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Opinião

Ah, mas no governo Bolsonaro a Mídia não se importava…

Ah, mas no governo Bolsonaro a Mídia não se importava…

Artigo por RED
29/12/2022 11:30 • Atualizado em 30/12/2022 12:49
Ah, mas no governo Bolsonaro a Mídia não se importava…

De SANDRA BITENCOURT*

Estamos em contagem regressiva para o progresso e o oxigênio. Em poucos dias voltaremos a respirar, livres da violência institucional e da mediocridade instalada. Isso é essencial para o esforço que precisaremos imprimir na arrumação dos escombros que nos restaram. Os nomes já anunciados para compor ministérios e órgãos nos trazem alívio em regra, embora o pragmatismo tangencie inadequações. Contudo, a maioria é de cidadãos, políticos e profissionais comprometidos na defesa do patrimônio público que lhes cabe gerir, invertendo uma lógica perversa de quem atacou e mutilou a saúde, o ambiente, a educação e absolutamente tudo que deveria ser cuidado. Mas algo nos incomoda e preocupa. O comportamento da tal Mídia, que na nossa percepção faz cobranças excessivas, injustas, de um governo que ainda não começou. Pior, é rígida em demasia, tendo sido tolerante com os abusos de toda ordem praticados, inclusive contra os próprios jornalistas. Repetirá as mesmas orquestrações e estéticas que criminalizaram um governo popular, um partido e a própria política, criando condições emocionais e simbólicas para o descalabro que se seguiu depois?

A resposta não é simples e é com esta complexidade que gostaria de dialogar e propor reflexão. Tudo ficou mais complexo, considerando um fenômeno mundial que produziu novo ecossistema comunicativo, globalizado, hipertextual, saturado e socializado nos seus termos caóticos. A mídia corporativa busca encontrar lugar na interação com essa metamorfose e o seu próprio modelo jornalístico para sobreviver. Nunca tivemos A Mídia, como expressão uníssona e indiferenciada, até porque competem no mercado e não raro nos interesses privados. Ainda contamos com meios de referência, bastante ramificados, mas nossas preocupações com os oligopólios e o poder de influência, são apenas uma parte dos problemas que enfrentaremos nesse campo. Atualmente temos uma enormidade de “veículos”, de modelos de negócios que se monetizam pelo discurso do ódio, por plataformas absolutamente opacas, com camadas e operações tão arbitrárias quanto desconhecidas em sua totalidade. Muitos veículos simulam jornalismo e operam fora do alcance da lei. A Jovem Pan deve ser o exemplo mais cristalino.

Diria, portanto, que a relação com a mídia de referência é o menor dos problemas, porque esta precisa de algum modo operar dentro dos parâmetros jornalísticos, o que obriga a mediar, ouvir, investigar, apurar, dar espaço e pelo menos sustentar verdades factuais. Cabe ao novo governo atenção permanente, resposta imediata, competência comunicativa, disputa simbólica. Não haverá autocrítica midiática pelo apoio à fraude explícita e aos heróis forjados.

Talvez não seja justo, mas é a realidade que disputamos. E vencemos. Nosso campo trabalha dentro da institucionalidade, da racionalidade e dos bons modos, do recato com a coisa pública e do republicanismo. A mim não serve o argumento, “ah, mas no governo Bolsonaro a mídia não se importava” ou “eles podiam ter determinados comportamentos que agora nos cobram”, ou sei lá, “faziam pior”. Isso porque essa inacreditável gestão foi o período mais nocivo, nefasto e criminoso da nossa história. Não cabe paralelo, nem reivindicar equidade de tratamento. Não somos o outro polo (embora a mídia insista em certos termos), simplesmente porque a corja que agora foge nunca esteve no terreno da disputa democrática para ocupar um lugar, ainda que extremo.

Em síntese, penso que é necessário atenção na resposta e na relação com essa mídia, mas sobretudo cuidados redobrados com a nossa própria conduta e capacidade de convencimento. Vai piorar. A extensão da destruição é tanta, que não haverá capacidade de intervenção imediata. A reconstrução é sempre mais penosa e as críticas e cobranças da mídia são sempre mais ferozes com governos de esquerda. Por isso é extremamente importante, desde já, compreender o discurso político como uma mensagem descendente do pódio do poder (acadêmico, político, econômico ou midiático) para a sociedade, com atenção permanente às percepções, afetos, emoções capazes de produzir até o extremo da psicopatia coletiva que temos assistido.

No campo da Comunicação, me parece, o que temos de mais grave no atual contexto é o fenômeno da desinformação. Este, um conceito polissêmico, ou seja, tem quase tantos significados quanto o número de incautos que nele se afogam ou dos espertos que sabendo se movimentar nesse pântano ganham muito dinheiro, notoriedade e votos.

Do ponto de vista semiótico e psicológico, a desinformação parece ser o resultado da falta de adequação do que é comunicado à realidade atual de um objeto. A abordagem das Ciências Políticas e das Relações Públicas assume a desinformação como aplicação de técnicas de manipulação das massas e da opinião pública, enquanto a visão das Ciências da Comunicação e da Informação a considera uma característica natural dos media e de um ecossistema comunicacional claramente saturado (Romero, 2013).

E isso ocorre no mundo. São muitos os esforços teóricos multidisciplinares (tanto de linguistas como de comunicadores, psicólogos, sociólogos e filósofos da informação das escolas norte-americana, alemã, francesa e espanhola) para tentar unificar a própria essência da palavra, seu contexto e aplicações através dos conceitos que cada ciência traz à tona.

Mas empiricamente já entendemos o que acontece. E isso não deve ser uma preocupação de período eleitoral. A duras penas conseguimos manter certa integridade das eleições. Mas a disputa permanece.

Não sei mais se conhecemos, inclusive, quem vota no nosso campo, quais expectativas simbólicas tem, como consome informação e forma sua visão de mundo. Há novas exigências na amplitude do novo “círculo social” que as redes permitem (combinadas com as próprias necessidades do indivíduo, seu contexto dinâmico e seu nível de atividades). Esse ambiente gera nos indivíduos uma supersaturação de informações, um terreno fértil propício não só para ser desinformado de todos os espectros da realidade para a tomada de decisões (Romero, 2012a e 2012b), mas impregnados com a sua própria identidade e com um sentido acrítico do seu ambiente (Gergen, 1992), levando mesmo à indefesa cidadã e ao isolamento cognitivo (Lopez, 2004 ).

Compreender, lidar com o fenômeno, adequar a forma de comunicar, garantir integridade das informações públicas, proteger a memória cívica, restaurar canais e metodologias de participação, debater e criar modos de regulação são tarefas que podem determinar o avanço ou não de todas as outras políticas. É preciso que se perceba a gravidade e a necessidade desse debate. E essa percepção inclui não tratar o tema e o lugar onde esse debate deva ser produzido, como uma moeda possível de negociação e acomodação partidária.

É contagem regressiva para a esperança, mas também para o perigo. Fiquemos alertas.

Referências

Gergen, K. (1992). El yo saturado: Dilemas de identidad en el mundo contemporâneo- Madrid: Paidós.

López, A. (2004). “La desinformación en la aldea global como forma de conocimiento”. Ágora Revista de Ciencias Sociales- , núm. 10, pp. 19-30.

Romero Rodríguez, L. (2013). Hacia un estado de la cuestión de las investigaciones sobre desinformación / misinformación. Correspondencias & Análisis, (3), 319-342. https://doi.org/10.24265/cian.2013.n3.14


*Doutora em comunicação e informação, jornalista, pesquisadora e professora universitária.

Foto: Pixabay

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