contam com a colaboração (muito bem paga) da “nata” dos jurisconsultos tupis. Na entrevista concedida por Mendes ao site da revista, é fácil perceber uma certa “tensão”. O Ministro evita olhar para a câmera, gagueja, tergiversa, mede as palavras. Após tantos anos de análise, ouso pretender que o seu “corpo fala”. E o que ele diz é: - Isso, por acaso, é uma armadilha, uma pegadinha?
Não. Não era. Mino Carta é um gentleman, é um lord, seu nome é elegância. Mino Carta tem princípios.
A Rede Globo entrevistava o Presidente da República. Ele estava saindo do hospital, após uma cirurgia extremamente delicada. Os médicos recomendaram descanso. Pediram que a entrevista fosse concedida noutro dia. Lula achou por bem mostrar ao Brasil que ele estava bem de saúde e que a cirurgia havia sido um sucesso. E se dispôs a realizar este trabalho. Ao contrário de Gilmar, Lula olhou para a entrevistadora e para a câmera todo o tempo. Falou de forma tranquila, segura, do jeito simples que lhe caracteriza. E manifestou seu desejo de que o Judiciário tratasse os acusados da tentativa de golpe com mais isenção e respeito do que ele mesmo fora tratado. E a Rede Globo resolveu cortar a entrevista ao meio para dizer que o Presidente mentia. Que ele fora tratado com isenção e de acordo com os princípios legais vigentes ao longo do período.
Mesmo que, após a prisão de Lula, mesmo que antes de sua eleição, não tivesse ocorrido a VAZA-JATO, mesmo que não tivessem vindo a público as denúncias de Tacla Duran ou de Tony Garcia, a intervenção da Globo, no meio da reprodução da entrevista, produzida ex-post, sem direito de resposta do entrevistado, já seria nojenta, calhorda, doentia. Mas tudo isso já rolou. E todos os jornalistas conhecem as resoluções do STF sobre a parcialidade de Moro, sabem que ele foi Ministro de Bolsonaro e cabo eleitoral do capitão em 2018 e 2022. Provavelmente, já viram os nudes da festa da cueca de Curitiba. Com certeza leram – senão todas, pelo menos parte de – as trocas de mensagem dos procuradores com o juiz Sergio Moro. Sabem que houve combinação. Conhecem a história das “prisões preventivas” de Marcelo Odebrecht e Leo Pinheiro. Sabem que suas “delações premiadas” foram conquistadas a preço de Lula. Mas insistem em dizer que o Presidente – que foi convidado para uma entrevista – mente. Em horário nobre. Para toda a família brasileira reunida. Se isso não é doença, se isso não é (mais que neurose) psicopatia, eu não sei o que seja.
Um país doente
Muito se tem falado sobre a crise do ocidente. Ela é evidente. A começar pelos indicadores econômicos. De acordo com o portal de estatísticas do FMI, a China já é a maior economia do mundo quando seu PIB é avaliado por PPP (paridade do poder de compra; por oposição ao câmbio nominal). Os EUA estão em segundo lugar, seguidos por Índia (em terceiro), Rússia (em quarto), Japão (quinto), Alemanha (sexto), Brasil (sétimo), Indonésia (oitavo), França (nono) e Reino-Unido (décimo). Em suma: os Brics são muito maiores do que o G-7. E isso incomoda. Muito. Envelhecer e perder a força e a capacidade de se impor sobre os outros não é muito bom. Especialmente quando (narcísica e neuroticamente) acreditávamos que nossa força, potência e poder era um desdobramento de nossas virtudes e dos defeitos alheios. Quando um outro valor mais alto se alevanta, ao contrário do que pretende Camões, o “normal-neurótico” não é nos calarmos. Mas pretender que os novos líderes, os novos hegêmonas, os jovens titãs, estão mancomunados com o diabo. E lá vai satanização de Putin, Xi, Modi, Lula, dentre outros.
Não se trata de pretender que o quarteto em si e por si dos BRICS sejam santos ou anjos. Trata-se apenas de reconhecer que anjos e santos – com a graça dos bons deuses, das boas deusas e d@s excelent@s deus@s – estão pra lá de escassos no mundo atual. Que o digam Trump, Bolsonaro, Von der Leyen, Zelensky, Starmer, Biden, Netanyahu e seus inúmeros amigos. Todos eles adeptos da tese de que “uma guerrinha não dói”.
O problema que nos interessa aqui, contudo, não diz respeito diretamente à dinâmica econômica dos países emergentes e decadentes. Mas, isto sim, à forma como a intelligentsia em geral – e a mídia, em particular - analisa, interpreta e difunde uma certa leitura deste processo de revolução na hierarquia das nações. Como regra geral, os países do ocidente em processo de decadência acusam os países emergentes de “práticas econômicas perversas e desumanas”. Toda a mídia europeia e norte-americana produz catilinárias contra os “oligarcas russos”, a superexploração do trabalho na China, a estrutura de castas da Índia, o machismo e a subordinação das mulheres nos países muçulmanos, o terrorismo islâmico, a ausência de liberdade de expressão nas novas potências econômicas internacionais. Escorre sangue e lágrima das páginas dos jornais ocidentais, chocados com a barbárie dos hunos, mongóis, árabes e turcos que assediam o bom, probo, iluminista e cristão ocidente.
A reação da periferia é clara. E busca demonstrar – o que, aliás, não é nada difícil – que a mídia ocidental é uma grande farsa. A matéria do New York Times sobre os estupros em massa das mulheres no 7 de outubro é uma vergonha. O tratamento dado pelos jornais ocidentais à Guerra da Ucrânia só não é de chorar, porque é ridículo. A seletividade com que é tratada a condição feminina no Irã (xiita e terrorista, aliado do Hamas e do Hezbollah) e na Arábia Saudita (aliada dos EUA e complacente com Israel) é de gargalhar. E a imprensa periférica denuncia e se revolta. E conquista, cada vez mais, corações e mentes no Ocidente. A ponto de preocupar – e muito – veículos como a BBC.
Menos no Brasil. Em nossa terra, não há só palmeiras e sabiás. Somos a terra da jabuticaba. Onde a imprensa incensa o entreguismo, a subserviência e a derrota e desfaz de toda e qualquer conquista. É NÓIS!
Não me perguntem o santo, pliss, não me lembro e não vou pesquisar. Conto apenas o milagre. De uma certa feita, um cronista e jornalista brasileiro resolveu investigar por que um país com uma literatura tão vasta e tão expressiva – de Machado de Assis a Guimarães Rosa, passando por Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Ferreira Gullar, Manuel Bandeira, Clarisse Lispector, Carlos Drumond de Andrade, Luiz Fernando Carvalho, Chico Buarque (lembrem-se de Bob Dylan!)) dentre outros – nunca conquistou um Nobel em Literatura. A resposta obtida a partir de entrevistas a um grande número de literatos que participaram da eleição dos nobelizados em distintos anos é muito esclarecedora: porque cada vez que emerge um nome brasileiro para a nominata, emergem duzentos críticos brasileiros que se contrapõem à premiação “demonstrando” que o indicado não é merecedor de prêmio algum. É NÓIS! A gente não semu movidu apenas a carnaval e cordialidade. A gente também semu movidu por ódio e inveja!
Não se trata de um ódio universal. Não. De forma alguma. É óbvio que Fernando Pessoa, Honoré du Balzac, James Joyce, Marcel Proust e Gore Vidal são magníficos. Afinal, são estrangeiros. O ódio e a inveja são concentrados e direcionados ao conterrâneo, ao vizinho. Especialmente se ele vem de baixo. Se ele invadiu a praia errada. Lula invadiu a praia errada. Não importa se ele é incensado mundo afora pelos maiores líderes políticos e estadistas do planeta. Não importa se Biden e Putin, Xi e Von der Leyen, Sholz e Macron o têm em grande conta. Para a intelligentsia nacional, ele saiu de Garanhuns. Mas Garanhuns nunca saiu dele. Ele não tem o refinamento e o berço necessário para ser presidente. De forma que, não interessa se ele é o Presidente em exercício, não interessa se ele acaba de sair de uma cirurgia, não interessa se a economia brasileira cresceu 3,3% em 2023 e deve crescer 3,5% em 2024, não interessa se a taxa de desemprego atual é a mais baixa da série histórica com informações comparáveis. O que importa é que ele só cursou até a quinta série primária, não tem um dos dedos da mão, comete erros de concordância, foi operário e chegou aonde não deveria ter chegado e onde não deveria estar. E uma pessoa dessa “qualidade” tem que ser monitorada em tudo o que diz e fala. A Globo, ao fazer a intervenção que fez em sua fala, durante sua entrevista, não faz mais do que proteger a boa formação e informação popular. O que ele diz tem que ser avaliado, o tempo todo, e criticado, o tempo todo, por aqueles que sabem, os que nasceram no lugar certo: na Casa Grande.
Há uma velha piada. Com certeza, todos conhecem. Mas me dou ao direito de contá-la novamente. Reza a lenda que, quando Deus fez o mundo, ele distribui as benesses e intempéries igualmente. Onde havia abundância de recursos minerais, ele também criava desertos, tundras, geleiras, escarpas e vulcões. Onde havia abundância de alimentos, ele colocava feras, víboras, animais peçonhentos. Onde havia abundância de recursos hídricos, ele colocava terremotos, maremotos e tsunamis. Menos num local: aquele que viria a ser o Brasil. Aqui não haveria terremotos ou vulcões. Não haveria feras terríveis. As terras seriam férteis. Não haveria desertos, geleiras, tsunamis, maremotos ou vulcões. Preocupados com a desigualdade na distribuição de benesses e recursos, os anjos perguntaram: Mas porque tantos privilégios para um lugar só. E Deus respondeu: Quando vocês virem a gentinha que eu vou colocar lá, vocês vão entender. Pois é. Parece que o criador cumpriu a ameaça. Essa é a nossa sina.
*Carlos Águedo Paiva é Economista, Doutor em Economia e Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica.
Ilustração de capa: Reprodução
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