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Opinião

A quem interessa um porto no litoral norte do RS?

A quem interessa um porto no litoral norte do RS?

Artigo por RED
21/10/2023 05:30 • Atualizado em 23/10/2023 09:10
A quem interessa um porto no litoral norte do RS?

De ALLAN LEMOS ROCHA*, CARLOS ÁGUEDO PAIVA** e HELENIZA CAMPOS***

  • Introdução

Um assunto que tem emergido em discussões sobre o sistema logístico do Rio Grande do Sul, em especial entre o empresariado da Serra Gaúcha, é o projeto de Porto Meridional em Arroio do Sal. O projeto portuário do Litoral Norte do estado foi apresentado aos prefeitos da região no dia 30 de novembro de 2018, tendo a empresa DTA Engenharia Portuária e Ambiental como responsável e o município de Torres/RS como destino da infraestrutura. O atual senador Luis Carlos Heinze e o ex-deputado Fernando Carrion são os idealizadores deste projeto; que já foi objeto de avaliação e especulação ao final do II Império e no primeiro Governo Vargas. A conclusão, à época, foi de que o Porto seria inviável em função dos custos elevados para enfrentar os problemas associados a uma costa contínua e sem proteção natural. O problema maior é que o litoral gaúcha não possui uma pré-disposição para instalação de um porto, impondo a construção de uma proteção artificial na extensão da costa. 

Mas há muito mais a considerar do que os custos inerentes à implantação de um porto com proteção artificial para atracação de navios. Diferentemente do último quartel do século XIX e das primeiras décadas do século XX, hoje o Litoral Norte do RS é uma região densamente povoada. Mais: é aquela que apresenta a maior taxa de crescimento demográfico do RS. De sorte que o impacto sobre a qualidade de vida e a dinâmica econômica e demográfica do litoral precisa ser levado em conta na avaliação dos custos e dos benefícios de uma nova infraestrutura deste porte. É fundamental que sejam produzidos estudos técnicos que subsidiem a tomada de decisão, tanto do poder público quanto da sociedade. 

A Análise de Custo-Benefício Social (ACBS) tem como objetivo sistematizar todos os custos e benefícios de uma infraestrutura. Este tema foi discutido na dissertação de mestrado de Allan Lemos Rocha que será defendida no próximo dia 31 de outubro 2023, cujos orientadores foram Heleniza Ávila Campos (PROPUR-UFRGS) e Carlos Aguedo Paiva (PPGDR-FACCAT). A apresentação será aberta ao público e realizada em modalidade remota, sendo o link disponibilizado no dia 30 de outubro.

O presente artigo busca apresentar algumas das contribuições contidas na dissertação, trazendo à baila, também, informações que só foram obtidas após o deposito do trabalho. A estrutura do artigo não seguirá a organização da dissertação. Aqui, vamos focar em suas conclusões finais. Porém, não podemos deixar de fazer brevíssimas considerações sobre a Análise de Custo-Benefício Social e sobre a realidade socioeconômica do Litoral Norte nos dias atuais.

  • Uma síntese do Bem-Estar e Custo-Benefício

A Economia é uma ciência marcada por controvérsias. Mas, dificilmente haverá uma área onde as controvérsias são tão profundas e intensas quanto na Teoria do Bem-Estar Social (TBES). E isto porque tais controvérsias se assentam em dois elementos: 1) na possibilidade (ou não) de comparar os ganhos (e perdas) de bem-estar de indivíduos; 2) na existência (ou não) de benefícios especificamente sociais.

 A primeira controvérsia pode ser exemplificada através de um personagem conhecido por todos: Tio Patinhas. Há teóricos que defendem o ponto de vista de que indivíduos e famílias cujo patrimônio é extraordinariamente elevado sofreriam uma queda de bem estar insignificante se uma parcela pequena de seus recursos fosse redistribuída para indivíduos e famílias que vivem miseravelmente. Estes últimos, por sua vez, teriam um ganho de Bem Estar muito superior à perda imposta ao segmento social que foi “expropriado”. De outro lado, há aqueles que defendem o ponto de vista de que, para algumas pessoas – como o Tio Patinhas – “a número um” tem um valor absolutamente incomensurável. E alegam que o mesmo pode se dar para a número dois, a número três, e a número trilhonésima. De sorte que nenhuma redistribuição é defensável. Pois as psicologias e os parâmetros de bem estar – vale dizer, de custo e de benefício – são incomparáveis. 

 A segunda controvérsia está associada à primeira. Mas introduz um elemento novo. A questão aos benefícios da segurança e da amizade. De acordo com Aristóteles, a amizade real só é possível entre iguais. Somente aqueles que podem receber e retribuir um presente são, efetivamente, amigos. E só entre amigos existe segurança. Só entre amigos e iguais existe a certeza de que não preciso trancar a porta da minha casa, nem contratar seguranças, para defender meu patrimônio. Esta tese veio a ser atualizada por Marcel Mauss, em seu magnífico Ensaio sobre a Dádiva. Mas ela já se faz presente no debate sobre o Bem Estar Social no século XIX, a partir da contribuição de Stuart Mill ao tema. Amartya Sem recupera este princípio de Mill. E o faz de uma forma radical: pretendendo que “Ética” e “Economia” são objetos-siameses. Segundo Sen, o Bem-Estar Social deve ser avaliado como uma categoria rigorosamente … Social. Por oposição, a leitura ortodoxa (e individualista) da Teoria do Bem Estar defende o ponto de vista de que não há uma relação simples e direta entre igualdade, segurança, comunhão (ou comum-unidade) e qualidade de vida. Esta última é definida, primordialmente, pelo acesso a bens e serviços no mercado. E este acesso, por sua vez, é determinado pela renda. De sorte que a depressão da desigualdade só levaria a ganhos para alguns a partir da imposição de prejuízos para outros tantos. E o saldo líquido de ganhos e prejuízos é incomensurável: o que seria de Tio Patinhas sem a sua moeda “número 1”? 

Estas polêmicas tornam a análise Custo-Benefício particularmente árdua. Mas não a inviabilizam. Na verdade, já emergiram alguns consensos. O primeiro é o de que – independentemente dos custos e dos benefícios serem (ou não) comensuráveis (a primeira polêmica), todos os atingidos devem ser considerados. Vale dizer: cada cabeça é uma sentença. No mínimo, por igual. 

O segundo consenso é um desdobramento do primeiro: qualquer avaliação de custo-benefício envolve transparência total em torno do projeto e dos custos impostos ao coletivo. Exemplificando com o nosso objeto. Pergunta-se: a viabilização econômica do Porto Meridional de Arroio do Sal: pressupõe a duplicação da rodovia que une a Serra e o Planalto do RS ao Litoral Norte (a Rota do Sol)? Em caso afirmativo, quem arcará com esta duplicação? Os empresários responsáveis pela construção do porto, o Governo do Estado ou o Governo Federal? Qual o custo dessa duplicação para a sociedade gaúcha? E, aqui, o “custo” envolve duas dimensões: 1) o custo financeiro; 2) o custo de oportunidade. Os dois são indissociáveis. Mas o segundo nos leva à questão que realmente importa: quantos policiais, professores, médicos, enfermeiros, juízes, promotores, funcionários públicos em geral, deixarão de ser contratados? E qual a exigência de reposição desses quadros tendo em vista a idade média dos profissionais ocupados atualmente a das previsões de aposentadoria e substituição? Sem esses dados – que, desde logo, anunciamos: não existem e não vêm sendo considerado no debate – não há como determinar com rigor os custos e os benefícios sociais do Porto Meridional Norte. 

A falta de transparência do processo torna extremamente difícil qualquer ACBS ex-ante. O que vem a ser isso? A Análise de Custo-Benefício Social pode (e deve) ser realizada ex-ante e ex-post. No primeiro caso, ela é a condição para a aprovação do projeto. No segundo caso, ela é a base de avaliação de seu custo e benefício efetivo.  Uma vez que o projeto ainda não foi efetivado, nosso objetivo era realizar uma ABCS ex-ante. Contudo, essa análise foi prejudicada. Não bastasse a própria complexidade do objeto, as polêmicas em torno dos padrões “técnicos” legítimos para sua realização, ainda tivemos que enfrentar mais esse problema: a ausência de informações acerca dos impactos esperados e presumidos do projeto para as finanças públicas. O único que é absolutamente certo é de que haverá impactos. Nenhum porto é exclusivamente privado. Há funções de segurança e alfandegárias que, necessariamente, incidem sobre o setor público. E uma obra de tal magnitude raramente deixa de impor a realização de obras complementares ao Estado. Mais: o custo (e, por extensão, o benefício líquido para a sociedade) da efetivação dessas obras depende do agente público que arcará com as mesmas. Mas sequer há qualquer indicação do que se espera de investimentos públicos e quem seria o responsável pelos mesmos. O que parece óbvio é que os agentes privados não pretendem arcar com a duplicação da Rota do Sol. Se o fizessem, o investimento seria, evidentemente, deficitário.

  • Litoral Norte do Rio Grande do Sul (LNRS)

O Litoral Norte passou de uma população de cerca de 123 mil habitantes em 1970 para 372 mil em 2022, o que representa uma taxa de 202,2. No mesmo período, a população do Estado cresceu apenas 63,2%. Entre 1970 e 2022, o RS apresenta a pior performance demográfica dentre as 27 Unidades da Federação. Nos últimos 12 anos, entre 2010 e 2022, a população do RS cresceu apenas 1,74%, muito abaixo de SC, cuja população cresceu 21,78%. Na verdade, a taxa de crescimento da população do RS é claramente decrescente. Enquanto o Litoral mantém uma performance significativamente elevada. A discreta queda da taxa de variação entre 2010 e 2012 se deve, em grande parte, à ampliação da base de referência. Em termos absolutos, a variação da população entre 2010 e 2022 foi a maior dentre todos os anos censitários: mais de 76 mil pessoas passaram a ter domicílio no Corede Litoral.  E é bom lembrar que a data de referência dos Censos é setembro de cada ano, vale dizer: não há qualquer “inchaço” da variável em função do veraneio. O crescimento demográfico do Litoral deve-se à emergência de um novo padrão de “turista” e ofertante de serviços: o turista permanente, vale dizer, o aposentado que migrou para o litoral e que demanda serviços ao longo de todo o ano todo, estimulando a migração de jovens trabalhadores e empresários que se voltam ao atendimento dessa nova demanda.

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O que importa entender é que o LNRS mantém uma taxa de crescimento expressiva. Entre 2000 e 2010 esta região apresentou um crescimento de 21,64%, e entre 2010 e 2022 esta taxa foi de 25,85%. Enquanto o Estado passou de 4,97% entre 2000 e 2010 para 1,73% entre 2010 e 2022. Os dados sobre população urbana e rural não foram divulgados até o momento. O mapa acima apresenta a taxa de crescimento populacional comparando os Coredes do Estado.

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Entre 2010 e 2022, sete dos dez municípios gaúchos com maior taxa de crescimento demográfico encontravam-se no Litoral Norte: Imbé, Capão da Canoa, Arroio do Sal, Balneário Pinhal, Cidreira, Xangri-lá e Tramandaí. Ele perde o primeiro lugar para Araricá, que se beneficia de uma população inicial diminuta. Vale observar que todos os municípios citados contam com orla, o que vem a corroborar a afirmação de que se trata de novos domiciliados ocupando sua segunda residência de forma permanente.

Só há dois municípios do Corede Litoral que apresentam queda de população domiciliada no período mais recente. Mais uma vez, em contraste com as demais regiões do RS que vem sendo assoladas pela perda populacional expressiva de muitos municípios. Na verdade, entre 2010 e 2022, duzentos e noventa municípios gaúchos (58,35% do total) apresentaram perda absoluta de população. Ainda mais notável: esses 290 municípios representam 71,46% do território total do RS. O que significa que, em quase 2/3 dos municípios gaúchos e em mais de 2/3 de seu território, a cada ano que passa, diminui o consumo e diminui a geração e arrecadação de ICMS para o Estado.

E, portanto, uma pergunta se impõe: qual tem sido a audiência dada aos moradores do Litoral acerca de seus interesses e expetativas com a eventual instalação de um Porto capaz de receber navios de grande calado entre dois dos maiores e mais dinâmicos municípios do território: Torres e Capão da Canoa? Mais uma. Qual o impacto esperado sobre os moradores de Arroio do Sal, um município que ocupou o segundo lugar na taxa de crescimento populacional entre 2000 e 2010 e o terceiro lugar entre 2010 e 2022? E, ainda mais importante, qual o impacto para a dinâmica demográfica do Litoral da instalação de um Porto entre dois municípios – Torres e Capão da Canoa – de alto dinamismo econômico, situados na fronteira com o atrativo litoral de Santa Catarina? Qual o impacto presumível dessa instalação para os setores associados ao turismo do litoral gaúcho, como o comércio de verão, a construção civil e os negócios imobiliários?

É preciso lembrar que, para o RS, contar com uma região cuja população cresce a uma taxa que é 15 vezes mais elevada do que a taxa média do Estado, quatro vezes mais elevada do que a taxa média do Brasil e 1,2 vezes superior à taxa média de SC está muito longe de ser trivial. Qualquer alteração na qualidade de vida da população que vem se dirigindo ao Litoral para usufruir de sua aposentadoria terá consequências extremamente perversas para o Estado e para as finanças públicas. 

Vale lembrar que, de acordo com Reis (2016), a atratividade do Litoral do RS vem diminuindo a cada década, ao mesmo tempo em que é ampliada a atratividade do litoral de SC. A tabela abaixo exemplifica este processo.

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A tabela acima apresenta os fluxos migratórios de pessoas domiciliadas no interior do RS há menos de dez anos da data do Censo e que passaram a habitar, ou o litoral de Santa Catarina, ou o litoral do RS. O fato indiscutível é que 1) o turismo permanente tem papel de destaque na economia do Litoral Norte do RS; 2) a atratividade do nosso litoral é objeto de disputa pelo belo e recortado litoral de SC; 3) qualquer interferência no padrão de reprodução da economia do Litoral Norte que possa ser percebida como uma perda de qualidade de vida deve aprofundar e acelerar  o movimento (já perceptível) de privilegiamento do Litoral de SC em detrimento do RS, com impactos perversos para a Construção Civil e para o valor patrimonial dos domicílios litorâneos. 

  • Os benefícios do Porto Meridional superam seus custos?

Em novembro de 2018 foi apresentado o projeto do Porto Meridional do Litoral Norte do Rio grande do Sul para lideranças do município de Torres. O projeto inicial previa a construção de um porto no município de Torres, ao sul da praia da Guarita.  Porém, segundo os defensores do projeto, após avaliação de batimetria realizada pela Marinha do Brasil (por demanda do Senador Luis Carlos Heinze), identificou-se o litoral de Arroio do Sal como aquele que permitiria a atracação de navios de maior calado. Cabe observar que esta indicação é contraditada por estudo da FURG, que aponta Terra de Arreia, ao sul de Arroio do Sal, como o local de maior profundidade na costa norte do RS. 

Em abril de 2022 foi criada uma frente parlamentar em apoio ao empreendimento. Em março, houve o anúncio da liberação do termo de referência junto ao Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para o Porto Meridional. Com essa nova etapa, viabiliza-se o início do licenciamento ambiental. O projeto já conta com as autorizações da Secretaria Nacional de Portos (SNP) e da Marinha para escavação de área portuária de 2,5 quilômetros da beira-mar.

Este projeto tem forte apoio de grande parte do empresariado exportador da região da Serra Gaúcha, pois alega-se que um percentual significativo dos insumos importados e dos produtos exportados da região são realizados por portos ao norte de Santa Catarina (vale dizer: mais distantes do que o porto de Rio Grande/RS) e que um porto no Litoral deprimiria os custos logísticos. 

Em suas apresentações públicas, a DTA Engenharia Portuária e Ambiental vem alegando que a produção sojícola do Norte do Estado seria a maior beneficiária do porto em Arrio do Sal. Esta afirmação é muito discutível. É importante lembrar que, apesar da denominação, o Litoral “Norte” do RS encontra-se na porção sul do Estado. O RS tem o formato de um losango, e toda a sua costa marítima encontra-se na porção sudeste deste losango. Portanto, não é verdade que, para todos os municípios da “Metade Norte”, Arroio do Sal encontre-se aproximadamente na mesma latitude. Os portos de Imbituba e Itajaí em Santa Catarina encontram-se mais próximos do extremo norte do Estado do que Arroio do Sal. 

Dentre as apresentações do projeto disponíveis na internet, a mais detalhada foi aquela realizada em Arroio do Sal no dia 21/11/2021 e que tinha como público alvo os prefeitos e vereadores dos municípios do Litoral Norte¹. O fato de o empreendimento ser “exclusivamente privado” é salientado em diversas intervenções. Não obstante, sempre que o projeto do Porto é apresentado (inclusive em termos visuais, vale dizer, de acordo com a planta de formato arquitetônico) como um equipamento localizado numa determinada porção do território de Arroio do Sal. Vale dizer: toda a infraestrutura necessária para o acesso ao porto é tomada como “dada”. … Dada por quem? O governo do Estado? O governo Federal? 

Entende-se que, em termos de relevância para a avaliação do impacto do novo equipamento sobre a economia gaúcha e o bem-estar social é aquela que exige a devida avaliação e mensuração dos custos impostos àqueles segmentos da sociedade que não percebem o novo Porto como um benefício, mas, pelo contrário, como um elemento depressor de sua qualidade de vida. Acredita-se que o segmento mais amplo que pode vir a ser prejudicado com o Porto é toda a população do Rio Grande do Sul, que já padece, hoje, da má qualidade dos serviços públicos de segurança, educação, saúde, transporte urbano etc. Não parece crível que todas as obras de infraestrutura necessárias para a viabilização econômico-logística do novo Porto venham a ser assumidas pelos acionistas do Porto Meridional. Eles, com certeza, não pretendem duplicar a Rota do Sol. Mas demandarão com ênfase e denodo esta duplicação tão logo o Porto comece a operar e o evidente gargalo logístico representado pela ligação entre Litoral e Metade Norte do Estado se apresente como um grave problema (que, de fato, é!). Vale observar que o atordoante silêncio dos defensores do Porto acerca desse assunto já fala por si e diz muito. Se somarmos esse silêncio significativo com os resultados das pesquisas acerca da crônica sobrestimação dos benefícios e subestimação dos custos das obras de infraestrutura, a sociedade gaúcha terá motivos de sobra para se preocupar com os impactos do novo Porto sobre as finanças públicas e, por extensão, sobre a qualidade dos serviços públicos em nosso Estado. 

O resultado é que não há qualquer segurança acerca do benefício trazido pelo porto para as firmas exportadoras. Mais: não há sequer como asseverar que o novo Porto trará benefícios para a empresa que assumiu a responsabilidade de construi-lo e administrá-lo posteriormente. Por quê? Por vários motivos. Mas o ponto de partida é simples: as empresas privadas não são imunes a projeções equivocadas. E algumas dessas projeções podem levá-las a realizarem investimentos não-lucrativos. E este pode ser o caso.

Mas se as externalidades negativas do novo Porto podem ser muito significativas e amplamente difundidas sobre a qualidade de vida de todos os gaúchos, há dois outros impactos que não se encontram no nível da especulação e dos meros prognósticos: o impacto sobre a demanda e rentabilidade dos demais portos do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Na verdade, aqui não há apenas “silêncio”. Pelo contrário: repetidas vezes emergem argumentos do tipo: o Porto de Rio Grande não será afetado por qualquer queda de demanda. Quem sofrerá com a perda de clientes serão os Portos de Itajaí e Imbituba. Qual o sentido disso? Trazer prejuízo para os Portos de SC é benéfico para o RS? Em que sentido? Afinal, o objetivo do Porto é a depressão dos custos logísticos dos empresários exportadores ou a depressão da rentabilidade dos portos de SC? 

A construção ou a não construção de um Porto no Litoral Norte só será benéfica para o empresariado interessado se ficar provado que a qualificação do sistema viário em direção aos portos de Itajaí, Imbituba, Triunfo, Pelotas e Rio Grande é incapaz de gerar uma depressão maior de seus custos e uma ampliação maior de seus lucros do que a construção de um Porto no Litoral Norte do RS.

Por outro lado, um dos principais pontos apresentados na dissertação de Reis (2015) é que o Rio Grande do Sul está perdendo uma parcela não desprezível da população aposentada para outros Estados, em especial Santa Catarina. Este é um grupo de pessoas que recebe a aposentadoria do RS, mas não disputa os postos de trabalho, aufere seus gastos de maneira quase integral no comércio local e que demanda uma série de serviços especializados. Portanto, a permanência deste público deve ser tomada como ponto importante nas definições de políticas de planejamento, e os fatores que mais atraem os aposentados são àqueles ligados ao bem-estar.

Ora, a instalação de um porto afeta profundamente a estrutura e a dinâmica de um território. Desde logo, aumenta o tráfego de caminhões, aumentando a poluição atmosférica e visual, e ampliando as chances de acidentes e engarrafamentos nas vias de acesso ao Litoral. A presença de caminhoneiros nos municípios do entorno pode trazer alguma vantagem para o comércio e as hospedarias. O problema é que, onde há concentração de caminhoneiros, como regra geral, emerge um sistema de tráfico de drogas (como cocaína e anfetaminas) utilizadas para combater o sono e atender aos exíguos prazos de entrega de carga. E não haverá apenas concentração de caminhoneiros. Mas, igualmente bem, de marinheiros. E estas duas profissões são hegemonizadas por homens que passam um largo período de tempo longe de suas esposas e namoradas. E que, durante o período de carga, descarga de caminhões e navios assim como de execução dos trâmites aduaneiros ficam relativamente ociosos e buscam atividades de lazer e companhias femininas. O resultado é simples: onde há porto, há meretrício. Não se está dizendo que, na ausência do porto não haveria prostituição. Há e haverá. O que se está dizendo é que a prostituição cresce exponencialmente em torno de áreas portuárias. E não só cresce: ela muda de forma relativa, com o aumento expressivo da prostituição de rua. 

O que importa entender é que a construção e instalação de um Porto no Litoral Norte pode levar a uma queda ainda mais expressiva do fluxo migratório para esta região do RS e o aumento do fluxo migratório para as praias de SC. A depender da intensidade em que este movimento venha a se manifestar, a economia do Litoral Norte poderá sofrer uma perda de expressão e dinamismo com o Porto; exatamente o contrário do que está sendo divulgado pelos defensores do Porto e admitido – a princípio e sem questionamento – por políticos e comerciantes que atuam o Litoral Norte. E se isso vier a ocorrer, as perdas incidirão sobre todas as atividades que se beneficiam do turismo regional, a começar pelo Comércio e pela Construção Civil. A aquisição de novas residências no litoral catarinense levará a um movimento de venda das residências atuais, que deprimirá o valor de todas as construções, sejam novas (com impactos negativos sobre a rentabilidade e sustentabilidade das empresas que atuam nos ramos de construção e negociação de imóveis), sejam já em uso (com impacto negativo sobre o patrimônio de todos aqueles que realizaram investimentos residenciais no Litoral Norte no passado).

Em sua exposição no encontro do dia 21/11/2021, o Senador Heinze salientou que a versão mais elaborada do projeto do Porto que estava sendo apresentada, na oportunidade, para prefeitos e vereadores, já havia sido apresentada anteriormente para o Ministério Público Federal e para as quatro maiores entidades de representação patronal no RS: FIERGS, FEDERASUL, FARSUL E FECOMÉRCIO. Mais uma vez, não é a presença que fala. Mas a ausência.  Nenhuma referência é feita a qualquer sindicato de trabalhadores, aos moradores do litoral, aos operadores dos Portos de Rio Grande, Pelotas, Triunfo, Itajaí ou Imbituba. É como se o Porto não tivesse qualquer impacto sobre a vida dessas pessoas e organizações. Ou, numa leitura menos otimista e complacente, como se a vida, os interesses e as consequências que resultarão para essas pessoas e organizações fossem secundárias, menos importantes e, no limite, irrelevantes. 

Cabe citar que a dissertação final apresenta um conjunto de externalidades que são comuns ao sistema portuário. Estas externalidades não são impositivas, porém exigem que sejam atentadas em qualquer projeto portuário em prol de minimizar ou até mesmo dirimir tais impactos.

No final do mês de julho de 2023, a Agência Nacional de Transporte Aquaviário (ANTAQ) publicou ofício de instrumento convocatório com prazo de 30 dias para empresas pedirem autorização para construção e exploração de instalação portuária na região geográfica do município de Arroio do Sal/RS. Em agosto foram apresentadas três manifestações desfavoráveis ao projeto do Porto Meridional.

A primeira manifestação veio da Câmara de Rio Grande e da Prefeitura de Rio Grande com as seguintes razões: 1) a viabilização do projeto estaria pautada na transferência da carga movimentada nos demais portos do Rio Grande do Sul, e no pequeno volume de cargas movimentado atualmente por portos situados em outros estados; 2) a eventual perda de volume de movimentação do Porto do Rio Grande acarretaria diversos problemas financeiros em relação aos distintos contratos de arrendamento firmados pela Autoridade Portuária, bem como em relação à expectativa de receitas no cais público; 3) a Estrada do Mar não suportaria o trafego previsto; 4) O projeto representa um posicionamento contrário ao Plano Estadual de Logística de Transportes (PELT-RS).

Outra manifestação foi apresentada pelo Porto de Imbituba-SC. Em linhas gerais, demostra preocupação quanto ao Porto Meridional este estar a aproximadamente, 200 (duzentos) quilômetros ao sul do Porto Organizado de Imbituba, e, portanto, dentro da mesma zona de influência (hinterland). A manifestação aborda os seguintes pontos: a) O processo de outorga de TUP, abordando os procedimentos e as competências dos agentes públicos envolvidos; b) O planejamento institucional do setor portuário, indicando os documentos vigentes e as informações divulgadas para orientar investidores; c) As hinterlândias portuárias e a concorrência setorial; d) O estudo apresentado pelo PORTO MERIDIONAL PARTICIPAÇÕES S.A.; e) Investimentos e expansão da infraestrutura no setor portuário; e f) Impactos esperados para o Porto Organizado de Imbituba. Dentre as observações em relação ao projeto, “a avaliação de mercado sequer aponta os players integrantes do mercado, sem abordar cálculos de participação de mercado (market share), participação de capacidades (capacity share) e estruturas de mercado, a exemplo dos indicadores do índice de Herfindahl–Hirschman, ou IHH, que mede a dimensão das empresas relativamente à área de influência, indicando o grau de concorrência entre elas.”

A última manifestação foi enviada pela Portos RS, autoridade portuária dos portos do Rio Grande do Sul, empresa pública estadual. A Portos RS encomendou um estudo denominado: Avaliação da documentação submetida para requisição de autorização para exploração do TUP Porto Meridional no município de Arroio do Sal-RS. Este estudo apontou para diversos riscos relacionados com o empreendimento, desde riscos físicos, como o uso acima do permitido na Rota do Sol, até riscos ambientais, como alteração em áreas de preservação ambiental. Além dos pontos citados acima, a manifestação aponta para informações incompletas, como a não descrição da origem das cargas esperadas. Sendo assim, o projeto tende a retirar cargas de outros portos e não a criar novos players, afetando diretamente os demais portos, sendo possível até mesmo incapacitar outros portos a funcionar por conta de perdas de cargas esperadas.


  • Referências

BRASIL; INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA; CASA CIVIL. Avaliação de políticas públicas : guia prático de análise ex ante. Brasília: IPEA, 2018. v. 1

GIACOMELLI, G. S.; MARIN, S. R.; FEISTEL, P. R. Da economia tradicional do bem-estar à Abordagem das Capacitações e a importância da equidade em saúde para o desenvolvimento humano. Nova Economia, [s. l.], v. 27, n. 1, p. 89–115, 2017. 

LIVELY, J.; REES, J. Utilitarian logic and politics. Oxford: Clarendon Press, 1978. 

MILL, J. S. Utilitarianism. [S. l.]: Bobbs-Merrill, 1971. v. 7

REIS, M. T. O Turismo como elemento de ocupação do Litoral Norte do Rio Grande do Sul: tendências ao turismos permanente. 2015. Dissertação (mestrado em Desenvolvimento Regional) – FACCAT, Taquara, 2015. 


*Bacharel em Estatística e Mestrando do PROPUR-UFRGS.

**Doutor em Economia e Professor do PPGDR-FACCAT.

***Arquiteta, Doutora em Urbanismo e Professora do PROPUR-UFRGS.

¹Há um vídeo da reunião e das principais intervenções. Ele pode ser acessado em https://www.youtube.com/watch?v=E0DtO0FLmwU&ab_channel=Telavinte. Acredito que seja da maior importância assistir esta exposição para que se tenha uma percepção global do projeto e de seus articuladores. Vale observar, contudo, que ele foi editado e não pode ser tomado como a expressão precisa e fiel do debate efetivamente transcorrido. O vídeo completo encontra-se com resolução pior em https://www.youtube.com/watch?v=kcRMmPevPCw.

Imagem aérea de Arroio do Sal/RS – divulgação internet.

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