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Nós, os “faMELOnários”
RED
Por FABIO DAL MOLIN*
“O líder carismático obsceno é, portanto, o “retorno do reprimido” do conhecimento especializado que pretende agir sem apoio numa figura do mestre: o Mestre reprimido (a autoridade que personifica a Lei) retorna em sua forma (quase, não exatamente) psicótica, como um Mestre obsceno sem lei. O Mestre está aqui “superpresente”: não se reduz à sua dignidade simbólica, representa a autoridade com todas as suas idiossincrasias. E o que acontece com o conhecimento com a ascensão do Mestre obsceno? Como podemos ver abundantemente, o conhecimento especializado neutro é transformado no seu oposto (imanente), o conhecimento “especial” das teorias da conspiração acessíveis apenas aos iniciados (o aquecimento global é uma farsa, a pandemia da covid-19 foi inventada por aparelhos estatais e corporações médicas…).’
Zizek, Slavoj. Mais-gozar: Um guia para os não perplexos (Portuguese Edition) (p. 329). Editora Vozes. Edição do Kindle.
O filósofo esloveno Slavoj Zizek. em seu último livro publicado “Mais Gozar”, que trata da potência libidinal e fantasistica daquilo que nossa sociedade constrói e chama de “realidade”. A partir de Marx, Hegel, Freud e Lacan, Zizek produz importantes insights sobre as noções de existência e crença como organizadores da vida psíquica, e entre elas está a ideia de Significante Mestre, de Lacan, que é uma espécie de substância organizadora que permeia e dá anteparo a nossa segurança ontológica. São importantes suportes de segurança ontológica noções abstratas, mas quase tangíveis, de verdade, ciência, saber, lei, ou mesmo a própria ideia de existência. Certa vez um paciente que se dizia muito religioso por frequentar sistematicamente uma igreja, mas que eu desconfiava não ter muita fé me perguntou “você acredita em Deus”? Assim, de relance, no suporte da transferência, respondi como bom freudiano que sou, chistosamente, “eu acho que Deus existe, mas não acredito nele”. O chiste me rendeu boas reflexões sobre o Grande Outro que, ao mesmo tempo que nos organiza, permite uma certa transgressão deslizante. Em seu livro Zizek analisa Ragnar Lothbrock, o icônico personagem histórico da série “Vikings”, que, mesmo sendo o grande líder de uma nação totalmente imbuída de uma crença quase real nos seus deuses, sem a qual jamais empreenderiam suas batalhas e viagens suicidas, se confessa ateu. Para o filósofo, essa lacuna, contrariamente ao senso comum, é o que faz lastro para a realidade, como quando vamos ao cinema , apesar de sabermos que tudo ali são montagens e efeitos especiais, nos emocionamos, ficamos com asco, raiva ou aceitamos o fato de um super-herói voar ou ser invulnerável. Assim como a realidade do cinema precisa de uma tela de enquadramento, nossa realidade psíquica também necessita de contornos permeáveis, do contrário não saberíamos a diferença entre o sonho e a realidade, ou acreditaríamos que podemos voar como os super-heróis. Bem, é claro que esse delicado sistema de anteparo pode entrar em colapso quando esse Grande Outro perde sua força, e muitos signatários da psicanálise acreditam que nossa sociedade contemporânea complexa, heterogênea e em decadência esteja passando por aquilo que é chamado de “declínio da função paterna”. È importante fazer aqui a observação de que tal expressão guarda resquícios da velha psicanálise surgida em um período em que a ciência era totalmente amalgamada com a sociedade patriarcal. Maas sem dúvida, abrindo mão da ideia de “pai”, podemos manter a potência analítica a ideia de princípios organizadores que nos ajudam a não sucumbir a loucura e ao caos social que hoje realmente estejam em falta especialmente no mundo digital pós 2014, o que já chamei em outros textos de “O mundo de 2020”, onde enormes contingentes humanos acreditam que a Terra é plana ou não escutaram os apelos da ciência em uma das maiores crises sanitárias dos últimos séculos simplesmente por receberem informações de múltiplas realidades paralelas e coexistentes que, dentro do caos da internet e do declínio neoliberal de instituições como a escola, a ciência ou o próprio estatuto da verdade (que é questionada pela filosofia mas sob critérios sólidos).
Zizek usa o exemplo da série islandesa “Katla” (Netflix). O roteiro da série se passa em uma comunidade isolada pela erupção de um vulcão dentro de uma geleira, e os poucos remanescentes vivem em um ambiente degradado e sem esperança. Repentinamente a cidade começa a receber a visita de alguns de seus moradores, alguns já mortos há algum tempo, outros como versões distintas de si mesmos. A série tem como referência a obra de ficção científica “Solaris” de Stanislaw Lem filmada por Tarkowsky. Dentro do vulcão há um meteoro cuja radioatividade torna materiais as fantasias dos habitantes expostos a ela. Segundo Zizek, o argumento da série trata dessa ascensão de um Mestre obsceno, que converte as fantasias íntimas e inconfessáveis dos moradores não mais em anteparos simbólicos e sim em figuras reais de gozo possível ( o gozo, neste paradigma, representa nossa própria fruição com a realidade, que é sempre parcial ou impossível).A fratura produzida pelo vulcão (que sempre esteve ali, não é uma anomalia) transforma a fantasia em percepção, a realidade sem anteparo da psicose.
Pois todos sabemos que o mundo, especialmente o Brasil, e especificamente a cidade de Porto Alegre, de certa forma experimentou na última década a explosão de uma realidade bifurcada e em 2024 o estado do RS e minha cidade passaram por um período de erupção do vulcão ontológico, e dois sintomas tragicômicos emergiram no primeiro dia de 2025.
O primeiro fato aconteceu logo após saírem o resultado da Mega-Sena da virada, cujo prêmio pagou mais de 600 milhões de reais. O plantão das enfermeiras de um hospital na região metropolitana de Porto Alegre foi interrompido pela notícia de que uma delas havia acertado as seis dezenas do concurso. Uma das médicas do plantão filmou o momento exato da festa, que viralizou na internet porque a suposta ganhadora, que abandonou o plantão e foi para casa planejar os próximos dias de sua vida de milionária (que, segundo ela mesma, começaria com uma viagem para Paris) recebeu a notícia do irmão que tudo não passou de um engano, pois ela conferira os resultados como um bingo, e as seis dezenas que supostamente acertara estavam distribuídas em cartões diferentes. Confesso que ri sadicamente da tragédia alheia, mas também masoquisticamente porque eu mesmo já depositei uma gorda soma de dinheiro na conta de um golpista do whatsapp que se fez passar pelo meu irmão, e tive que suportar a vergonha de cair em um golpe ridículo. Mesmo tendo achado engraçado eu tive pena da pobre mulher que (junto com suas colegas ) entrou momentaneamente em uma realidade onde não mais faria plantões cansativos e venderia sua força de trabalho por um salário injusto, viajaria para Paris e não calcularia a cotação do Euro ou veria o preço do Menu dos restaurantes. E isso nos leva a Porto Alegre, cidade suja e destruída por uma sequência de administrações sujeitas a exploração comercial e imobiliária, que chegou a sua erupção vulcânica na enchente de 2024 e entrou na mesma realidade bifurcada da enfermeira ao rejeitar Maria do Rosário e reeleger com folga Sebastião Melo.
Pois a prefeitura celebraria no dia 01 dois eventos: a reeleição de Melo e a reabertura da Usina do Gasômetro, antigo e emblemático espaço cultural da cidade agora “revitalizado” e que será mantido por “parceirizações” com empresas que, como sempre financiaram a campanha eleitoral .
Sebastião Melo circula na administração popular há 20 anos e em seu discurso de posse diz que no primeiro mandato estava apenas aprendendo. Por mais uma ironia cósmica do destino, a “máquina id” de Solaris e Katla, o planeta pulsante ou a erupção vulcânica radioativa, a posse do prefeito foi marcada por mais um alagamento com falta de luz que provocou seu cancelamento. Na posse da nova legislatura da Câmara de vereadores Melo produziu a sua própria realidade bifurcada típica dos seus apoiadores bolsonaristas. Na iminência de mais uma tragédia ambiental um discurso fora de contexto onde defendeu o direito de liberdade de expressão para defender a ditadura. Junto com a posse da fascista Comandante Nádia como presidente da Câmara depois de demonstração de compra de sentença judicial ( a vereadora cometeu crime eleitoral na campanha em um processo onde o próprio governador Leite foi testemunha o discurso de Melo é um aceno de agradecimento a seus chefes e principais apoiadores políticos, e também um sintoma tragicômico de que o discurso do Mestre Obsceno invadiu Porto Alegre, onde o lixo, as ruas alagadas, a proliferação de moradores de rua e a degradação ambiental quase o elegeram em primeiro turno.
E aí meus amigos do Facebook que não moram aqui exclamam “ bem feito para os idiotas que votaram nele”. Isso me lembrou duas cenas. A primeira é do filme da Marvel “Guardiões da Galáxia” onde o personagem Rocket, diante da vitória iminente do vilão pergunta “quem se importa com essa maldita galáxia, ela que se dane”, e Star Lord responde “eu me importo porque eu sou um dos idiotas que vive nela”.
A outra é do famoso livro de Freud “Os chistes e sua relação com o inconsciente”, a famosa anedota em que o personagem pobre se encontra com o ricaço e relata: “Rothschild me tratou como um igual, de modo bem 'familionário'". Aqui vale a máxima de Freud de que o chiste nos salva da realidade alucinatória cruel.
Aqui estamos nós, moradores de Porto Alegre, alagados, falidos, sem luz e comemorando, verdadeiros “FaMELOnários”.
*Fabio Dal Molin é psicólogo, psicanalista, doutor em sociologia, professor da FURG e pós-doutorando do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Clínica e Cultura da UFRGS.
Foto de capa: Divulgação/ César Lopes
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