Opinião
São Francisco e São Jorge, Einstein e Freud
São Francisco e São Jorge, Einstein e Freud
De LISZT VIEIRA*
São Francisco de Assis dedicou sua vida aos mais pobres, amou todas as criaturas chamando-as de irmãos. Fundou a Ordem dos Franciscanos e morreu no dia 3 de outubro de 1226 aos 44 anos. Foi canonizado cerca de 2 anos depois. Sua festa litúrgica ocorre no dia 4/10, quando se comemora o dia de São Francisco que, sem apelo popular, passa despercebido para a maioria da população.
Dante Alighieri disse que ele foi uma “luz que brilhou sobre o mundo”, e para muitos ele foi a maior figura do Cristianismo desde Jesus, Por seu apreço à natureza, é mundialmente conhecido como o santo patrono do meio ambiente e dos animais. A oração de São Francisco é uma das mais belas orações da religião católica.
São Jorge, santo guerreiro, santo imaginário que teria matado um animal imaginário na Capadócia, ganhou popularidade em todo o Ocidente. No Brasil, pelo sincretismo religioso, é Ogum, o Orixá da Guerra. O dia de São Jorge é festejado e virou feriado no RJ. Segundo a imprensa, a celebração e comemoração do dia de São Jorge este ano no Rio mobilizou 1 milhão de pessoas (haja feijoada!).
Por que razão a mensagem guerreira de São Jorge mobiliza muito mais do que a mensagem de paz e amor de São Francisco? Será que haveria no inconsciente do ser humano uma predisposição à violência e à guerra?
Em sua carta a Freud, datada de 29 de abril de 1931, Einstein começou se referindo à “profunda devoção” de Freud “pelo grande objetivo da libertação interna e externa do homem dos males da guerra”. “Este é o problema: existe alguma maneira de libertar a humanidade da ameaça de guerra?”,
Einstein também formulou outras perguntas: “Como é possível que esta pequena panelinha [a classe dominante] subjugue a vontade da maioria, que tanto tem a perder e a sofrer por uma guerra, a serviço de suas ambições?” “É possível controlar a evolução mental do homem para torná-lo à prova das psicoses do ódio e da destruição?”.
Em resposta, Freud mencionou sua teoria da trajetória evolutiva da violência, que parte do princípio de que “os conflitos de interesses entre os homens são resolvidos pelo uso da violência”. “No início, numa pequena horda humana, era a superioridade da força muscular que decidia quem tinha a posse das coisas ou quem fazia prevalecer sua vontade”. A força muscular é substituída pelo uso de instrumentos, como as armas, que marcam “o momento em que a supremacia intelectual começa a substituir a força bruta”, e o vencedor passa a ser “aquele que tinha as melhores armas ou aquele que tinha a maior habilidade no seu manejo”.
Para Freud, num primeiro estágio da trajetória evolutiva da violência, temos uma situação de “dominação pela violência bruta ou pela violência apoiada no intelecto”. Mas ele identifica uma mudança no transcurso dessa evolução: “O caminho que levava ao reconhecimento do fato de que à força superior de um único indivíduo, podia-se contrapor a união de diversos indivíduos fracos: a união faz a força.” E mais adiante: “A violência podia ser derrotada pela união, e o poder daqueles que se uniam representa, agora, a lei, em contraposição à violência do indivíduo só. Vemos, assim, que a lei é a força de uma comunidade.”
Em continuação, Freud afirma que as guerras só serão evitadas “se a humanidade se unir para estabelecer uma autoridade central à qual será conferida o direito de arbitrar todos os conflitos de interesses”. “Nisto estão envolvidos claramente dois requisitos distintos: criar uma instância suprema e dotá-la do necessário poder. Uma sem a outra seria inútil.”
Freud diz que “a Liga das Nações é destinada a ser uma instância dessa espécie”, mas que a segunda condição não foi preenchida: “a Liga das Nações não possui poder próprio, e só pode adquiri-lo se os membros da nova união, os diferentes Estados, se dispuserem a cedê-lo. E, no momento, parecem escassas as perspectivas nesse sentido.”
Freud segue ressaltando a falta de “uma ideia capaz de exercer uma autoridade unificadora”, e que os “ideais nacionalistas, primordiais em todos os países, operam na direção oposta”. “Portanto, parece que qualquer esforço para substituir a força bruta pelo poder de um ideal está, nas condições atuais, fadado ao fracasso”.
Por fim, diz Freud que “a guerra vai mais enfaticamente contra a disposição psíquica que nos foi incutida pelo processo de civilização; portanto, somos obrigados a ressentir a guerra, a considerá-la completamente intolerável.” Vemos, assim, que Freud mostrou muito ceticismo sobre as chances de supressão dos instintos violentos e da guerra.
“O resultado destas observações, em relação ao assunto em questão, é que não há chance de que possamos suprimir as tendências agressivas da humanidade”. “Quanto tempo temos que esperar até que o resto dos homens se tornem pacifistas?” “Enquanto isso, podemos confiar que tudo o que contribui para o desenvolvimento cultural também está trabalhando contra a guerra.”
O impulso de destruição e morte de Tanatos tem sido mais forte do que o impulso de amor de Eros. Por isso, acho que deveríamos festejar mais São Francisco de Assis do que São Jorge: Onde houver ofensa, que eu leve o perdão / Onde houver discórdia, que eu leve a união. E mais adiante: “Onde há erro, que eu leve a verdade. Onde há desespero, que eu leve a esperança. Onde há tristeza, que eu leve a alegria. Onde houver trevas, que eu leve a luz” (trechos da Oração de São Francisco).
Na história da humanidade, a guerra é a regra e a paz, a exceção. Mas, em vez de abraçar a maioria que preza a violência e a guerra, podemos tentar fortalecer a minoria que luta pela utopia de um mundo baseado na solidariedade, na busca de consenso e na convivência pacífica. Por todas essas razões – e respeitando as opiniões em contrário – em vez do grito guerreiro Viva São Jorge, muitos agnósticos como eu preferem o grito de amor à humanidade e à natureza que foi a vida e a pregação de São Francisco de Assis.
*Formado em Direito e Ciências Sociais, professor universitário, foi político brasileiro, ligado ao movimento ambientalista.
Imagem em Pixabay.
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