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Opinião

A questão democrática

A questão democrática

Artigo por RED
03/06/2023 05:30 • Atualizado em 05/06/2023 10:00
A questão democrática

De LINCOLN PENNA*

Tem chamado atenção a insistente cobrança do compromisso de Lula com a democracia. Acrescida mais recentemente em razão da situação da Ucrânia, por um lado, e da Venezuela, por outro. Ao cidadão menos atento passa a impressão de que o presidente não tem sido coerente em suas falas e gestos com o que se propôs nos dois casos. E dizem essas vozes que cobram esses compromissos ressaltando o fato de ter construído em torno de si uma ampla frente com vistas a barrar eleitoralmente a continuidade do governo bolsonarista, que se tornara uma ameaça à democracia.

Aliás, a questão democrática reapareceu ultimamente no cenário da política mundial como o argumento mais usado para dar suporte à política de contenção do crescente protagonismo da China, tida como um exemplo de governo ditatorial e, portanto, objeto de reparos por parte do modelo de democracia liberal do Ocidente. O reaparecimento de uma OTAN reaparelhada e expandida na direção do novo bloco de países em torno da China e Rússia, sempre em nome da liberdade resgatou a natimorta Guerra Fria, através de sua nova modalidade.

Nunca é demais lembrar um pouco de história relativamente à ideia de democracia. Afinal, o seu uso indiscriminado ao dar um relevo tão grande a ponto de sentenciar países que se afastaram ou não praticam os deveres democráticos dá a impressão falseada da realidade em que vivemos. Claro que com o passar dos tempos os experimentos democráticos incorporam práticas e valores nem sempre presentes nas origens que deram sentido ao vocábulo que ganhou definições de acordo com quem interessa assim tornar público.

O novo “demos” originalmente surgido na velha Grécia adquiriu a partir do ternário sagrado da Revolução Francesa uma dimensão na qual a liberdade só se torna plenamente realizada se a ela se juntar a igualdade e a fraternidade, sonho idealizado e ainda não totalmente realizado. Mas, numa sociedade capitalista tanto a igualdade quanto a fraternidade são impertinentes para a sanha acumulativa da lógica desse modo de produção que ganhou o planeta e busca padronizar as consciências.

A questão democrática é hoje o eixo principal das lutas políticas e ideológicas travadas em todo o mundo pelos que se situam em campos opostos quanto à construção das sociedades contemporâneas, todas visando fundar as bases de suas concepções democráticas, cada qual a sua maneira e de acordo com a sua percepção no que consiste ser o valor da democracia. Há os que a privatizam em torno das instituições monitoradas por quem detém o poder; e, os que se lançam na busca de sua amplitude, de modo a contemplar todas as demandas com vistas à inclusão social.

No Brasil do terceiro mandato de Lula assiste-se a esse embate. De um lado, o presidente que embora eleito por uma frente ampla possui um objetivo do qual não pretende abandonar: o de ampliar as conquistas sociais, que como reformista social sempre o embalou desde os seus tempos de líder sindicalista. A esse desejo incontido e diversas vezes manifestado de diferentes maneiras incorporou a agenda ambientalista e a da defesa dos povos originários, que não sendo incompatíveis de jeito nenhum esbarram, todavia, na ânsia de retomar o crescimento econômico e, com isso, ativar os nossos recursos até para dar fôlego e consistência ao arcabouço aprovado pelo Legislativo.

Trata-se, pois, de um dilema a ser enfrentado por Lula. De um lado o seu compromisso com o ambientalismo e a defesa de nossos irmãos tradicionais, o que o tornou admirado e respeitado internacionalmente, e de outro lado, a necessidade de impulsionar a economia brasileira com medidas que por vezes esbarram exatamente nesses temas que o projetaram junto à comunidade dos países interessados na defesa das medidas de combate à elevação do clima na Terra. Dilema este que positivamente não é de fácil superação a exigir de Lula toda a engenhosidade no trato da ação política, da qual sempre demonstrou ser capaz. Porém, agora mais do que em outras oportunidades o seu tino político deve dar lugar a uma saída que o garanta como chefe de estado não somente legitimado pelas urnas eletrônicas, mas como liderança nacional e popular.

Falta-lhe, talvez, mais desembaraço no que respeita à defesa da questão democrática tal como ela deve ser feita. Não basta estar ao lado de países emergentes e que sofrem a tirania avassaladora de um modelo tido como necessariamente obrigatório para todo o mundo, a defasada democracia liberal, que a rigor nada tem de liberal. É um momento auspicioso para o governante brasileiro aproveitar-se de seu prestígio para deixar claro que a soberania de cada sociedade nacional é senhora dos destinos de seus povos. E não há modelos que sejam exemplares, até porque o histórico desses países detentores desse suposto modelo universal é marcado por agressões e amplas fraturas dos valores democráticos e civilizatórios. Eis a que ponto se chegou para que fique claro o que disse certa vez um velho político: se eleição resolvesse os problemas brasileiros estaríamos há tempo sem eles. Ou em outros termos: se as eleições são importantes, só elas não resolvem os nossos impasses, pois parar mudar estruturas só através de ações transformadoras.

Se essa questão democrática não for enfrentada com determinação, continuaremos a ser reféns do mandonismo exterior. Já não chega o mandonismo local que invadiu as terras devolutas, incentivou a grilagem sem fim e violentou parcelas de nosso povo e ainda hoje possui fortes poderes de mando por intermédio de seus descendentes. A reafirmação da questão democrática em países com passado colonial, neocolonial e ainda a amargar as sequelas da escravidão precisa ser afirmada como uma nação, que tem tudo para completar o legado do ternário sagrado, desde que ponha em prática a liberdade ampliada e efetiva e não apenas formal, direcionar as nossas decisões políticas para tornar a sociedade igualitária tanto quanto possível e, finalmente, construir a fraternidade que merecemos, ao lados dos demais povos do mundo.


*Doutor em História Social, conferencista honorário do Real Gabinete Português de Leitura, professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Imagem em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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