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Opinião

A verdade é uma ficção?

A verdade é uma ficção?

Artigo por RED
15/04/2024 05:30 • Atualizado em 18/04/2024 22:39
A verdade é uma ficção?

De LÉA MARIA AARÃO REIS*

Anatomia de uma Queda fez estremecer de surpresa e ainda está sacudindo o ‘sistemão’ da indústria cinematográfica constituída com as bilheterias astronômicas que vem alcançando. Em março passado, o filme apresentava um box office de 32 milhões de dólares, além de críticas e análises elogiosas apanhadas de surpresa com a segurança, originalidade e alta qualidade da direção, do roteiro original e da montagem dessa produção francesa filmada no cenário gelado dos Alpes.

Agora, em várias plataformas de streaming* e ainda com a temporada nas telonas, a autora de Anatomy of a Fall, Justine Triet, de 45 anos, amplia sua repentina celebridade. Diretora, roteirista e editora de filmes, até aqui Triet era apenas conhecida nos círculos do cinema francês independente, de autor, e nos grupos de militância política de esquerda. Seu marido, Arthur Harari, é coautor no roteiro de Anatomia de uma Queda, também ele um roteirista premiado que ganhou a Palma de Ouro do ano passado por Melhor Roteiro Original, ao lado da sua companheira.

Originária de família budista vinda da campagne, a cineasta foi criada em Paris. É a terceira mulher a receber a Palma de Cannes de direção, no ano passado, e abocanhou cinco indicações para o Oscar além do prêmio de roteiro, do Globo de Ouro e o importante Cesar, respeitado premio do cinema europeu.

Ela dedicou a premiação aos novos diretores, “àqueles que enfrentam desafios na indústria cinematográfica, e pede maiores oportunidades e apoio para talentos em ascensão.

Segundo a cineasta, o argumento de Anatomie d’une chute tem como foco “destacar o modo como construímos nossas decisões e o quanto elas impactam a nossa vida”.

Mas o filme, com seu final em aberto, entrega bem mais que essa observação destinada a divulgação e à publicidade. Ele insinua que a verdade absoluta talvez não existe e os acontecimentos presenciados e vividos durante a vida de todos nós beiram as ilusões; à semelhança da ponderação budista sobre o assunto.

“É preciso escolher a versão, não a versão da realidade, mas da ficção para cada evento que se impõe”, esse é o recado.

O evento chave de Anatomie d’une chute se inicia em um chalé no coração da cordilheira coberta de neve, próximo da cidade de Grenoble. Um cenário como que paralisado com a queda fatal sofrida por um professor francês, Samuel, (ator Samuel Theis) que ao fazer reparos de reforma na sua casa, desaba, cai da sacada onde estava e morre.

Ao contrário de Samuel, que lutava para ser escritor, a sua mulher Sandra, é uma escritora alemã de sucesso, interpretada pela (também) alemã Sandra Hüller, excelente no seu desempenho forte, um enigma até a última cena. Sandra é a única pessoa presente no local quando ocorre a queda; cochilava em um andar abaixo, com fones de ouvido.

O filho do casal, um adolescente cego que sofrera um acidente de carro no passado (em um dia em que estava sob os cuidados do pai), vem voltando para casa de um passeio pelas redondezas com o seu cão-guia, Messi e é ele, Daniel, (ator Milo Machado Graner, excepcional) quem encontra o corpo de Samuel caído na neve, sem vida.

O caso passa a ser tratado pela polícia e, depois, pela justiça, com três possibilidades: assassinato, acidente ou suicídio. A partir daí se inicia a anatomia da queda, da intimidade da família, e as suspeitas de crime; não de acidente.

A história envereda pelo perfil de filme-de-tribunal onde Sandra é julgada como suspeita de ter empurrado o marido durante uma discussão. Mais uma das brigas em que o casal de vez em quando se envolvia, o marido não conseguindo tempo, segundo ele, para se dedicar também, como a companheira, a escrever. Seu ódio à mulher fica nas entrelinhas.

“Quem é que vai ver esse filme com um casal brigando, com o que parece ser um suicídio, e com um cachorro vomitando?”, brincou Justine Triet durante seu discurso de aceitação do Globo de Ouro. Referia-se ao lance da intoxicação por medicamentos de Samuel e, em outra situação, a intoxicação de Messi. “Mais uma heroína desagradável e acusada do assassinato do marido; um chalé perdido nas montanhas nevadas; uma criança com deficiência visual, um filme com duas horas e meia de duração e um elenco sem estrelas”.

A procura da verdade incerta é a penosa tarefa do promotor, do advogado de defesa de Sandra, (ator Swann Arlaud), dos jurados e do juiz. É também a anatomia de um filme policial, de um filme de tribunal, de um filme que trata da competição sem trégua entre marido e mulher e da culpa (relacionada ao acidente, no passado, que deixou o filho cego).

Todos procurando a verdade em seus depoimentos e argumentação, em suas versões – sinônimos de narrativas, palavra que hoje virou moda – mas, no final, todos escolhendo a sua própria ficção.

Nesse quadro, a escolha do garoto Daniel é decisiva. “Se eu imagino que minha mãe o matou”, diz ele, se referindo ao pai, “não consigo entender; mas se imagino que meu pai cometeu suicídio, acho que consigo entender”.

Filme imperdível.

-Nos catálogos da TV Claro+, Apple TV, Prime Video e ainda em cartaz em cinemas.


*Jornalista carioca. Foi editora e redatora em programas da TV Globo e assessora de Comunicação da mesma emissora e da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Foi também colaboradora de Carta Maior e atualmente escreve para o Fórum 21 sobre Cinema, Livros, faz eventuais entrevistas. É autora de vários livros, entre eles Novos velhos: Viver e envelhecer bem (2011), Manual Prático de Assessoria de Imprensa (Coautora Claudia Carvalho, 2008), Maturidade – Manual De Sobrevivência Da Mulher De Meia-Idade (2001), entre outros.

Imagem: divulgação.

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