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Afinal, em que estágio civilizatório estamos?

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Afinal, em que estágio civilizatório estamos?
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Por PAULO TIMM* Até há bem pouco tempo, havia um consenso acadêmico e até mesmo público de que a humanidade estava avançando no rumo da civilização e que para trás ficavam sociedades mais ou menos “atrasadas” neste processo. A Antropologia Moderna sepultou essa idealização “civilizatória”. Podemos ter níveis tecnológicos e, talvez, institucionais, com a emergência do Estado e da Corporações Privadas, com ou sem fins lucrativos, no curso da História Humana, mas isso não nos autoriza a dizer que são mais “civilizadas”. Não obstante, é ainda comum, mesmo nos discursos políticos, ouvir-se qualificativos pouco edificantes para certos grupos humanos. É o que faziam os gregos que chamavam “bárbaros” todos aqueles que não falavam grego e, certamente, não comungavam dos nobres ideais helênicas. Lamentável. Hoje se sabe que, mesmo aqueles povos ditos “bárbaros”, tinham alta complexidade civilizatória. O mesmo se pode dizer dos povos originários do continente americano, dos povos africanos e do Oriente Médio. Não existem, a propósito, “eleitos”. Isso é pura narrativa ancestral, sempre de fundo religioso, para justificar procedimentos discriminatórios. Mas pode-se, talvez, falar em crises de algumas culturas. Um livro, A CONDIÇÃO DE HOMEM, de Lewis Mumford, um dos grandes sábios do século XX, publicado pela Ed. Globo em 1951 é uma verdadeira enciclopédia para se compreender as visões de mundo (ideologias) – e suas respectivas crises -, desde os clássicos ocidentais até os modernos. Nessa trajetória, o Ocidente imbricou-se, também, com a construção de um modelo de economia de mercado, que acaba misturando reflexões sobre o que seria uma crise estrutural da cultura ocidental e os desafios econômicos do bloco sob hegemonia dos Estados Unidos. Neste sentido, economicista, porque ele o foi, apesar de crítico, um produto do Iluminismo, foi Karl Marx quem primeiro diagnosticou o fim do capitalismo em sua magistral obra “O Capital”. O capitalismo, disse ele, apesar do enorme progresso material, beneficia somente uns poucos, capitalistas, os donos dos meios de produção (as fábricas, os bancos, as minasm as terras e investimentos financeuris), guiados pelo lucro. A massa da população, assalariada, ao contrário, vê-se reduzidos à miséria. Isso gerarua a auto-destruição do sistema. Num sentido mais geral da cultura, outro respeitado filósofo, aliás, O. Spengler (1880-1936), escreveu há já algum tempo “A DECADÊNCIA DO OCIDENTE”. A obra A Decadência do Ocidente, de Oswald Spengler, trata de visionar o destino de uma cultura, por sinal da única no nosso planeta a ter alcançado a sua plenitude, a saber a cultura da Europa ocidental e das Américas. O tema estrito é, portanto, uma análise da decadência da cultura ocidental, hoje espalhada pelo globo inteiro. Mas o propósito é expor uma filosofia com seu método característico, o qual consiste na morfologia comparativa da História Universal. Esse método terá de ser posto à prova aqui. O trabalho divide-se, naturalmente, em duas partes. A primeira, “Forma e Realidade”, toma como ponto de partida a linguagem formal das grandes culturas, esforça-se por avançar até as derradeiras raízes das suas origens, e obtém assim as bases de uma simbólica. A segunda, “Perspectivas da História Universal”, estuda inicialmente os fatos da vida real e, pela análise da prática histórica da humanidade superior, procura extrair a quintessência da experiência histórica, à base da qual poderemos empreender o trabalho de plasmar as formas do nosso futuro”. Outras visões, igualmente estruturais e negativas, têm se seguido, como a do Economista Adolf Kozlick, destacando o CAPITALISMO DO DESPERDÍCIO (El capitalismo del desperdicio. Adolf Koslik | Problemas del Desarrollo). Revista Latinoamericana de Economía (unam.mx): O capitalismo é um sistema econômico que empurra as pessoas, movidas pela propaganda e pelo crédito, ao hiperconsumismo, adquirindo produtos e serviços além do que lhe é essencial à sobrevivência. O resultado mais visível disso nos Estados Unidos é a obesidade, para não falar das montanhas de lixo acumuladas em depósitos, sobretudo pela diminuição planejada do tempo de uso dos produtos. Mais recentemente, outras críticas apontam para a SOCIEDADE DO CANSAÇO. “A sociedade do cansaço” é o nome de ensaio do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han sobre uma enfermidade que está acometendo a sociedade como resposta do corpo para o excesso de positividade e cobrança que a sociedade impõe. Concorrência e seletividade. Finalmente, a SOCIEDADE DE RISCO, título de um livro de Ulrich Beck, 1986, demonstrando que vivemos sob intenso risco em várias esferas da vida. Todas estas reflexões, enfim, apontam para um certo esgotamento do mundo em que vivemos, acrescidas pelo impacto das mudanças climáticas, da vida em megacidades favelizadas e do pavor a uma nova guerra mundial. Porto Alegre e São Paulo, hoje, são exemplos disso. Salve-se quem puder...Ou como diz a Mafalda: - Parem que eu quero descer! *Paulo Timm é economista, escritor, professor universitário e diretor da Rádio Cultural FM Torres RS. Este artigo foi originalmente publicado como Editorial da Rádio Cultural FM Torres RS  Foto: Wilson Dias/Agência Brasil Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.      

Cultura

Programas – de 18 a 25 de outubro de 2024

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Programas – de 18 a 25 de outubro de 2024
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Por LÉA MARIA AARÃO REIS* O programa é reforçar informações verídicas sobre o que se passa no Oriente e os fatos da realidade na região, para esclarecer os que são metodicamente desinformados pela mídia corporativa brasileira. “Israel grande” é o lema do governo atual daquele país. No Líbano, o objetivo é estabelecer controle sobre uma faixa de terra na fronteira libanesa, ocupando-a formalmente e sobre o que resta dos territórios da Palestina e da Cisjordânia. Em seguida, expandir sua invasão para a Síria, o que já está ocorrendo. (Jornal turco Hurriyet de 16/10, citando fontes). A Coordenadora Especial da ONU para o Líbano, Jeanine Hennis, confirmou nesta quarta-feira (16/10): os ataques israelenses visam a infraestrutura civil em todas as partes do país (Agência Sputnik e rádio Al Jadeed). O prefeito da cidade de Nabatieh, no sul, e vários funcionários da prefeitura foram mortos em bombardeio massivo de Israel. Como não pode deixar de ser, Gaza está no centro da nova edição da revista Margem Esquerda. O tema abre com uma importante entrevista com o historiador palestino-americano Rashid Khalidi, por muitos considerado herdeiro intelectual de Edward Said. Na sequência, as análises de Arlene Clemesha, Samah Jabr, Tithi Bhattacharya, Bruno Huberman e Ilan Pappé. Fechando a revista, os versos pungentes do poeta Rafaat Alareer, assassinado em dezembro de 2023 em bombardeio israelense no norte de Gaza, junto com dois irmãos e quatro sobrinhos. Sugestão de leitura: o e-book recém-lançado O Genocídio será Televisionado: Os Crimes de Israel e a Luta por uma Palestina Livre. O trabalho relembra o começo da guerra, denuncia os crimes cometidos pelo estado de Israel em Gaza e as atrocidades ainda cometidas nesse território. E vai além: o apoio hipócrita de potências ‘ocidentais’ e o seu cinismo arrogante. Os autores são jornalistas, escritores, analistas, pesquisadores e porta-vozes da causa Palestina Livre. Acaba de ser inaugurado o Centro de Estudos Palestinos, no auditório Nicolau Sevcenko, iniciativa da Cepal e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Os oradores, nesse dia, foram o escritor Atef Abu Saif, sobrevivente do genocídio, e Milton Hatoum, Francisco Rezek e Paulo Sergio Pinheiro. Na mesma ocasião, foi lançado o livro de Abu Saif, Quero estar acordado quando morrer – Diário do genocídio em Gaza, da Editora Elefante. Sucesso teatral, a turnê do espetáculo duplo do autor e diretor Flavio Marinho chegou ao Rio de Janeiro. Marinho comemora, na mesma noite e no mesmo palco, o sucesso de duas peças de sua autoria, que rodam o país há dois anos: Não Me Entrego Não, monólogo com Othon Bastos comemorando 73 anos de carreira aos 91 anos de idade, e Judy: O Arco-Íris é Aqui, com Luciana Braga festejando 35 anos da carreira de Marinho e o centenário da lendária atriz e cantora Judy Garland, interpretada pela atriz brasileira. O espetáculo Quanta Energia retorna ao Centro Cultural Light, no Rio de Janeiro, celebrando o Dia da Ciência e da Cultura, com apresentações gratuitas em duas sessões diárias, às 10 e às 14h. A peça é conduzida pelos personagens de dois cientistas que utilizam o humor para explicar ao público o tema da energia elétrica de forma lúdica e incentivam o seu uso consciente. O apoio ao espetáculo é da controvertida agência reguladora Aneel, que não fiscaliza os valores que a Enel não investe em São Paulo e, ao que se informa, os envia para acionistas italianos. Mais uma semana cinematográfica neste mês de outubro: o longa-metragem Maria Callas, de Pablo Larraín, marca a abertura da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e, em seguida, terá sessões nos dias 23, às 17h10, no Cinesystem Frei Caneca, e 27 de outubro, às 19h10, no Reserva Cultural. Angelina Jolie faz a célebre cantora de ópera e a tumultuada história de sua vida na cidade de Paris dos anos 1970. O documentário O Menino d’Olho d’Água, de Lírio Ferreira e Carolina Sá, foi selecionado para o IDFA 2024 – International Documentary Film Festival Amsterdam –, um dos festivais de documentários mais prestigiados do mundo. O filme retrata a vida e a obra do querido Hermeto Pascoal, ícone da nossa música, desde lembranças de sua infância no sertão de Alagoas até uma apresentação, em pleno vigor, aos 88 anos. “Ele toca com os pássaros, os sapos e também tocou com grandes músicos, como Elis Regina e Miles Davis. Sua música é universal e é regional ao mesmo tempo”, diz Carolina Sá. Os limites entre a vida e a morte, o real e o fantástico são temas constantes na obra do diretor e roteirista Marco Dutra. Baseado no romance homônimo da autora Ana Paula Maia, Enterre seus Mortos traz Selton Mello interpretando um homem soturno que trabalha como removedor de animais atropelados em estradas e um padre excomungado, Tomás (Danilo Grangheia), como protagonistas. O filme será exibido na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, com sessões no dia 22, às 21h, na Cinemateca Espaço Petrobras, e no dia 24, às 15h40, no Cinesystem Frei Caneca. Ocupa SP, de Gustavo Ribeiro, traz a ideia de como é possível pensar a cidade de forma mais humana e gentil, tornando-a realmente de todos; mas os menos favorecidos, excluídos e marginalizados historicamente precisam lutar para poder ocupá-la. “A discussão sobre como e por que ocupar a cidade é antiga, mas recentemente se nota uma população mais aguerrida em reivindicar esses espaços”, diz o diretor. Estreando na Mostra paulista, será exibido no dia 21, às 20h50, no Espaço Augusta 2; no dia 24, às 16h, no Reserva Cultural 2; e no dia 29, no Cineclube Cortina, às 21h20. Santino, um mergulho no sertão mineiro, do diretor e artista plástico Cao Guimarães, será lançado em Belo Horizonte no dia 24. A estreia nacional será um pouco mais adiante, no dia 14 de novembro. O tema é interessante: seu personagem principal vive dividido entre o ativismo pela preservação da natureza e seu misticismo pessoal. O filme Até que a Música Pare, em cartaz nas telonas, é falado em italian, uma interessante mistura de português e italiano, um dialeto preservado por muitos descendentes de imigrantes radicados no Sul. Coprodução Brasil/Itália, o filme é a história de uma avó “tentando entender o que está passando”, diz Flavia Guerra, a diretora. “Chega a neta com o celular, a internet, o Brasil contemporâneo que passa na TV, e ela quer estar antenada. O filme fala do Brasil e dos conflitos de gerações”. Cine-Concerto, uma ótima novidade do festival de cinema de São Paulo: em determinadas sessões, a trilha musical do filme programado é apresentada ao vivo, na Sala Grande Otelo da Cinemateca Brasileira. Os filmes e suas respectivas trilhas são: A Pedra Sonha com Dar Flor, O Pior Homem de Londres e Surdina. As sessões ocorrerão nos dias 20, 21 e 22, sempre à noite. O programa é procurar entender o que anda errado em Porto Alegre e em São Paulo. Embora os atuais prefeitos dessas capitais sejam candidatos à reeleição, o que significa poder de persuasão, convencimento e influência com a ativação de suas máquinas eleitorais, fica difícil aceitar o seu protagonismo nas pesquisas de segundo turno da disputa. Após as duas catástrofes metropolitanas recentes nessas capitais, com ruas inundadas durante semanas, em uma delas, e com apagão de luz há seis dias na outra, aguarda-se a virada nos resultados finais! *Jornalista Ilustração: Marcos Diniz Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

Cultura

Sentir a Antártica por tabela

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Sentir a Antártica por tabela
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Por SÍLVIA MARCUZZO* Mesmo que meu corpo nunca tenha ido ao Continente gelado, minha mente e a imaginação já foram algumas vezes para lá. Leio e escrevo sobre a Antártica há muito tempo No dia 10 de outubro, foi lançado em São Leopoldo o livro Expedições Antárticas, com fotos incríveis do biólogo Cesar Rodrigo dos Santos. Tive o privilégio de fazer os textos que acompanham a abertura de cada capítulo da obra. O livro conta com uma edição luxuosa em capa dura e foi possível graças ao empenho da Simples Assim, uma empresa gaúcha, com sede em Novo Hamburgo, que apresentou o projeto em um edital da Lei Rouanet, do Ministério da Cultura. O evento marcou a reabertura do Museu do Rio dos Sinos, que ficou fechado após as enchentes de maio. Também estará disponível, até 30 de outubro, uma exposição gratuita com uma seleção de fotos do livro. Todas as imagens contam com um QR code que direciona para a audiodescrição da obra. O projeto foi construído por uma equipe multidisciplinar. Para aproveitar o ensejo, o livro é só a ponta do iceberg do que a proposta engloba: estão sendo desenvolvidas atividades pedagógicas (confira no site do projeto), palestras, entre outras iniciativas de educação ambiental. Também está disponível, até 30 de outubro, uma exposição gratuita com uma seleção de fotos. Todas as imagens contam com um QR code que direciona para a audiodescrição das imagens. Escrevi muito mais do que foi apresentado na obra. O papel tem espaço limitado e o Cesar conta episódios de tirar o fôlego. Fora que há ângulos que explicitam os vários lados do contexto neoliberal em que estamos mergulhados. Sem falar nos resquícios de um governo que desprezou a pesquisa científica que merecem ser desvelados. São peculiaridades sobre a construção dessa obra que, espero, impactem corações e mentes de várias tribos. Entre 2002 e 2017, Cesar viajou em navios de apoio à pesquisa e também em aviões da Força Aérea Brasileira (FAB). Na Antártica, permaneceu em acampamentos e na Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF), onde acompanhou de perto o incêndio que provocou a morte de amigos e prejuízos incalculáveis para a Ciência. Ele e os demais pesquisadores perderam tudo o que tinham naquela ocasião. Os instrumentos e materiais de pesquisa ainda foram reembolsados, mas os pertences pessoais e tudo que tinham guardado não. Ele chegou a embargar a voz ao me contar sobre como foi a decolagem de helicóptero, vendo a fumaça ao longe ao deixar a Estação. Cesar, um bioindicador, das paisagens no gelo às rotas enfumaçadas Para começar, o próprio autor é um bioindicador do momento em que vivemos. Com uma experiência ímpar, biólogo especialista em aves (ele também é taxidermista) e mestre, ele foi demitido da Unisinos em 2019. A universidade jesuíta terminou com seus programas de pós-graduação alguns anos atrás (adoraria saber o que sentiria o Padre Balduíno Rambo numa hora dessas). Para sobreviver, Cesar trabalhou como motorista de aplicativo e depois ingressou como caminhoneiro em uma empresa de transporte de cargas que presta serviços para a indústria de tratores e de derivados de petróleo. Até hoje, pega a estrada com frequência, principalmente para São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Ele me disse que ganha mais com essa atividade do que seus colegas que seguem pesquisando, fazendo pós-doutorado em alguma zinstituição. Antes de bote, agora de bicicleta Quem já foi 15 vezes em missões para ambientes inóspitos da Antártica não gosta mesmo de ficar parado. Hoje ele leva a máquina fotográfica nas suas andanças. E, sempre que pode, continua a registrar aves. Comprou uma bicicleta e a leva junto no caminhão para conseguir se deslocar com agilidade para locais onde a avifauna transita. Posta fotos no Wikiaves. E segue integrando o Clube de Observadores de Aves de Porto Alegre, o COAPOA. Ele capturou cenas que só quem é pesquisador, com autorização para pegar na mão, conferir detalhes, anilhar, consegue registrar. As imagens traduzem a intimidade que ele mantém com a fauna. Na prática, pode nem sempre ser algo tão prazeroso quanto parece. Ficar horas nos arredores de bandos de pinguins significa também ter um olfato resiliente. O cheiro não é nada agradável. Continente gelado gera laços Perdi as contas do número de vezes em que eu e Cesar trocamos áudios e conversamos pelo celular no ano passado. Só fui conhecê-lo pessoalmente depois dos textos quase prontos. A experiência de ter feito esse trabalho, de ter viajado por tabela ouvindo suas histórias, me despertou inquietações. Depois de longas horas de papo, saía empolgada, imaginando as situações que ele descrevera. Detalhes de ocasiões como a amizade entre pessoas de diferentes culturas (lá todo mundo precisa e deve se ajudar), o sumiço de um salame no acampamento (a comida era meticulosamente planejada para ser dividida), a resiliência exigida, onde todos precisam zelar pelo coletivo, são alguns dos enredos que não couberam nas páginas, mas que renderiam outra publicação. Mesmo que meu corpo nunca tenha ido ao Continente gelado, minha mente e a imaginação já foram algumas vezes para lá. Venho lendo e escrevendo sobre a Antártica desde o século passado. Lembro que fiz uma matéria para o jornal impresso Folha do Meio Ambiente nos anos 90 sobre a Plataforma de Larsen, onde o climatologista e professor da UFRGS Jefferson Cardia Simões me emprestou um disquete com o mapa da região mostrando o derretimento da área. De lá pra cá, os ambientes estão cada vez mais expostos ao aumento da temperatura global, isso significa que estão mais verdes. O continente  vem demonstrando há décadas, muito antes dos demais, o impacto do aumento das emissões de gases de efeito estufa (GEEs) na atmosfera. Já perdi as contas de quantas entrevistas fiz com o pessoal do Centro Polar e Climático da UFRGS. Aliás, esse ano, os pesquisadores voltarão para conferir os dados coletados pela base instalada lá. Nessa teia da vida, onde tudo está interligado, o que podemos concluir ou conectar dessa trajetória de um pesquisador que virou transportador de cargas? Triste saber que um cara com esse potencial, com tanto saber, não está atuando na educação ou contribuindo para o avanço da Ciência. Mas, se analisarmos por outros prismas, só o fato dele estar aproveitando seu conhecimento e sua prática para dar palestras, divulgando imagens e espalhando seu repertório em escolas já é um roteiro de como transformar o limão em limonada. Saber como prosseguir superando as dificuldades, os entraves, que nos fazem muitas vezes achar que as coisas não têm jeito, é apenas um dos lados da trajetória do Cesar. A maior parte da tiragem do livro será doada para instituições de ensino e divulgação. Se você se interessou, pode adquirir a obra. Também vale honrar quem acreditou na parceria: patrocínio master da Ventos do Sul, patrocínio da TFL do Brasil, Tramonto Jeep, Baldo, Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul – BRDE, copatrocínio da Courovale, Halo Origem e Calçados Karyby, e apoio da Marinha do Brasil. Para tornar o projeto acessível e inclusivo a todos os públicos, o livro também está disponível no formato EPUB, para pessoas cegas ou com baixa visão. Basta enviar um e-mail para contato@simplesassim.art.br, solicitando o formato. Também é possível adquirir a obra através do site oficial do projeto.   Foto:  Divulgação Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.  

Internacional

Fragmentos de um mundo em convulsão

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Fragmentos de um mundo em convulsão
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Por MARIANA GARCIA  E FELIPE MATEUS* Organizado pelos professores da Universidade de São Paulo (USP) André Singer, Bernardo Ricupero, Cicero Araujo e Fernando Rugitsky, o livro O Segundo Círculo: Centro e Periferia em Tempos de Guerra contempla um mundo em agonia, tomado por insegurança e indefinição. Seus capítulos destacam problemas críticos da atualidade, cujos rumos ainda são incertos, embora suas consequências já se mostrem palpáveis, conforme indicam as tensões que ameaçam desde os valores democráticos até a vida no planeta. A volta da bipolariazação geopolítica e a consolidação do autoritarismo servem de tema central para a obra, costurando suas três partes. As consequências da desagregação social decorrente da supremacia do neoliberalismo são abordadas na abertura da publicação; em seguida, os capítulos tratam das implicações da nova ordem global para a América Latina. A busca, no pensamento de teóricos brasileiros, por respostas para as questões levantadas encerra o livro. Além de viabilizar a publicação, o apoio da Reitoria da Unicamp possibilitou a realização, por Etulain, de uma pesquisa in loco sobre os desmembramentos do Plano Biden. Em um capítulo assinado pelo docente e pelo pesquisador mexicano Jorge López Arévalo, da Universidade Autônoma de Chiapas (México), há uma análise sobre o programa econômico intervencionista do democrata norte-americano e de suas reverberações no contexto mundial. Um dos organizadores da coletânea, Araujo explica que o título do livro é inspirado no clássico A Divina Comédia, de Dante Alighieri, e na ideia do segundo círculo do inferno. A imagem serve, na coletânea, de metáfora para ilustrar o acirramento do quadro desolador deixado pela economia neoliberal, sobretudo nos países centrais. Um contraste em relação à China, que aproveitou a oportunidade para expandir sua indústria e sua atuação internacional. “Embora internamente tenha praticado políticas diferentes, a China se beneficiou da era neoliberal. Olhando para o desempenho da sua economia e sua sociedade, vê-se o país surgindo como a oficina do mundo, o grande polo industrial, com um crescimento econômico gigantesco.” A vitória eleitoral de Donald Trump nos Estados Unidos, em 2016, serve de marco para o livro. Sob comando, pela primeira vez, de um presidente extremista, o país experimentou uma regressão autoritária, ao mesmo tempo em que endureceu suas relações com a China – já então promovida a potência industrial e econômica mundial. De acordo com Etulain, o republicano fez de sua política externa uma bandeira ideológica e passou a interferir nas relações comerciais que eram, até então, bem azeitadas. “Trump aplicou taxas e tarifas à importação chinesa utilizando argumentos marcados por um tom bélico, muito próximo do discurso de ódio que defendia e que se espalhou pelo mundo. Algo, aliás, bem conhecido aqui, no Brasil”, afirma. Ao mesmo tempo que potencializa o risco de uma escalada bélica, a tensão entre os dois países impõe a necessidade de novos alinhamentos, o que pode ampliar a importância dos Estados. Fortalecidos, certos países se beneficiariam no palco das negociações internacionais. Para a América Latina, a reconfiguração sinaliza uma possibilidade de reindustrialização, em razão da disputa entre as duas grandes potências. O filósofo é professor Cícero Araújo; Brasil foi assertivo em relação ao pleito na Vemeziela O Brasil, tradicionalmente pragmático quando se trata de política externa, reúne condições de ganhar maior destaque como liderança regional, concordam os dois professores. “Com Lula [o presidente Luiz Inácio Lula da Silva], o país tem conseguido jogar com o conflito e se manter neutro. Negocia com a China, que tem investimentos no país, mas, ao mesmo tempo, para os Estados Unidos, demonstra interesse em participar da indústria dos chips. Trata-se de uma situação ambígua. Embora essa situação seja perigosa e problemática, oportunidades se apresentam”, diz Araujo. Diante da conjuntura, Etulain põe em xeque a própria classificação do Brasil como país periférico. Sua dimensão continental, aliada à sua abundância de recursos e riqueza cultural, garantem seu status de potência econômica. “[O Brasil] é um país com uma capacidade de rápido crescimento e de se recriar apesar das crises, dos problemas e do lastro de desigualdade e pobreza que carrega. Portanto, se bem governado e bem administrado, pode ser muito promissor.” A habilidade brasileira para dialogar com o restante do mundo o diferencia, por exemplo, da Argentina, compara o economista, referindo-se sobretudo ao atual governo de Javier Milei, que escolheu o confronto e preferiu rejeitar a China, além de recusar a participação nos Brics (organização intergovernamental formada por vários países, entre os quais Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Graças a essa vocação, o governo brasileiro pode atrair fundos e investimentos que impulsionariam um ciclo de gastos, gerando benefícios sociais e melhorando a vida das pessoas, argumenta Etulain. Saindo de um processo de desindustrialização e desinvestimento, o Brasil tem um desafio a enfrentar, pois fazer política econômica envolve conflitos de interesse, debates políticos e implementação de medidas. Por outro lado, a combinação brasileira de disponibilidade de recursos com uma conjuntura marcada pelo atraso, além da dificuldade de inserção nas cadeias globais de produção, exige a definição de políticas econômicas para produção, infraestrutura, investimentos e gastos. “Lula, com muita habilidade política, sabe aproveitar deste momento em que se estreitam as margens de negociação”, opina. Na esfera internacional, a relevância do Brasil não se limita ao seu potencial como provedor e consumidor de mercadorias e serviços. Quando acionado como mediador de conflitos ou para atuar como agregador, o país se destaca. Mais do que suas ações no jogo das grandes potências, como nas tentativas de interceder nas guerras da Ucrânia e na Faixa de Gaza, é na América Latina que sua atuação se faz mais estratégica, defende Araujo. A postura do governo Lula diante do desfecho da última eleição presidencial na Venezuela é citada pelo professor da USP como exemplo do tipo de liderança que o governo brasileiro pode exercer sobre seus vizinhos, uma liderança pautada pela negociação e pela defesa dos preceitos democráticos. Mesmo no caso de antigos aliados. “Ao dizer que era preciso garantir eleições limpas e livres, o Brasil adotou uma postura assertiva, sem precisar fazer alinhamento com a oposição [venezuelana]. E mostrou, assim, serem mais importantes, do que saber se quem está governando o país alinha-se à direita ou à esquerda, a preservação e a promoção das regras democráticas.” Interregno O conceito de “interregno”, emprestado do pensador italiano Antonio Gramsci, surge no livro para traduzir a indefinição e a instabilidade que pairam sobre os tempos atuais. Um cenário que começou a se desenhar em 2008, com o crash da economia, e se materializou com o abalo do ideário democrático. Ao contrário do que aconteceu em crises anteriores, quando países periféricos viram-se tomados por ditaduras, desta vez o colapso se deu justamente onde as instituições democráticas pareciam sólidas, confiáveis e socialmente evoluídas. “Qualquer coisa que acontecesse na política dos Estados Unidos já causaria um efeito no resto do mundo, por envolver a maior potência estatal do planeta. Especialmente nesse caso, ainda houve uma enorme consequência simbólica, pois se trata de um dos berços, senão o berço, da experiência democrática moderna”, analisa Araujo. O epicentro da crise, exatamente onde os cientistas políticos tinham como certos o desenvolvimento e a estabilidade do sistema democrático, borrou politicamente as diferenças entre os Estados tidos como centrais e periféricos. A origem dessa turbulência, segundo as análises presentes no livro, relaciona-se com uma deterioração provocada pelo sistema neoliberal. Embora as grandes empresas norte-americanas tenham se beneficiado da globalização da economia, que permitiu a distribuição de seus produtos mundo afora, a classe trabalhadora desses países sofreu com o desemprego, e o governo, consequentemente, perdeu legitimidade interna. O professor e economista Carlos Etulain: acompanhando, de perto, os desdobramentos do plano Biben nstalou-se assim uma conjuntura propícia para a eclosão de forças políticas autoritárias, observa Etulain. “Houve uma contribuição da ordem neoliberal para desalinhar o tecido social, criando um ambiente favorável ao surgimento de condutas antipolíticas que corroem o ethos da democracia. As queimadas que tomaram conta do Brasil no inverno são emblemáticas dessa situação. Não à toa, são causadas por forças humanas interessadas simplesmente em ampliar a fronteira agrícola, por exemplo.” A ascensão da extrema direita no mundo, esclarece o economista, não pode ser considerada a causa desse quadro. Trata-se, na verdade, de uma consequência do desgaste dos valores democráticos, um fenômeno evidente tanto no discurso de ódio como na descrença generalizada em relação aos governos e a sua capacidade de conduzir a economia. Portanto, conclui Etulain, a ameaça à democracia não estaria nas discussões acaloradas entre a esquerda e a direita, afinal, embates de ideias fazem parte do jogo político. O perigo, alerta, estaria na destruição dos princípios construídos pela humanidade para formular seus acordos e viver em paz. “Partilhando os frutos do progresso”, conclui. A solução contra a falência da democracia, segundo a avaliação dos docentes, depende de os governantes e as nações conseguirem romper com a posição que causou seu estremecimento. Um processo longo e hoje dificultado pelo aumento do pessimismo e do mau humor da população mundial, observa Araujo. “Há um componente psicossocial na crise, que não favorece a superação do quadro.” Apesar do desemprego, do empobrecimento generalizado e da perda de direitos, o filósofo pondera que a ordem capitalista não vem sendo questionada. Ao contrário, sofreu uma naturalização, como se tivesse se tornado parte da paisagem. É o que indicam as discussões em torno de alternativas para sanar a crise contemporânea. “Curiosamente, as soluções aparentemente mais realistas são aquelas que surgem dentro do capitalismo. Um exemplo é a ideia de transformar a natureza em um negócio, por exemplo. Ou mudar completamente a indústria automobilística e fabricar carros elétricos. O raciocínio: se consigo converter o enfrentamento dos danos ao meio ambiente em um projeto compatível com o capitalismo, posso fazer essa agenda prosperar.”   KEYNESIANISMO TIPO BIDEN Desde s implantação em 2021, o Plano Biden investiu o equivalente a três produtos internos brutos (PIBs) do Brasil na economia e na sociedade norte-americanas. Descolando-se do restante do mundo capitalista, o presidente democrata elegeu o pensamento keynesiano como norte para construir um programa de intervenção econômica focado no desenvolvimento de infraestrutura, indústria e tecnologia, na geração de empregos e no financiamento de políticas sociais, sobretudo nas áreas da saúde e da educação. Contrariando, portanto, o receituário neoliberal incensado pela mídia e o mercado financeiro, cuja supremacia, nos Estados Unidos, datava dos anos 1980. Etulain destaca que uma iniciativa do tipo mostra-se rara na história do país, tradicional defensor do Consenso de Washington, do Estado mínimo, dos ajustes e dos cortes de gasto. Entretanto não é inédita. Após o crash da bolsa em 1929, o Estado encampou sua maior empreitada intervencionista, o New Deal. “Sem isso, os Estados Unidos não teriam se tornado o país do pleno emprego, no pós-guerra. Com o Plano Biden, estão demonstrando, como antes, que as economias são capazes de crescer e liderar processos virtuosos de produção e de renda fazendo política econômica”, afirma. Entre fevereiro e abril deste ano, o professor da FCA observou de perto o comportamento do programa de Biden – no livro, algo associado à ideia de um novo americanismo. A partir de sua pesquisa, que envolveu a realização de entrevistas com pesquisadores e especialistas de diversas instituições, como o Banco Mundial e a Universidade de Columbia, Etulain observou uma melhora na condição de vida das pessoas. “Mesmo com a desidratação do plano, em função da oposição republicana, implementaram-se políticas sociais de grande efeito, em grande volume, se comparamos com as de outros países”, afirma. Sua análise destaca a importância simbólica do Plano Biden para o mundo por, afinal, indicar o rompimento, por parte do líder global, com o sistema que havia se transformado em sinônimo da economia norte-americana e que passou a ser adotado praticamente por todos os atores da esfera capitalista. “O receituário neoliberal é a antipolítica econômica, como se a economia pudesse existir por si própria. A experiência do século 20, no entanto, comprova ser preciso gerir as economias.” A principal contribuição do programa do atual presidente norte-americano, conclui o professor da FCA, é mostrar para os demais países a necessidade de empregar uma política econômica que privilegie gastos públicos para impulsionar a indústria sustentável internamente e gerar renda. Em um momento de disseminação de discursos afeitos à extrema direita, que acusam iniciativas intervencionistas de pôr em risco o controle da inflação e a austeridade fiscal, o exemplo dos Estados Unidos revela-se significativo especialmente para os países ditos periféricos, onde a desigualdade social é ainda maior.     Pubçicado originalmente em Jornal Unicamp. Foto: Lúcio Camargo Antoninho Perri/Fotos Públicas  Edição de Imagem Alex Calixto Paulo Cavalheri Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da rme Almeida / CP Memóriademocracia.        

Politica

Nardes, ex-ARENA, usa TCU para blindar Bolsonaro e atacar Lula e o PT

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Nardes, ex-ARENA, usa TCU para blindar Bolsonaro e atacar Lula e o PT
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Por JEFERSON MIOLA* João Augusto Nardes usa o cargo de ministro do Tribunal de Contas da União/TCU para blindar e proteger Bolsonaro e, ao mesmo tempo, para atacar Lula e o PT. Ele não desperdiçou a oportunidade surgida agora como ministro-relator do processo sobre a empresa Enel Brasil, e mais uma vez agiu de modo faccional para atingir o governo Lula. Nardes pretendia aprovar resolução do Tribunal culpando o governo federal pelo apagão em São Paulo, mas “o plenário da Corte de Contas refutou sua proposta por falta de evidências”, noticiou a coluna Painel S.A. do jornal Folha de São Paulo. O Painel diz que o “relatório de inspeção da Enel da área técnica do TCU enviado a ele [Nardes] já mostrava que o governo não teve culpa, nem prevaricou na fiscalização”. Apesar, contudo, de saber previamente da absoluta inconsistência da tentativa de responsabilizar o governo pelo caos, Nardes assim mesmo forçou a barra, mas foi contido pelo plenário do Tribunal, que abortou a manobra dele. A trajetória do Nardes no TCU é coerente com esta lógica de combate permanente a Lula e ao PT. É dele, por exemplo, a concepção intelectual das “pedaladas fiscais”. Com a tese das pedaladas fabricada sob medida para o golpe, Eduardo Cunha e Aécio Neves contrataram Janaína Pascoal, Hélio Bicudo e Miguel Reale Júnior por 45 mil reais [valores da época] para escreverem o impeachment farsesco da presidente Dilma. Em 20 de novembro de 2022, com a democracia ameaçada pelas cúpulas partidarizadas das Forças Armadas e o país na expectativa dos desdobramentos dos quartéis, Nardes transmitiu um áudio à militância fascista relatando que estava “acontecendo um movimento muito forte nas casernas”. Antecipando o terror que finalmente viria a acontecer em 8 de janeiro de 2023, Nardes afirmou que seria “questão de horas, dias, no máximo semana ou duas, ou talvez menos que isso, que vai acontecer um desenlace forte na nação”. “Agora é um confronto decisivo […] Se sente que vai pra um conflito social na nação brasileira”, proclamou aos extremistas. Nardes conhecia detalhes da conspiração, pois mantinha encontros regulares com os comandos militares golpistas, com os quais nutre uma relação de vida inteira. Ele é um agente orgânico da extrema-direita, vem do porão da ditadura; conserva vínculos históricos com a repressão, o militarismo e o extremismo. Iniciou e seguiu toda trajetória política na ARENA, partido da ditadura militar, e nas siglas que o sucederam. Em março de 2023 Nardes foi designado relator do TCU no caso das jóias e diamantes roubados por Bolsonaro e vendidos nos EUA com auxílio de delinquentes civis e fardados. E outra vez agiu a favor dos interesses do Bolsonaro e seus comparsas. O ministro então procrastinou o processo, transformou o ladrão Bolsonaro em depositário fiel dos objetos roubados e concedeu prazo elástico para a devolução das peças. Essas providências foram fundamentais para permitir a “operação resgate” de recompra das jóias em Miami para reincorporação ao patrimônio da União. Apesar do notório envolvimento de Nardes na articulação golpista, ele não foi alvo das operações da Polícia Federal no inquérito que investiga os atentados contra a democracia. E tampouco foi submetido a procedimento administrativo no TCU, que fatalmente levaria à sua demissão do cargo. Em março de 2023 a deputada Reginete Bispo e o deputado Zeca Dirceu, do PT, protocolaram no STF uma notícia-crime contra Nardes pedindo que ele fosse investigado no Inquérito 4.874, dos atentados antidemocráticos. Até o presente, no entanto, ele continua impune e livre para continuar ocupando relevante cargo na institucionalidade que tentou destruir. Não é aceitável que funcionários públicos implicados em crimes graves, como o ministro Nardes, não sejam processados e, se culpados, presos e demitidos do serviço público. Pesam ainda contra este ministro do TCU várias denúncias de corrupção, como é corriqueiro com bolsonaristas. Mas este é um capítulo à parte. É também inaceitável que no desfrute da impunidade, Nardes continue usando o cargo de ministro do TCU como biombo para a militância extremista contra o governo Lula, como faz agora no apagão causado pela Enel em São Paulo.   *Jeferson Miola é jornalista. Texto originalmente publicado no blog do autor.: Gonet na eleição – jeferson miola (wordpress.com) Foto: Divulgação Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da rme Almeida / CP Memóriademocracia.

Internacional

BRICS: como chegar a uma nova moeda de reserva internacional?

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BRICS: como chegar a uma nova moeda de reserva internacional?
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Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.* Os BRICS vêm discutindo há algum tempo a possibilidade de construir arranjos alternativos ao dólar norte-americano e ao sistema de pagamentos ocidentais. A atual ordem – mais correto seria dizer desordem – monetária e financeira internacional, dominada pelos Estados Unidos e seus aliados, se mostra crescentemente disfuncional e insegura. O sistema foi transformado em arma geopolítica para aplicação de sanções, punições e confiscos. Nas últimas semanas, estive em Moscou e participei de três debates  sobre essa temática, em eventos precursores da cúpula dos líderes dos BRICS, que ocorrerá em Kazan, na Rússia, de 22 a 24 de outubro. Tento fazer aqui um resumo das conclusões a que cheguei. O desafio para os BRICS é, antes de tudo, político. Os americanos sempre foram apegados ao que De Gaulle, nos anos 1960, chamava de "privilégio exorbitante" dos Estados Unidos – entendido, em resumo, como a capacidade de pagar suas contas e dívidas simplesmente emitindo moeda. Os EUA  não hesitam em acionar os aliados e clientes que possuem em outros países para minar iniciativas desse tipo. China, Rússia e Irã não são provavelmente muito vulneráveis a esse tipo de pressão. Mas o mesmo não pode ser dito de outros países dos BRICS. Até Beijing pode hesitar em comprar essa briga com Washington. O desafio também é técnico. Construir um sistema monetário e financeiro alternativo requer trabalho árduo e especializado, bem como negociações prolongadas e difíceis. Somos capazes de realizar isso? Acredito que sim. Mas será que fizemos progresso desde que o assunto ganhou as manchetes? Algum progresso foi feito, mas menos do que se poderia esperar. Sob a presidência russa dos BRICS, em 2024, houve tentativas parcialmente bem-sucedidas de avançar. Por exemplo, foi criado um grupo de especialistas independentes, do qual faço parte, que discutiu a reforma do sistema monetário internacional e a possibilidade de uma moeda dos BRICS. O conhecido economista americano Jeffrey Sachs é parte desse grupo.  Mais importante do que isso: a Rússia preparou uma proposta detalhada para um sistema alternativo de pagamentos transfronteiriços baseado em moedas nacionais – um passo importante na direção de um novo arranjo monetário e financeiro internacional. Até agora, no entanto, poucos avanços foram feitos no que diz respeito à questão mais fundamental, que seria criação de uma nova moeda como alternativa ao dólar. E mesmo a discussão da proposta russa de um novo sistema de pagamentos ainda é incipiente. O Brasil exercerá a próxima presidência dos BRICS em 2025 e terá a oportunidade de coordenar a discussão, aprofundar a proposta da Rússia e preparar novos passos.   Limites às transações em moedas nacionais e sistemas de pagamento alternativos O sistema de pagamentos SWIFT, controlado pelos EUA e aliados, é usado sistematicamente como instrumento para punir e ameaçar países e entidades vistas como hostis ou pouco amigáveis. Bancos desses países são sumariamente excluídos do sistema, como aconteceu com a Rússia. Mesmo outros países podem sofrer sanções secundárias, quando procuram transacionar com países ou entidades sancionadas. Por isso, o progresso feito durante a presidência russa na elaboração de alternativas ao SWIFT é, sem dúvida, uma iniciativa muito bem-vinda, que avança na direção de nos livrar da dependência excessiva das moedas e dos sistemas de pagamento ocidentais. Também vêm avançando as transações bilaterais em moedas nacionais entre os BRICS e entre os BRICS e outros países. Crescem, além disso, os swaps bilaterais em moedas nacionais entre bancos centrais, primordialmente com o banco central da China. Contudo, deve-se reconhecer que transações em moedas nacionais e as alternativas ao SWIFT têm suas limitações. A questão essencial, nem sempre bem compreendida, é que a existência de uma moeda de reserva alternativa constitui, em última análise, uma pré-condição para que a desdolarização funcione plenamente. A razão reside no fato de que apenas acidentalmente haverá um equilíbrio nas transações bilaterais em moedas nacionais. Uma moeda de reserva internacional alternativa é necessária para permitir que os países registrem superávits e déficits ao longo do tempo. Na ausência disso, os países têm que recorrer a esquemas custosos equivalentes a escambo – ou então voltar ao dólar americano e outras moedas tradicionais, o que derrotaria todo o propósito do exercício. Um exemplo. A Rússia tem um superávit substancial com a Índia. O comércio e outras transações são realizados principalmente em moeda nacional. Portanto, a Rússia vem acumulando grandes estoques de rúpias. O banco central russo pode não querer manter essa moeda permanentemente em suas reservas, talvez porque a rúpia não seja totalmente conversível e haja dúvidas sobre sua estabilidade. Quais são as suas opções? A Rússia pode tentar dispor desses excedentes em rúpias buscando oportunidades de investimento na Índia ou fazendo um esforço adicional para comprar bens e serviços indianos. Mas isso pode ser difícil e demorado. Ela também pode usar essas rúpias em terceiros países que tenham interesse em obter moeda indiana devido a proximidade econômica com a Índia. Mas isso também pode ser difícil, levando a vendas de rúpias com desconto. Essas alternativas são claramente second-best ou third-best e remetem ao sistema antiquado de escambo, no qual os agentes econômicos trocavam bens e serviços bilateralmente e saíam à cata de terceiros para se desfazer de mercadorias indesejadas e obter em troca mercadorias desejadas. Foi precisamente para evitar esse sistema ineficiente que o dinheiro foi criado para servir como meio de pagamento, padrão comum de valor e instrumento para manutenção de reservas. Pelas mesmas razões, os BRICS precisam de uma nova moeda de reserva como alternativa ao dólar dos EUA e outras moedas tradicionais de reserva.   Uma nova moeda de reserva – a NMR Como poderia ser essa nova moeda? Existem várias possibilidades. Vou tentar apresentar, de maneira sintética, um caminho que me parece promissor. Para uma explicação um pouco mais completa, remeto ao trabalho que preparei para um dos eventos em Moscou (“BRICS:  Geopolitics and monetary initiatives in a multipolar world – how could a new international reserve currency look like?”, 23 de setembro de 2024,  (https://www.nogueirabatista.com.br/). Vamos chamar essa nova moeda de NMR, sigla para "nova moeda de reserva". Um nome anterior interessante era R5, proposto por economistas russos quando eram cinco os países membros dos BRICS e todas as suas moedas começavam com a letra R. No entanto, esse nome ficou prejudicado, pois alguns dos quatro novos membros possuem moedas cujos nomes não começam com a letra R. Não é algo tão importante, claro. Poderíamos chamá-la então de moeda BRICS ou BRICS+? Infelizmente, não. E esse ponto é importante: alguns dos países dos BRICS parecem se opor à ideia, sendo a Índia um exemplo notável. Isso representa uma grande barreira, mas pode ser contornada, como veremos mais adiante. A NMR poderia ter as seguintes características. Não seria uma moeda única, que substituiria as moedas nacionais dos países participantes. Não seria, portanto, uma moeda semelhante ao euro, emitida por um banco central comum. Seria uma moeda paralela, projetada para transações internacionais. As moedas nacionais e os bancos centrais continuariam a existir em seus formatos atuais. Não haveria perda de soberania e nem mesmo necessidade de coordenar as políticas monetárias. A NMR não teria existência física na forma de papel-moeda ou moeda metálica. Seria uma moeda digital, análoga às MDBCs (moedas digitais de bancos centrais – CDBCs em inglês) que estão sendo criadas em vários países. Vale notar, de passagem, que o formato digital substitui em grande parte o papel tradicional dos bancos como intermediários e criadores de meios de pagamento. As MDBCs e a NMR reduziriam o papel dos bancos, desde que não se estabeleça que seu uso ficaria vinculado à posse de uma conta bancária. Os países participantes poderiam constituir um banco emissor – vamos chamá-lo de NAMR, a Nova Autoridade Monetária de Reserva – que seria responsável por criar NMRs e também por emitir títulos – podemos chamá-los de NTRs, novos títulos de reserva – nos quais a nova moeda seria livremente conversível. Os NTRs seriam por sua vez integralmente garantidos pelos Tesouros nacionais dos participantes. Um primeiro passo na direção da NMR poderia ser a criação de uma unidade de conta na forma de  uma cesta de moedas em que o peso das moedas dos países participantes corresponderia  à sua participação no PIB do grupo. O renminbi da China teria o maior peso na cesta, digamos 40%; Brasil, Rússia e Índia, 10% cada; e os 30% restantes poderiam ser divididos entre a África do Sul, Egito, Etiópia, Irã e Emirados Árabes Unidos – admitindo-se que todos os BRICS venham a participar. Essa nova unidade de conta seria uma ponte para a nova moeda. Bem, esse passo relativamente simples, aventado há muitos anos por economistas russos, já poderia ter sido dado. A razão para o lento progresso parece ser a falta de consenso. Há relatos de que a Índia e a África do Sul, presumivelmente por razões políticas, são contra a ideia. A Índia – e isso é apenas uma conjectura – pode não querer desagradar aos EUA em uma questão tão crucial. Talvez porque sinta que pode precisar do apoio americano caso haja uma deterioração nas já tensas relações com a China. O Brasil, ressalto de passagem, também não é invulnerável a dificuldades análogas. Na sociedade brasileira, inclusive dentro do governo Lula, há muitos que se identificam com os EUA e têm laços com círculos empresariais e governamentais americanos. Espero que essas vulnerabilidades e as tensões entre China e Índia sejam superadas. Enquanto isso, cabe perguntar se não poderíamos avançar com base em uma coalizão de países aptos e dispostos. A  NMR poderia perfeitamente ser criada por um subconjunto dos BRICS. Os outros se juntariam mais tarde. Isso é recomendável, na minha opinião, mas esbarra na arraigada tradição de consenso dos BRICS, que marca a atuação do grupo desde o seu início em 2008. No entanto, se nos apegarmos a essa tradição, o meu receio é que não se chegue a lugar algum. A alternativa a algo como a NMR seria a substituição gradual do dólar americano pelo renminbi chinês, a moeda da potência emergente. Isso já está acontecendo, em certa medida. Mas parece duvidoso que se possa avançar muito por essa via. Não se deve perder de vista que a potência emergente é um país de renda média. Tem vulnerabilidades e preocupações não necessariamente presentes nos EUA e em outras nações de alta renda. O que quero dizer é que, no caso da China, o “privilégio exorbitante” poderia se tornar um “fardo exorbitante”. Em outras palavras, ela teria provavelmente dificuldade de atender certos pré-requisitos para que o renminbi possa se estabelecer  como moeda internacional em grande escala. A China estaria disposta, por exemplo, a tornar o renminbi plenamente conversível? Consideraria abandonar as restrições à conta de capital e os controles cambiais que protegem a economia chinesa da instabilidade das finanças internacionais? Aceitaria a apreciação cambial decorrente do aumento da demanda por renminbi como ativo internacional? Essa apreciação não prejudicaria a competitividade internacional e o dinamismo da economia chinesa? É  claro que a  tendência à apreciação poderia ser contida pela venda de renminbi e acumulação de reservas internacionais adicionais. Mas onde a China aplicaria essas reservas adicionais? Em ativos denominados em dólar, euro ou iene? De volta à estaca zero. Portanto, os BRICS. ou um subconjunto de países dos BRICS, devem se preparar para criar uma nova moeda de reserva, que poderia ser um divisor de águas nos assuntos monetários e financeiros globais. Paralelamente, deveriam continuar com a expansão das transações internacionais em moedas nacionais e iniciar a construção de um sistema de pagamento alternativo ao SWIFT. Os BRICS causarão decepção em todo o Sul Global se permanecerem no reino dos discursos, comunicados e proclamações sem avançar em iniciativas práticas inovadoras.   Uma versão resumida deste texto foi publicada na revista Carta Capital.   *Paulo Nogueira Batista é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Publicou pela editora LeYa o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém, segunda edição, 2021. E-mail: paulonbjr@hotmail.com Canal YouTube. Foto: Brics/Divulgação Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.    

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