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O triunfo da irracionalidade

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O triunfo da irracionalidade
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Por CELSO JAPIASSU* Atualmente muito citada, por conta do seu conceito da banalidade do mal, a filósofa Hannah Arendt definiu em ‘As Origens do Totalitarismo’ a transformação das sociedades de classes em sociedades de massas. Nas sociedades de classes os eleitores votavam de acordo com os seus interesses ao passo que nas sociedades de massas os interesses diretos de classe foram substituídos por confusas ideologias que são difundidas e exploradas por políticos demagogos. A União Europeia, fundada sobre valores humanistas, enfatiza nos seus princípios o respeito pela dignidade humana, a liberdade, a democracia e a igualdade.  Dá destaque ao Estado de direito e o respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Por isso não causa surpresa que Viktor Orban e o seu governo de extrema direita na Hungria sejam vistos como um elefante na sala, um fator de desequilíbrio e mal-estar na afirmação política do continente. Orban Viktor, na forma nativa do seu nome, é o líder do partido de extrema direita Fidesz (em húngaro Fidesz – Magyar Polgári Szövetség – União Cívica Húngara). Foi fundado em 1988 sob a bandeira do anticomunismo e de uma ideologia liberal. Assumiu as cores fascistas com a chegada de Orban à sua liderança e hoje é o maior partido político da Hungria. Faz campanha contra os imigrantes e as minorias, embora venha admitindo a chegada de trabalhadores estrangeiros em face da crise de mão de obra num país que envelhece e assiste à diminuição da sua população. É um partido eurocético, o que significa ser contra a união da Europa. O crescimento da extrema direita na Hungria, cavalgado por Orbán e o seu partido, é comumente explicado pelas feridas não inteiramente cicatrizadas dos quarenta anos vividos pelo país num regime comunista de corte stalinista. O Fidesz tem 133 deputados num parlamento composto de 199 representantes.   Sucesso eleitoral Orbán é grande amigo de Jair Bolsonaro e seus filhos e alinha-se com todos os outros líderes de extrema direita na Europa, como o italiano Matteo Salvini, a francesa Marine Le Pen, o português André Ventura e os alemães Jörge Meuthen e Tino Chrupala, do AfD-Alternativa para Alemanha. Juntos, pretendem reunir numa força única toda a extrema direita que hoje existe nos vários países europeus. A nova lei eleitoral aprovada pelo parlamento com maioria do Fidesz, a falta de tradição democrática e a divisão de uma oposição que recusa a se unir têm sido a explicação para o sucesso eleitoral do extremismo de direita. Até os ciganos, que constituem uma minoria segregada e oprimida pelo regime, votaram em sua maioria em Orbán. Assim como também as classes mais pobres. Como seria possível votar contra os próprios interesses? Atualmente muito citada, por conta do seu conceito da banalidade do mal, a filósofa Hannah Arendt dá a resposta quando define em As Origens do Totalitarismo a transformação das sociedades de classe em sociedades de massas. Nas sociedades de classes os eleitores votavam de acordo com os seus interesses ao passo que nas atuais sociedades de massas os interesses diretos de classe foram substituídos por confusas ideologias que são difundidas e exploradas por políticos demagogos. Jean Baudrillard, filósofo francês, define a massa. Ela não tem energia própria. Toma a forma que lhe é dada por quem a manipula. Ele vê na massa um corpo de amortização de forças políticas e sociais, um corpo que absorve “toda a eletricidade do social e do político e as neutraliza, sem retorno.” O conformismo é um dos pilares essenciais das sociedades de massa. O tipo de político que Orbán, Bolsonaro e Trump representam não possui realmente qualquer ideologia, a eles interessa apenas aumentar o seu poder. E suas falas dirigem-se principalmente aos seus seguidores que constituem a massa por eles manipulada.   Provocações e discriminação Orbán tem um histórico de provocações aos fundamentos da União Europeia. Do afastamento da Hungria dos princípios da democracia e do estado de direito à violação dos direitos das minorias, tem criado constante mal-estar na comunidade dos 27 países, como no caso do fechamento de jornais e universidades críticos ao seu governo. A última da sua série de violações foi a aprovação de uma lei discriminatória dos direitos das comunidades LGBTQ, com a proibição de qualquer referência ao assunto na imprensa e nas escolas até a idade de 18 anos. A motivação seria a de deixar aos pais a liberdade de escolher os valores de como educar os filhos. A lei é discriminatória ao induzir a ideia de que a homossexualidade se transmite por contágio e pela alusão à pedofilia. Numa reunião do Conselho da Europa, o chefe do governo de Luxemburgo, Xavier Betel, que se assume publicamente homossexual disse diretamente a Orbán: “Eu não escolhi ser gay. Mas sou gay. É o que eu sou. A minha mãe odeia que eu seja gay, e eu tenho que viver com isso. Mas há muitos jovens gay que não conseguem viver com isso e cometem suicídio. E tu vens agora dar força à estigmatização e à discriminação de jovens LGBTIQ com esta lei. É muito mau. É terrível. Trata-se de direitos básicos, do direito de ser diferente”. Mark Rutte, o primeiro-ministro dos Países Baixos, disse não ter memória de uma sessão semelhante, com os líderes abertamente lançados ao ataque contra um dos membros. E sugeriu que a Hungria abandonasse a União Europeia. Os direitos e a liberdade individual estão na base das democracias, que não permitem a discriminação étnica, política, religiosa, de gênero ou qualquer outra. Um conjunto de valores democráticos e liberais são o fundamento mais sólido da integração europeia. Orbán diz defender os valores cristãos, que seriam os verdadeiros valores europeus. Prega o que chama “uma democracia iliberal” e acusa de traição a centro-direita originária da democracia-cristã. Sabe que não está sozinho, tem a companhia dos partidos populistas da extrema-direita europeia, o que lhe permite afirmar: “Os tempos mudaram e se, há 30 anos, nós acreditamos que a Europa era o nosso futuro, hoje compreendemos que somos nós o futuro da Europa”.   Celso Japiassu é autor de Poente (Editora Glaciar, Lisboa, 2022), Dezessete Poemas Noturnos (Alhambra, 1992), O Último Número  (Alhambra, 1986), O Itinerário dos Emigrantes (Massao Ohno, 1980), A Região dos Mitos (Folhetim, 1975), A Legião dos Suicidas (Artenova, 1972), Processo Penal (Artenova, 1969) e Texto e a Palha (Edições MP, 1965). Foto de capa:  Divulgação Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.                      

Justiça

O entorno de Lula e a comunicação

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O entorno de Lula e a comunicação
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Por RUDOLFO LAGO* do Correio da Manhã Brasília Na avaliação de um dos fundadores do PT, uma das grandes diferenças que há entre o terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva e os dois anteriores, é a composição do entorno mais próximo do presidente. É o que ele chama da força atual da "Turma de Curitiba" em contraposição à força anterior da "Turma de São Bernardo". Grato com aqueles que lhe deram mais apoio durante seu tempo de prisão, Lula os trouxe para perto neste seu governo. É a "Turma de Curitiba". Com uma participação bem menor dos conselheiros tradicionais que mais o acompanhavam desde o início da carreira política a partir do Sindicato dos Metalúrgicos. A "Turma de São Bernardo". A começar pela própria primeira-dama Janja da Silva.   Pimenta Isso se reflete na comunicação do governo, que Lula criticou na semana passada, e dá agora sinais veementes de que deverá mudar. O secretário de Comunicação da Presidência, Paulo Pimenta, é um dos nomes da "Turma de Curitiba", cidade onde Lula ficou preso.   Conselheiros O que muitos criticam é que esse novo entorno de Lula parece ter menos capacidade de atuar como conselheiros. Muito idolatram o presidente, sem a mesma condição de alertá-lo para eventuais rumos errados, como no passado faziam Luiz Gushiken ou José Dirceu.   Troca na comunicação é cogitada há tempos Edinho Silva perdeu eleição em Araraquara | Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil     Quando Paulo Pimenta foi deslocado para a Secretaria Extraordinária criada para dar solução ao drama das enchentes no Rio Grande do Sul no ano passado, já havia a intenção de mudança permanente. O governo apostava na possibilidade de produzir uma virada política no Sul, onde Lula é menos popular, a partir dos esforços. Mas a deputada federal Maria do Rosário acabou perdendo a eleição para o prefeito Sebastião Melo, reeleito. Pimenta voltou para a comunicação. Mas, na sua ausência, já atuavam mais diretamente o marqueteiro da campanha de Lula, Sidônio Palmeira, e o prefeito de Araraquara, Edinho Silva.   Sidônio e Edinho Sidônio e Edinho tiveram forte participação nas mudanças que aconteceram quando Lula mudou o slogan do governo num esforço para se aproximar dos segmentos evangélicos, cada vez mais importantes na sociedade brasileira, especialmente nas camadas mais baixas.   Não deu certo Havia uma preferência inicial pelo nome de Edinho Silva. O que se dizia, então, é que Edinho cumpriria seu mandato de prefeito, e poderia vir depois que elegesse sua sucessora, Eliana Honain. Não deu certo. Ela perdeu as eleições em Araraquara para Dr. Lapena, do PL.   PT Na verdade, mais que retornar à Comunicação, o desejo de Edinho era ser o próximo presidente do PT, ao final do mandato de Gleisi Hoffmann. Essa ainda é uma possibilidade. Gleisi pode assumir um ministério. Mas a derrota em Araraquara produziu abalos para Edinho.   Resultados De qualquer forma, há um diagnóstico geral de que o governo não tem conseguido reverter em popularidade ganhos, como o crescimento do país, ou a vitória diplomática que teve agora na assinatura do acordo do Mercosul com a União Europeia. É a sacudida que se quer.     *Rudolfo Lago é jornalista do Correio da Manhã / Brasília, foi editor do site Congresso em Foco e é diretor da Consultoria Imagem e Credibilidade   Artigo originalmente publicado no Correio da Manhã   Foto de capa: Pàulo Pimenta faz parte da "Turma de Curitiba" | Foto: José Cruz/Agência Brasil Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

Militar

Rumos para o quartel atordoado

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Rumos para o quartel atordoado
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Por MANUEL DOMINGOS NETO* Como o general arranjou o dinheiro entregue aos facínoras que abateriam autoridades? O rol dos delatores premiados deve crescer. Mais denúncias corrosivas surgirão. Caixas pretas podem ser abertas. O sensacionalismo dos jornais manterá a prolongada tritura da imagem do militar. O festival de ambições mesquinhas, rivalidades deletérias, rixas pessoais, expedientes sórdidos e infindáveis procedimentos à margem da lei não tem prazo para terminar. A ignomínia dos que pretendiam incendiar o país e assumir o poder de costas para a Lei nutrirá cotidianamente a fereza do brasileiro mediano. A exposição negativa do quartel é o preço da jornada macabra, iniciada bem antes do governo Bolsonaro. A quebra da institucionalidade sobrepassa a tentativa tabajara de mantê-lo no poder de qualquer jeito. O planejamento de assassinatos e o quebra-quebra nos palácios resultam de processo alongado e ainda mal descrito. Para recompor sua imagem, o quartel terá que responsabilizar os que, por décadas, açularam as entranhas do ultraconservadorismo e exaltaram a ditadura. Os lances visando a imposição de um regime autoritário incluem as prisões arbitrárias do mensalão, a interrupção do mandato de Dilma, a condenação Lula, o acicate dos milhões de integrantes da “família militar”, a condução grotesca de Bolsonaro ao Planalto, a pregação negacionista durante a pandemia, a busca alucinada de sinecuras na administração pública, as operações psicológicas visando interferir no humor popular, os conluios com estrangeiros inimigos do Brasil e a contestação das urnas eletrônicas. Os comandantes refratários ao ativismo político nos quarteis perceberam tardiamente o potencial desagregador da militância ultrarreacionária nas fileiras. Comparações de quadros históricos são sempre questionáveis, mas seria difícil lembrar constrangimento moral do castrense como o que hoje atordoa o quartel. Aos poucos, os sicários estão sendo incriminados. Alguns serão expulsos com desonra das corporações, configurando caso raro na história nacional. O democrata brasileiro terá seu momento alegre com a prisão de ícones do golpismo. Que pense nos animais domésticos, nos autistas, e festeje sem soltar foguetes. A recomposição da imagem das fileiras exige expurgos arriscados. Pode haver quebra da cadeia de comando. Chefes serão testados. Desavenças entre as corporações podem eclodir. O marinheiro escancarou essa semana sua indocilidade agredindo quem lhe garante o soldo. O golpismo parece momentaneamente contido. Mas vale lembrar: trata-se de recurso inerente ao ultraconservadorismo, que mostrou força nas últimas eleições. Veleidades de democracia, soberania e desenvolvimento socioeconômico persistirão combatidas. Lula governa fortemente contingenciado. Na peleja ideológica em curso, parece não sobrar espaço para mudanças sociais imprescindíveis. Não obstante, cabe debater a construção da legitimidade do quartel porque, sem instrumento de força respeitado, o Estado soberano e democrático é uma quimera. Que tal algumas iniciativas em benefício da Defesa Nacional? O Brasil precisa se inserir dignamente em cenário global que anuncia guerra generalizada. Na busca de legitimação, as fileiras podem ganhar pontos suprimindo gastos perdulários e se preparando para guerrear de verdade. A extinção de centenas de unidades militares inúteis para responder ao agressor estrangeiro seria aplaudida. O avanço na capacidade aeronaval, também. O estrangeiro pérfido não será abatido com tiros de fuzil. Rambos não impedirão um eventual bloqueio de nosso comércio internacional. Precisamos de mísseis hipersônicos, aeronaves, barcos, drones e satélites inteiramente fabricados aqui, com o saber brasileiro. A dependência externa em armas e equipamentos atesta o fracasso da Defesa Nacional. É hora de redução de efetivos em benefício de uma capacidade defensiva real. Para afirmação da soberania, o gesto de maior significado seria o fechamento das obsoletas comissões militares na Europa e nos Estados Unidos, heranças das guerras mundiais reveladoras de um atrelamento que nos fez mal. Apelos à coesão nacional seriam fundamentais. O mais espetacular seria um agradecimento do Comando da Marinha ao Almirante Negro. Ninguém contribuiu mais que João Cândido para reduzir a pecha escravista da Armada. Entretanto, o ponto alto da afirmação do quartel como instrumento da vontade brasileira, seria a redefinição de seu papel constitucional. A Carta precisa interditar o uso das Forças Armadas contra brasileiros e destiná-las exclusivamente ao combate aos agressores estrangeiros. A garantia da Lei e da Ordem deve ser entregue às instituições que lidem com a cidadania. A vigilância da costa marítima e da fronteira terrestre são deveres policiais. Segurança Pública não é especialidade militar. O distúrbio de personalidade funcional das fileiras, provindo do regime imperial-escravista, finalmente, desapareceria. Trata-se de passo fundamental para evitar delírios militaristas. Com missão claramente definida, o quartel teria melhor chance de se aprumar. Quem sabe, proteger-se-ia melhor de atordoamentos inglórios e deixaria a sociedade definir seu rumo sem sobressaltos.     *Manuel Domingos Neto é Doutor em História pela Universidade de Paris, escreveu O que fazer com o militar – Anotações para uma nova Defesa Nacional. Foto de capa: Marcelo Camargo/Agência Brasil Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.  

Geral

Mulheres lutam pela igualdade de direitos

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Mulheres lutam pela igualdade de direitos
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Por EDELBERTO BEHS* “Ninguém deve ser molestado por suas opiniões, mesmo de princípio; a mulher tem o direito de subir ao patíbulo, deve ter também o de subir ao pódio, desde que suas manifestações não perturbem a ordem pública estabelecida pela lei”.   Esse foi o Artigo X da Declaração da Mulher e da Cidadã, redigido em 1791 pela dramaturga, ativista política, feminista e abolicionista francesa Olympe de Gouges, pseudônimo de Marie Gouze. O texto foi levado à Assembleia Nacional que, dois anos antes aprovara a Declaração do Homem e do Cidadão. Mas, certamente, foi ignorado, senão ridicularizado.   O Preâmbulo da Declaração da Mulher e da Cidadã dizia que “o sexo que é superior em beleza, como em coragem, em meio aos sofrimentos maternais, reconhece e declara, em presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos da mulher e da cidadã: Artigo I – A mulher nasce livre e tem os mesmos direitos do homem”.   O texto constitucional proposto por Olympe de Gouges defendia o direito à liberdade, à propriedade, à segurança e a resistência à opressão.   O Artigo VI da Declaração do Homem e do Cidadão definia que “a lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através de seus representantes, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, quer se destine a proteger, quer a punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos...” Essa formulação certamente deixou Olympe de Gouges indignada, porque aos olhos da lei as mulheres estavam excluídas.   O Artigo VI da Declaração da Mulher e Cidadã traz a versão feminina: “A lei deve ser expressão da vontade geral: todas as cidadãs e cidadãos devem concorrer pessoalmente ou com seus representantes para sua formação; ela deve ser igual para todos. Todas as cidadãs e cidadãos, sendo iguais aos olhos da lei, devem ser igualmente admitidos a todas as dignidades, postos e empregos públicos, segundo as suas capacidades e sem outra distinção a não ser suas virtudes e seus talentos”.   No período do “terror” da revolução francesa, Olympe de Gouges, que se identificava com os giordinos, foi presa. Jacobinos, que já tinham executado uma rainha, não estavam a fim de tolerarem a defesa dos direitos das mulheres. E Olympe acabou guilhotinada em 2 de novembro de 1793.   No decorrer da história, mais mulheres se somaram à defesa de seus direitos, igualitários aos dos homens. E 157 anos depois da redação dos Direitos da Mulher e da Cidadã, a Organização das Nações Unidas aprovou, em 10 de dezembro de 1948, por 48 votos a favor e oito abstenções, no Palais Chaillot, em Paris, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento que extraiu conceitos das duas declarações levadas à Assembleia francesa.   *Edelberto Behs é Jornalista, Coordenador do Curso de Jornalismo da Unisinos durante o período de 2003 a 2020. Foi editor assistente de Geral no Diário do Sul, de Porto Alegre, assessor de imprensa da IECLB, assessor de imprensa do Consulado Geral da República Federal da Alemanha, em Porto Alegre, e editor do serviço em português da Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC). Foto de capa: @lorenafadul Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

Politica

Os engenheiros do caos

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Os engenheiros do caos
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Por ADELI SELL*            Depois das notícias acerca dos planejamentos de golpe e assassinatos pelos bolsonaristas, fascistas, pelo extremismo sem fronteiras, resolvei reler o livro de Giuliano da Empoli, “Os engenheiros do caos”. Em 2018, Bolsonaro ganhou as eleições com os métodos descritos pelo autor, ou seja, pelo uso dos algoritmos, algo de engenheiros mais do que comunicadores. Foi o que aconteceu com a vitória de Trump, com suas fake news contra Hillary, latinos etc; mesmo mecanismo feito por Casaleggio para turbinar o Movimento 5 Estrelas do comediante Beppe Grillo; igual forma adotada por Cummings para o Brexit, assim foram os feitos de Milo para mudar o estudante radical Orban no mais xenófobo de todos. Não importa a realidade, não importam os fatos, importa o fato relatado, em geral, mentiroso, como os ataques mais grosseiros, expondo o que há de pior num ser humano, ódio contra outro alguém, com a clara intenção de trucidar o adversário, mesmo que nada seja real. Trump é o campeão de fazer um ataque, se pegar muito mal, muda e diz outra coisa, o contrário, não dá explicações, põe nas redes, põe blogs pagos a trabalhar como uma máquina sem parar 24 horas por dia, seja dentro de seu país ou como foi feito por Trump pagando “trolls” russos ou da Macedônia. Aqui, surgiram dezenas de blogueiros de direita, difamadores, com seus domínios fora do país, xingando todo mundo, menos os seus. Para o 8 de janeiro de 2023, outra tentativa de golpe, de acabar com as instituições democráticos, tudo era feito pelas redes sociais, criando grupos que eram contra Lula, contra o PT, contra as esquerdas, com as “velhinhas de Taubaté”, com a “senhora de Tubarão”, com grupos dos Clubes de CACs, de amantes da ditadura, seja quem for, desde que fossem para frente dos quartéis, que fossem a Brasília. A ida deles para Brasília foi mais ou menos o que aconteceu com os camisas amarelas que surgiram da noite para o dia na França. O ensaio fora feito nas Jornadas de junho de 2013 que setores da nossa esquerda querem esquecer e apagar porque colocaram gasolina na fogueira criando o MBL que agora quer ser partido. “Ainda estou aqui”, o filme, veio em boa hora, lotando cinemas, com aplausos ao final, dando um alívio em nossos corações, pois nem tudo está perdido. “Sem Anistia” é um movimento que cresce O Uruguai é um bom exemplo aqui ao nosso lado que não perdoou torturadores, assassinos de irmãos que lutavam pela democracia, pela justiça e pela paz. “Os engenheiros do caos” ainda estão aqui. Não se pode esquecer deles jamais. Ainda estou aqui a cada pouco escrevendo pela democracia!   *Adeli Sell é professor, escritor e bacharel em Direito. Foto de capa: Divulgação Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

Economia

Pacotaço, patrulhaço & especulaço: é nóis!

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Pacotaço, patrulhaço & especulaço: é nóis!
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Por CARLOS ÁGUEDO PAIVA*   1) Introdução: o Pacote e sua Conjuntura Após um mês de muita especulação, brigas, intrigas, vazamentos, mentidos e desmentidos, veio à luz o Pacote Econômico do Ministro Haddad. E veio na hora mais apropriada: junto com o Pacote da PF-Xandão sobre os planos golpistas e o indiciamento de figuras de proa do Governo anterior, a começar pelo próprio ex-Presidente. O trabalho da PF foi tão minucioso que até contumazes apoiadores das hordas bolsonaristas ficaram pasmos. Em debate da GloboNews, Eliane Cantanhêde se mostrou atônita com o “tricô” de altas patentes militares sobre a construção de um Campo de Prisioneiros de Guerra ao estilo de Auschwitz. Por sua vez, a defesa de Bolsonaro adotou a linha que tanto caracteriza o “Mito”: eu não sabia de nada, nunca fui favorável a essa loucura, os militares é que são culpados de tudo. Como de praxe, na hora do aperto, Bolsonaro posa de inocente e abandona o navio junto com os ratos. Que começam a brigar bonito. Aparentemente, todos os envolvidos – sejam os citados e indiciados, sejam aqueles que temem que seus nomes venha a emergir nas investigações - estão “borrados de medo”. Quadro 1 Fonte: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2024/11/fernando-haddad-201cmedidas-vao-gerar-uma-economia-de-r-70-bilhoes-nos-proximos-dois-anos201d     Haddad surfou na onda do Pacote PF-Xandão e incluiu a turma de coturnos nos cortes do seu Pacote de Natal. Mas pegou pianinho. Como se pode ver no quadro acima, a proposta é de que os militares contribuíam apenas com 1 bilhão por ano de 2025 a 2030. No total, contribuirão com R$ 6 bilhões; menos do que 2% dos cortes totais previstos, de R$327 bilhões. E isto na melhor das hipóteses. Pois haverá resistências e negociações no Congresso. Há um sério risco de que essa ousadia dê com os burros n’água. Mas, enfim, a tentiada é livre. E é correta. Na pior das hipóteses, vai impor um debate público sobre a relação custo-benefício de nossas Forças Armadas. No projeto de Haddad, os empresários dão uma contribuição um pouquinho maior. O Ministro propõe um corte de R$ 15,8 bilhões em subsídios e subvenções (4,8 % do total de cortes nos dispêndios). Mais: no Pacote é proposta uma troca: a isenção de IRPF para quem ganha até R$ 5 mil por mês seria compensada pela elevação das alíquotas para quem ganha mais de R$ 50 mil por mês. Mais ainda: nessa faixa de renda seriam incluídos todos os benefícios auferidos; o que envolve acabar com a isenção de impostos sobre dividendos. Se a medida for aprovada, a Estônia ficará sendo o único país do mundo a produzir nosso licor de jabuticaba: a isenção de impostos sobre participação nos lucros das empresas. Mas vai ser difícil. Enfim, vale a briga. Ainda mais complicado vai ser aprovar no Congresso a proposta de cortes nas emendas parlamentares. Haddad propõe cortar R$ 39,3 bilhões em 6 anos; 12,02% do total de cortes do Pacote. Temo que o governo venha a se deparar com resistências até mesmo nos partidos do Presidente (PT) e do Vice (PSB). Tal como estão emergindo resistência para o corte de repasses da União para o Distrito Federal (DF). Esses repasses voltam-se, fundamentalmente, à sustentação do sistema de segurança do DF, sobre o qual recai o ônus de preservar a ordem pública e o bem-estar das lideranças políticas, representações estrangeiras e dos servidores federais lotados na capital do país. Os repasses federais garantem rendimentos diferenciados para as polícias civis e militares do DF, cuja habilidade, competência e rigor no cumprimento de suas obrigações constitucionais foram comprovadas nos dias 12 de dezembro de 2022 (data da diplomação de Lula como Presidente) e no 8 de janeiro de 2023 (uma semana após a sua posse, data do assalto aos prédios dos três poderes). Os novos valores a serem repassados deixarão de ser indexados pela variação das receitas da União e passarão a sê-lo “apenas” pelo IPCA. Para que se tenha uma ideia da discrepância que resulta dessa mudança, projeta-se uma poupança com a (in)segurança no DF mais elevada do que aquela oriunda do cancelamento de todos os subsídios e subvenções para as empresas: R$ 16 bilhões de reais; 4,89% do total de cortes nas despesas. Por sorte (ou seria “por azar”?) os cortes de despesas com militares, com empresários, com emendas parlamentares e com a (in)segurança do DF somados não chegam a um quarto dos cortes totais; mais exatamente, perfazem 23,57% do total previsto. Donde sairá o restante? De dispêndios com a patuleia.   Um terço do total de cortes (R$ 109,8 bilhões; 33,6% do total em 6 anos) vem da nova regra de reajuste do salário-mínimo. Atualmente, o salário é reajustado pelo IPCA mais a variação do PIB de dois anos atrás. Ora, o PIB cresceu 2,9% em 2023 e deve crescer algo como 3,2% no ano corrente. Se o salário-mínimo fosse reajustado pela inflação mais a variação do PIB, os dispêndios do Governo com a previdência social (que conta com parcela expressiva dos benefícios indexados ao salário-mínimo) excederiam a variação máxima do dispêndio governamental a cada ano de acordo com o “Novo Arcabouço Fiscal” (doravante, NAF). O NAF foi proposto pelo Governo Lula em 2023 e aprovado pelo Congresso no mesmo ano e reza que a ampliação dos dispêndios do governo estão limitadas a: 1) 70% do crescimento das receitas; e 2) a um limite máximo de 2,5% a.a. Isso significa dizer que mesmo que o PIB e as receitas públicas cresçam a – por exemplo – 5%, as despesas não podem crescer mais do que a metade desse percentual. Se o salário-mínimo fosse elevado pela variação do PIB, os dispêndios com a Previdência Social (e outros dispêndios governamentais indexados parcial ou plenamente ao salário-mínimo) cresceriam a uma taxa superior ao teto; o que imporia uma realocação de recursos: a elevação extraordinária dos dispêndios previdenciários teriam de ser compensados por variações menores nas dotações da saúde, da educação, da segurança pública, etc. O “problema” é que esta realocação é inconstitucional. A Carta Magna prevê que os dispêndios com saúde e educação devem corresponder, respectivamente, a 15% e 18% das Receitas Correntes Líquidas do Governo Federal. O que também desafia o NAF: se as receitas do governo forem ampliadas à mesma taxa do crescimento do PIB, os dispêndios com saúde e educação teriam de ser ampliados no mesmo percentual. os dispêndios totais do governo, desde 2023, não poderem variar mais do que o “teto” de 2,5%. Quem “paga o pato”? As despesas discricionárias; vale dizer, os investimentos públicos. No Pacote do Haddad, este problema é enfrentado por duas vias: 1) a prorrogação da DRU (Desvinculação das Receitas da União), que dribla a regra constitucional e que vem sendo prorrogada ano após ano desde 1994, quando foi instituída em “caráter emergencial” para garantir a estabilização das contas públicas após o Plano Real; 2) pela diminuição dos aportes ao FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação). De acordo com o Quadro 1, acima, a prorrogação da DRU e as novas regras do FUNDEB serão responsáveis pela poupança de R$ 41,4 bilhões em seis anos, 20,76% dos cortes de dispêndios. Somemos as parcelas: 23,57% do corte de gastos incide sobre o andar de cima (emendas parlamentares, subsídios às empresas, aposentadoria e contribuição previdenciária dos militares e repasses para (in)segurança do Distrito Federal); 33,57%, vem da nova regra de reajuste do salário-mínimo; e, 20,76%, advém da desvinculação das receitas com gastos em saúde e educação e com as novas regras do FUNDEB. No total temos 77,9%. De onde vem os 22,1% restantes? Do Bolsa Família (5,2%), do Benefício de Prestação Continuada (3,67%), do Abono Salarial (que fica restrito a quem ganha até 1,5 salários-mínimos, o que gera uma poupança de R$ 18,1 bilhões em seis anos, 5,53% do total de cortes), de cortes na Lei Aldir Blanc, voltada ao apoio dos artistas (que vão perder 1 bilhão a mais que os militares, “contribuindo” com uma poupança de R$ 7 bilhões, 2,14% do total de cortes), e com a circunscrição de concursos e provimento de cargos (que fecha a conta, contribuindo com pouco mais de R$ 1% da poupança prevista).   2) Patrulhaço & Especulaço Como não poderia deixar de ser em terra brasilis, o Pacote de Haddad vem alimentando as mais diversas polêmicas. Como regra geral, quando o debate se dá entre economistas, opera-se com um conjunto de referências teóricas conhecidas por todos. Não que haja qualquer consenso teórico. Na verdade, pouquíssimas coisas são tão raras na Economia quanto o consenso. A divergência é a norma. Alguns de nós são keynesianos, outros são ricardianos, outros são estruturalistas, outros são neoclássicos, outros são marxistas. E há até os sincrético-ecléticos (que muitos consideram confusos), como este que vos escreve. Mas todos conhecem os fundamentos das distintas matrizes teóricas. E as diferenças são tratadas como aquilo que são: diferenças teóricas. Infelizmente, em parcela expressiva dos grupos “interdisciplinares de esquerda” (vale dizer, onde o debate ocorre entre economistas e não-economistas), o debate sobre a qualidade da gestão econômica do Governo Lula III, sobre a pertinência e consistência NAF, e sobre a eficácia do Pacote de Novembro para controlar a inflação, deprimir a taxa de juros e valorizar o real frente ao dólar ganhou uma dimensão ideológica altamente perversa e pervertida. Os críticos do NAF e do Pacote passaram a ser vistos como “traíras”. E o patrulhaço correu (e continuando correndo) solto. Do meu ponto de vista, isto é puro desperdício de tempo. E tempo é a variável da qual mais carecemos. Temos apenas dois anos até as eleições de 2026. É preciso correr para ajustar o que ainda dá para ser ajustado. Mas o patrulhador dogmático é inflexível em sua posição de poste oficial: correr é o que ele menos quer. Ele tem certeza de tudo e sabe que não há nada para ser melhorado. Como, aliás, ficou provado nos resultados eleitorais de 2024. Não é mesmo? Com o perdão do sincericídio, os verdadeiros inimigos do governo atual são os defensores da “infalibilidade Lulal, Alckimal e Haddadal”. Estes são os verdadeiros inimigos na trincheira. Como não têm nada a contribuir, minam o bom debate, desancando todos os que ousam ter ideias próprias e propostas alternativas. É triste. Mas é da vida. Felizmente, há muito mais do que baba-ovismo entre os intelectuais de esquerda. E eles vêm publicando suas reflexões em diversos veículos da mídia alternativa. Aqui mesmo, neste veículo de reflexão e debates que é a RED, foram publicados dois textos que expressam a polêmica em curso no campo progressista. O primeiro deles – O Pacote de Haddad: entre o teto e o tatame -, publicado no dia 29/11, é de autoria de dois professores da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, André Cunha e Alessandro Miebach. O segundo – A Encruzilhada de Haddad -, publicado no dia 01/12 é dos economistas Adalmir Marquetti (PUC-RS) e André Scherer (Secretaria de Planejamento, Orçamento e Gestão do Estado do RS). Os títulos (e as imagens que os ilustram: vale ver!) já anunciam as diferenças de interpretação. Os quatro autores nos lembram – corretamente – que: 1) o Pacotaço é um desdobramento natural-impositivo do “NAF”; 2) os cortes anunciados são os possíveis dada a atual correlação de forças na política, representada por um Congresso reacionário, um “Mercado” rentista e uma mídia conservadora. Mas há uma diferença sutil no approach dos dois textos: Cunha e Miebach são mais críticos ao NAF, que é percebido como uma “camisa de força autoimposta”. Eles reconhecem que, dado o NAF, os cortes se mostraram impositivos. Mas pretendem – corretamente, do meu ponto de vista – que o problema de fundo é, justamente, o tal “Arcabouço Fiscal”. Diferentemente, Scherer e Marquetti mostram-se mais céticos sobre o grau de liberdade efetiva do Governo Lula III para adotar uma política fiscal menos contracionista. E concluem sua análise afirmando:   Com mais acertos que erros, tem sido louvável a persistência com a qual o Ministro Haddad tem buscado mitigar, nas condições adversas já citadas, a sanha fiscalista dos mercados de modo a causar o menor dano possível à população de menor renda. É importante a preservação do crescimento econômico e a manutenção da busca de alguma distribuição de renda. No entanto, a inflação também não pode fugir ao controle, pois isso feriria profundamente a popularidade do presidente Lula.   Aparentemente, Scherer e Marquetti entendem que, malgrado suas consequências perversas no plano redistributivo, o esforço governamental de deprimir seus dispêndios, eliminando o déficit fiscal e gerando algum superávit nos dois últimos anos da atual gestão, teria desdobramentos positivos no controle da inflação. Pelo menos é o que alcanço entender da última frase da passagem reproduzida acima. Isso não significa dizer que eles pactuam da leitura de Haddad sobre os determinantes da inflação. Até mesmo porque a “leitura” de Haddad é uma incógnita: ele não é economista, não escreve sobre economia e não ingressa em quaisquer debates teóricos. Na verdade, suas manifestações sobre o tema não passam de platitudes convencionais, tais como   Nós precisamos garantira a sustentabilidade da Economia. E uma coisa que pode nos prejudicar é se os gastos do governo se expandirem para além do Arcabouço Fiscal que nós aprovamos no ano passado. Aí nós corremos o risco de ter uma desaceleração da economia, em função de juro, em função de dólar. Então nós precisamos tomar medidas que visam conter essa dinâmica de valorização da despesa. Você vai continuar valorizando o salário-mínimo. Você vai continuar garantindo os benefícios sociais, mas num ritmo que permita a economia se acomodar, para não comprometer o crescimento sustentável. Haddad, Entrevista a Record News 19 horas (30/11/2024)   Com certeza, Scherer e Marquetti não pactuam dessa leitura. Na verdade, tenho sérias dúvidas de que Haddad efetivamente concorde com suas palavras. Afinal, é difícil acreditar que o autor de uma tese de doutorado que defende a atualidade da Crítica da Economia Política de Marx à pretensão (ideológica) de que as relações mercantis sejam naturais pense, realmente, nos termos da passagem acima. Ouvindo-o, ficamos com a sensação de que a Economia seria um sistema simples e natural, com leis claras e imutáveis. A taxa de juros e a taxa de câmbio respondem ao déficit governamental e ao crescimento da dívida de uma forma similar àquela como o gelo reage à exposição a uma fonte térmica (de calor): ele passa do estado sólido para o líquido, a partir de certa temperatura as moléculas da lâmina d’água são capturadas pelo ar e tem início o processo de evaporação; a partir de 100 graus, a água entra em ebulição e, ao fim e ao cabo, evapora integralmente. Simples assim. Para manter a água numa situação “líquida sustentável” é preciso mantê-la a uma temperatura superior a 0 graus e inferior a 20 graus Celsius. Igualmente bem, para manter a economia crescendo de forma sustentável, o juro baixo, o dólar relativamente barato e a inflação sob controle é preciso gastar menos do que se arrecada. Com o perdão de mais um sincericídio, o discurso é tão mecânico e simplório que somos obrigados a supor que o Ministro está representando um papel: o papel de “acalmador do Mercado”. Para tanto, repete os mantras da Faria Lima e dos “jornalistas e especialistas econômicos” que pululam na mídia conservadora. O problema é que essa tentativa de ser o “Lexotan-Rivotril dos Mercados” é inútil. Como ficou demonstrado pelo ataque especulativo contra o real no último mês, que passou de R$ 5,68 por US$ 1,00 para R$ 6,04 por US$ 1,00. O salto ocorreu no final de novembro (quando o pacote já vinha sendo debatido) e persistiu após sua divulgação. A “justificativa” dada pelo “Mercado” foi a de que as alterações no Imposto de Renda – com a isenção para os que ganham até R$ 5.000,00 ao mês; a ser compensada pela elevação da alíquota incidente sobre os que auferem mais de R$ 50.000 no mesmo período – levariam ao aumento do déficit, ao contrário do que o Governo pretenderia. Ora, um dólar mais forte implica em elevação do custo dos importados e dos exportados e, portanto, implica inflação mais elevada. Para combate-la, o mercado aposta na elevação da taxa de juros e, portanto, em maiores dispêndios do Tesouro para a rolagem da dívida e depressão da disponibilidade de caixa para dispêndios não financeiros: traduzindo em bom português: após os cortes, o mercado aposta que o déficit total do governo (primário + financeiro) será ampliado; não diminuído. Se isso não é um tiro pela culatra, não sei o que esta expressão possa significar. Pergunta-se: o mercado está certo? Sim e não. O mercado não é um bom samaritano ou um monge budista; não é um sujeito “moral”. Os operadores do mercado tem uma única meta: ganhar dinheiro. E os ganhos são máximos no jogo especulativo. Se os operadores entendem que uma determinada política econômica levará a desvalorização do real, o “correto” é comprar dólares na baixa e revendê-los, mais tarde, quando o movimento altista cessar. O problema não é o mercado. O problema é o Banco Central. Teoricamente, um Banco Central existe para dar estabilidade e previsibilidade ao circuito monetário-financeiro. O que implica atuar de forma contracíclica, enfrentando os recorrentes ataques especulativos contra a moeda nacional. Para tanto, ele conta com diversos instrumentos, que vão muito além da alteração na taxa de juros básica. Ele pode ampliar a oferta de dólares ou lançar títulos nominados em dólar (swaps cambiais) com vistas a “saciar a fome” por divisas e impedir a desvalorização do real. E o que não falta ao Brasil são reservas e instrumentos financeiros para realizar esta tarefa. Mas não é isto que tem sido feito. Por quê? Por interé$$es, como dizia o tio Brizola. Não resta dúvida que Campos Neto é um economista liberal e, como tal, avesso a intervenções no “mercado”. Mas está muito longe de ser burro. E toda a pessoa inteligente sabe que onde há regras, também há exceções. E ele usou e abusou do direito a excepcionalidades durante o governo Bolsonaro, realizando 113 operações no mercado cambial, com vistas a estabilizar o real e enfrentar ataques especulativos. Só em 2022, o Bacen vendeu US$ 11,5 bilhões. Mas sua postura mudou radicalmente no novo governo. Em 2023, o Bacen não atuou uma única vez no mercado de câmbio. E em 2024 realizou uma única operação de venda: US$ 4 bilhões, em setembro, com compromisso de recompra entre abril e junho de 2025. Em termos líquidos, o Bacen atuou como comprador nos últimos dois anos, adquirindo um saldo de US$ 9 bilhões. Em suma: o Bacen de Campos Neto sob Bolsonaro impunha limites à especulação. O Bacen de Campos Neto sob Lula atua “em apoio ao mercado” nos seus movimentos especulativos. ... É nóis! O que nos permite retornar à fala de Haddad reproduzida acima. Ao “naturalizar” a evolução do dólar e da taxa de juros Haddad – consciente ou inconscientemente – está sancionando a inatividade de Campos Neto, que tem deixado o “mercado livre para se autorregular”. Pior ainda: Galípolo – o futuro Presidente do Banco Central, indicado por Lula com apoio de Haddad – vem dando declarações na mídia de que manterá a política não intervencionista de Campos Neto e que o câmbio flutuará livremente. É nóis 2, A missão. Tá tudo dominado na casa da tia Irene. Tá como o diabo gosta. E podes ter certeza, caro leitor: a turma da Patrulha vai continuar elogiando tudo e chamando os críticos da gestão econômica de “agentes da Kaos”. Como diria o Agente 86: o velho truque da avestruz que põe a cabeça no buraco e deixa a bunda à mostra!,   3) Uma teorizadinha não dói Depois de anos de silêncio atordoante, os economistas heterodoxos voltaram a tratar do tema da inflação e a tentar entender nossa compulsão inflacionária, que persiste mesmo após o Plano Real. Três trabalhos me parecem particularmente relevantes: A inflação brasileira na década de 2000 e a importância de políticas não monetárias de controle, de Júlia Braga (depositório IPEA); Transmissão Assimétrica da Política Monetária sobre a Inflação por Grupos do IPCA: Uma Análise Empírica, de Gilberto Tadeu Lima et al.; e Análise desagregada da inflação por setores industriais da economia brasileira entre 1996 e 2011, de Carlos Bastos et al. Parafraseando Caetano, o que estes três trabalhos revelaram é “surpreendeu a todos, não por ser exótico; mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto, quando teria sido o  óbvio”. A grande qualidade desses trabalhos é que eles não se assentam primordialmente em “modelos teóricos”, mas em pesquisas empíricas. Ou, antes: eles comportam teoria, evidentemente. Mas buscam testar teorias distintas e chegam à conclusão de que “um certo ecletismo-sincrético-confuso” pode ser o método mais adequado para entender a inflação brasileira. Desde logo, eles mostram que as variações da taxa de juros em si mesma tem pouco impacto sobre a inflação. Ela só é eficaz quando a elevação dos juros afeta a taxa câmbio. Esta é a variável central do sistema de controle de preços no Brasil. Mais: os autores demostram “o que teria sido o óbvio”: o efeito do câmbio se dá, fundamentalmente, na evolução dos preços dos bens tradables, vale dizer: dos bens importáveis e exportáveis. No trabalho de Lima et al, chega-se mesmo à conclusão (esta sim, algo exótica, mas totalmente compreensível) de que a elevação da taxa de juros leva a uma elevação de preços nos serviços de saúde (Lima et al., p. 19), e, de forma um pouco menos acentuada, nos serviços de educação (Lima et al., pp. 10 e 11) Os setores que respondem melhor à elevação juros (quando acompanhada de valorização do real) são: Vestuário, Calçados, Joias e Bijuterias, Tecidos e Armarinho, Móveis e Utensílios, Aparelhos Domésticos, e Alimentação no Domicílio. No caso da inflação na Habitação e em Transporte, o impacto é nulo. Confesso que senti falta nos três trabalhos de uma derivação que me parece absolutamente lógica: se a taxa de juros só é eficaz no controle de preços através de seu impacto sobre a taxa de câmbio e, portanto, através de seu impacto sobre os preços dos importados e dos exportados, então o uso (e abuso) dos juros como instrumento de controle da inflação no Brasil é (senão o principal, como acredito eu, pelo menos um dos principais) determinantes de nossa desindustrialização. Como investir e inovar em um setor que, a qualquer momento, pode vir a ser impactado - mais uma vez – pelas políticas de juros elevados, real valorizado e importados baratos? Julia Braga e Carlos Bastos trazem um outro elemento para a nossa reflexão. Eles mostram que, para além do câmbio, o segunda variável mais importante nos processos de retomada da inflação são os custos salariais. Na sinopse de seu artigo referido acima, Julia Braga afirma:   O indicador de demanda não apresentou significância estatística na equação da inflação de bens e serviços, mas sim na equação da variação salarial; e houve predominância da influência de pressões cambiais e da evolução dos preços das commodities na explicação da inflação cheia. Porém, estimativas desagregadas em bens de consumo e serviços indicaram a predominância dos salários como variável explicativa dos preços dos serviços não monitorados. (Julia Braga, p. 5)     Opa! Talvez aqui se encontre a explicação da passagem citada acima do texto de Scherer e Marquetti, em que os autores, defendendo o Pacote de Novembro, afirmavam que, a despeito de comportar elementos regressivos em termos de distribuição de renda, é preciso entender que “a inflação também não pode fugir ao controle, pois isso feriria profundamente a popularidade do presidente Lula.” Mas – perguntamos, então – qual a fundamento da pretensão de que o Pacote teria alguma eficácia no controle de preços? Estariam eles endossando a “tese de Haddad” de que a conquista do superávit fiscal levaria “naturalmente” à queda dos juros e à revalorização do real? ... Se já é difícil acreditar que o Ministro leve, efetivamente, esta tese a sério, muito mais difícil seria acreditar que dois economistas heterodoxos extremamente competentes abraçassem esta hipótese. Quer me parecer, que Scherer e Marquetti estejam apontando para a dimensão revelada por Julia Braga em sua pesquisa: o componente de custos internos da inflação brasileira. Para que se entenda o ponto, é preciso entender que variações no salário-mínimo repercutem sobre toda a pirâmide salarial; inclusive sobre a remuneração de trabalhadores que auferem mais do que este valor, e que usualmente pautam suas demandas em um determinado multiplicador do valor base. Vale dizer: quando o salário-mínimo cresce acima da inflação passada e acima da produtividade, emergem dois desdobramentos: 1) as empresas se deparam com uma elevação dos custos diretos por unidade produzida; 2) o impacto desta elevação de custos não fica restrita à base da pirâmide, mas reverbera sobre toda a estrutura de salário. Tal como nos explicou Michal Kalecki (dentre outros teóricos da precificação por mark-up), aqueles setores em que o poder de precificação não é afetado pelos preços dos importados – os serviços em geral (incluindo comércio, saúde, educação, alimentação fora de casa, cuidados pessoais, habitação, transporte, etc.) - alcançam repassar para os preços a elevação de custos imposta pela variação salarial. No popular (em respeito ao leitor não-economista): a elevação do salário-mínimo pela regra “INPC + crescimento do PIB de dois anos atrás” gera uma pressão de custos para os empresários. Quando a produtividade do trabalho cresce aceleradamente (vale dizer: quando os empresários podem, ou demitir alguns “cabras”, ou, se se deparam com demanda crescente, elevar a produção sem contratar mais gente), o crescimento do salário acima da inflação é facilmente absorvido: os custos com a folha de pagamento, ou não se elevam (quando há demissões), ou se elevam no mesmo patamar das receitas e do lucro bruto (quando a demanda é crescente e a elevação da produtividade torna desnecessária a contratação de novos trabalhadores). Mas quando a produtividade é dada (ou cresce muito pouco), a elevação dos salários nominais acima da inflação deprime a margem de lucro do empresário. Como a elevação de custos associada à elevação do salário-base é UNIVERSAL, impactando todos os setores, os empresários repassam essa elevação para os preços sem temer perda de fatia de mercado. Afinal, mais cedo ou mais tarde, todos elevarão seus preços. E a inflação é “startada”. O Bacen reage prontamente elevando a taxa de juros. Se a conjuntura econômica internacional é de relativa estabilidade, o diferencial de remuneração dos títulos internos frente aos externos atrai o capital volátil (o hot money). Em condições normais (o que não inclui a gestão de Campos Neto no Brasil), o Bacen vende dólares, diminuindo seu preço. A valorização da moeda nacional torna os importados mais baratos. A nova pressão competitiva, obriga as empresas que atuam em setores tradables a baixarem os preços. Mas os salários nominais não caem. O que alimenta um diferencial de rentabilidade: nos serviços (que não são importáveis), os preços continuam elevados. Na indústria de transformação, os preços são deprimidos. Dada a elevação dos salários nominais, a margem de lucro cai na indústria de transformação. E, com ela, a propensão a investir e a inovar. ... É nóis! Não posso asseverar que este tenha sido a démarche analítica de Scherer e Marquetti. Se for, temos acordo. O que implica uma crítica à análise de Cunha e Miebach, que parecem tomar a nova regra para elevação do salário-mínimo nominal como uma regra depressora da elevação do salário real, ignorando o componente inflacionárioo (via custos) da regra em vigor atualmente. De outro lado, no que diz respeito à avaliação da política econômica em geral de Lula III, temos maior convergência com Cunha e Miebach. Do ponto de vista que abraço, o Pacote tem, sim, componentes regressivos em termos distributivos e deprime a expansão daquele que vem sendo um dos principais determinantes do crescimento do PIB nos dois últimos anos: o consumo das famílias. Com a depressão relativa dos dispêndios do Governo Federal e da expansão do consumo das famílias, corremos um sério risco de que a taxa de crescimento da economia nos próximos dois anos fique abaixo de 3%. Se – para piorar – o novo Presidente do Banco Central cumprir seus compromissos de dar continuidade à gestão Campos Neto e não intervir no câmbio, privilegiando a política de juros como instrumento (sabidamente ineficaz) de combate à inflação, teremos seríssimos problemas em 2026. Ainda tenho esperanças de que o debate sirva para algo e que se dê audiência àqueles que ousam pensar, criticar e trazer alternativas. Se minhas esperanças forem frustradas, please, não me pergunte onde fica o Alegrete. O caminho mais curto de fuga para o Uruguai passa por Jaguarão.     *Carlos Águedo Paiva é Economista, Doutor em Economia e Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica. Ilustração de capa: IA Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.        

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