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Pacotaço, patrulhaço & especulaço: é nóis!
RED
Por CARLOS ÁGUEDO PAIVA*
1) Introdução: o Pacote e sua Conjuntura
Após um mês de muita especulação, brigas, intrigas, vazamentos, mentidos e desmentidos, veio à luz o Pacote Econômico do Ministro Haddad. E veio na hora mais apropriada: junto com o Pacote da PF-Xandão sobre os planos golpistas e o indiciamento de figuras de proa do Governo anterior, a começar pelo próprio ex-Presidente. O trabalho da PF foi tão minucioso que até contumazes apoiadores das hordas bolsonaristas ficaram pasmos. Em debate da GloboNews, Eliane Cantanhêde se mostrou atônita com o “tricô” de altas patentes militares sobre a construção de um Campo de Prisioneiros de Guerra ao estilo de Auschwitz. Por sua vez, a defesa de Bolsonaro adotou a linha que tanto caracteriza o “Mito”: eu não sabia de nada, nunca fui favorável a essa loucura, os militares é que são culpados de tudo. Como de praxe, na hora do aperto, Bolsonaro posa de inocente e abandona o navio junto com os ratos. Que começam a brigar bonito. Aparentemente, todos os envolvidos – sejam os citados e indiciados, sejam aqueles que temem que seus nomes venha a emergir nas investigações - estão “borrados de medo”.
Quadro 1
Fonte: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2024/11/fernando-haddad-201cmedidas-vao-gerar-uma-economia-de-r-70-bilhoes-nos-proximos-dois-anos201d
Haddad surfou na onda do Pacote PF-Xandão e incluiu a turma de coturnos nos cortes do seu Pacote de Natal. Mas pegou pianinho. Como se pode ver no quadro acima, a proposta é de que os militares contribuíam apenas com 1 bilhão por ano de 2025 a 2030. No total, contribuirão com R$ 6 bilhões; menos do que 2% dos cortes totais previstos, de R$327 bilhões. E isto na melhor das hipóteses. Pois haverá resistências e negociações no Congresso. Há um sério risco de que essa ousadia dê com os burros n’água. Mas, enfim, a tentiada é livre. E é correta. Na pior das hipóteses, vai impor um debate público sobre a relação custo-benefício de nossas Forças Armadas.
No projeto de Haddad, os empresários dão uma contribuição um pouquinho maior. O Ministro propõe um corte de R$ 15,8 bilhões em subsídios e subvenções (4,8 % do total de cortes nos dispêndios). Mais: no Pacote é proposta uma troca: a isenção de IRPF para quem ganha até R$ 5 mil por mês seria compensada pela elevação das alíquotas para quem ganha mais de R$ 50 mil por mês. Mais ainda: nessa faixa de renda seriam incluídos todos os benefícios auferidos; o que envolve acabar com a isenção de impostos sobre dividendos. Se a medida for aprovada, a Estônia ficará sendo o único país do mundo a produzir nosso licor de jabuticaba: a isenção de impostos sobre participação nos lucros das empresas. Mas vai ser difícil. Enfim, vale a briga.
Ainda mais complicado vai ser aprovar no Congresso a proposta de cortes nas emendas parlamentares. Haddad propõe cortar R$ 39,3 bilhões em 6 anos; 12,02% do total de cortes do Pacote. Temo que o governo venha a se deparar com resistências até mesmo nos partidos do Presidente (PT) e do Vice (PSB). Tal como estão emergindo resistência para o corte de repasses da União para o Distrito Federal (DF). Esses repasses voltam-se, fundamentalmente, à sustentação do sistema de segurança do DF, sobre o qual recai o ônus de preservar a ordem pública e o bem-estar das lideranças políticas, representações estrangeiras e dos servidores federais lotados na capital do país. Os repasses federais garantem rendimentos diferenciados para as polícias civis e militares do DF, cuja habilidade, competência e rigor no cumprimento de suas obrigações constitucionais foram comprovadas nos dias 12 de dezembro de 2022 (data da diplomação de Lula como Presidente) e no 8 de janeiro de 2023 (uma semana após a sua posse, data do assalto aos prédios dos três poderes). Os novos valores a serem repassados deixarão de ser indexados pela variação das receitas da União e passarão a sê-lo “apenas” pelo IPCA. Para que se tenha uma ideia da discrepância que resulta dessa mudança, projeta-se uma poupança com a (in)segurança no DF mais elevada do que aquela oriunda do cancelamento de todos os subsídios e subvenções para as empresas: R$ 16 bilhões de reais; 4,89% do total de cortes nas despesas.
Por sorte (ou seria “por azar”?) os cortes de despesas com militares, com empresários, com emendas parlamentares e com a (in)segurança do DF somados não chegam a um quarto dos cortes totais; mais exatamente, perfazem 23,57% do total previsto. Donde sairá o restante? De dispêndios com a patuleia.
Um terço do total de cortes (R$ 109,8 bilhões; 33,6% do total em 6 anos) vem da nova regra de reajuste do salário-mínimo. Atualmente, o salário é reajustado pelo IPCA mais a variação do PIB de dois anos atrás. Ora, o PIB cresceu 2,9% em 2023 e deve crescer algo como 3,2% no ano corrente. Se o salário-mínimo fosse reajustado pela inflação mais a variação do PIB, os dispêndios do Governo com a previdência social (que conta com parcela expressiva dos benefícios indexados ao salário-mínimo) excederiam a variação máxima do dispêndio governamental a cada ano de acordo com o “Novo Arcabouço Fiscal” (doravante, NAF). O NAF foi proposto pelo Governo Lula em 2023 e aprovado pelo Congresso no mesmo ano e reza que a ampliação dos dispêndios do governo estão limitadas a: 1) 70% do crescimento das receitas; e 2) a um limite máximo de 2,5% a.a. Isso significa dizer que mesmo que o PIB e as receitas públicas cresçam a – por exemplo – 5%, as despesas não podem crescer mais do que a metade desse percentual. Se o salário-mínimo fosse elevado pela variação do PIB, os dispêndios com a Previdência Social (e outros dispêndios governamentais indexados parcial ou plenamente ao salário-mínimo) cresceriam a uma taxa superior ao teto; o que imporia uma realocação de recursos: a elevação extraordinária dos dispêndios previdenciários teriam de ser compensados por variações menores nas dotações da saúde, da educação, da segurança pública, etc.
O “problema” é que esta realocação é inconstitucional. A Carta Magna prevê que os dispêndios com saúde e educação devem corresponder, respectivamente, a 15% e 18% das Receitas Correntes Líquidas do Governo Federal. O que também desafia o NAF: se as receitas do governo forem ampliadas à mesma taxa do crescimento do PIB, os dispêndios com saúde e educação teriam de ser ampliados no mesmo percentual. os dispêndios totais do governo, desde 2023, não poderem variar mais do que o “teto” de 2,5%. Quem “paga o pato”? As despesas discricionárias; vale dizer, os investimentos públicos.
No Pacote do Haddad, este problema é enfrentado por duas vias: 1) a prorrogação da DRU (Desvinculação das Receitas da União), que dribla a regra constitucional e que vem sendo prorrogada ano após ano desde 1994, quando foi instituída em “caráter emergencial” para garantir a estabilização das contas públicas após o Plano Real; 2) pela diminuição dos aportes ao FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação). De acordo com o Quadro 1, acima, a prorrogação da DRU e as novas regras do FUNDEB serão responsáveis pela poupança de R$ 41,4 bilhões em seis anos, 20,76% dos cortes de dispêndios.
Somemos as parcelas: 23,57% do corte de gastos incide sobre o andar de cima (emendas parlamentares, subsídios às empresas, aposentadoria e contribuição previdenciária dos militares e repasses para (in)segurança do Distrito Federal); 33,57%, vem da nova regra de reajuste do salário-mínimo; e, 20,76%, advém da desvinculação das receitas com gastos em saúde e educação e com as novas regras do FUNDEB. No total temos 77,9%. De onde vem os 22,1% restantes? Do Bolsa Família (5,2%), do Benefício de Prestação Continuada (3,67%), do Abono Salarial (que fica restrito a quem ganha até 1,5 salários-mínimos, o que gera uma poupança de R$ 18,1 bilhões em seis anos, 5,53% do total de cortes), de cortes na Lei Aldir Blanc, voltada ao apoio dos artistas (que vão perder 1 bilhão a mais que os militares, “contribuindo” com uma poupança de R$ 7 bilhões, 2,14% do total de cortes), e com a circunscrição de concursos e provimento de cargos (que fecha a conta, contribuindo com pouco mais de R$ 1% da poupança prevista).
2) Patrulhaço & Especulaço
Como não poderia deixar de ser em terra brasilis, o Pacote de Haddad vem alimentando as mais diversas polêmicas. Como regra geral, quando o debate se dá entre economistas, opera-se com um conjunto de referências teóricas conhecidas por todos. Não que haja qualquer consenso teórico. Na verdade, pouquíssimas coisas são tão raras na Economia quanto o consenso. A divergência é a norma. Alguns de nós são keynesianos, outros são ricardianos, outros são estruturalistas, outros são neoclássicos, outros são marxistas. E há até os sincrético-ecléticos (que muitos consideram confusos), como este que vos escreve. Mas todos conhecem os fundamentos das distintas matrizes teóricas. E as diferenças são tratadas como aquilo que são: diferenças teóricas.
Infelizmente, em parcela expressiva dos grupos “interdisciplinares de esquerda” (vale dizer, onde o debate ocorre entre economistas e não-economistas), o debate sobre a qualidade da gestão econômica do Governo Lula III, sobre a pertinência e consistência NAF, e sobre a eficácia do Pacote de Novembro para controlar a inflação, deprimir a taxa de juros e valorizar o real frente ao dólar ganhou uma dimensão ideológica altamente perversa e pervertida. Os críticos do NAF e do Pacote passaram a ser vistos como “traíras”. E o patrulhaço correu (e continuando correndo) solto.
Do meu ponto de vista, isto é puro desperdício de tempo. E tempo é a variável da qual mais carecemos. Temos apenas dois anos até as eleições de 2026. É preciso correr para ajustar o que ainda dá para ser ajustado. Mas o patrulhador dogmático é inflexível em sua posição de poste oficial: correr é o que ele menos quer. Ele tem certeza de tudo e sabe que não há nada para ser melhorado. Como, aliás, ficou provado nos resultados eleitorais de 2024. Não é mesmo?
Com o perdão do sincericídio, os verdadeiros inimigos do governo atual são os defensores da “infalibilidade Lulal, Alckimal e Haddadal”. Estes são os verdadeiros inimigos na trincheira. Como não têm nada a contribuir, minam o bom debate, desancando todos os que ousam ter ideias próprias e propostas alternativas. É triste. Mas é da vida. Felizmente, há muito mais do que baba-ovismo entre os intelectuais de esquerda. E eles vêm publicando suas reflexões em diversos veículos da mídia alternativa.
Aqui mesmo, neste veículo de reflexão e debates que é a RED, foram publicados dois textos que expressam a polêmica em curso no campo progressista. O primeiro deles – O Pacote de Haddad: entre o teto e o tatame -, publicado no dia 29/11, é de autoria de dois professores da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, André Cunha e Alessandro Miebach. O segundo – A Encruzilhada de Haddad -, publicado no dia 01/12 é dos economistas Adalmir Marquetti (PUC-RS) e André Scherer (Secretaria de Planejamento, Orçamento e Gestão do Estado do RS). Os títulos (e as imagens que os ilustram: vale ver!) já anunciam as diferenças de interpretação.
Os quatro autores nos lembram – corretamente – que: 1) o Pacotaço é um desdobramento natural-impositivo do “NAF”; 2) os cortes anunciados são os possíveis dada a atual correlação de forças na política, representada por um Congresso reacionário, um “Mercado” rentista e uma mídia conservadora. Mas há uma diferença sutil no approach dos dois textos: Cunha e Miebach são mais críticos ao NAF, que é percebido como uma “camisa de força autoimposta”. Eles reconhecem que, dado o NAF, os cortes se mostraram impositivos. Mas pretendem – corretamente, do meu ponto de vista – que o problema de fundo é, justamente, o tal “Arcabouço Fiscal”. Diferentemente, Scherer e Marquetti mostram-se mais céticos sobre o grau de liberdade efetiva do Governo Lula III para adotar uma política fiscal menos contracionista. E concluem sua análise afirmando:
Com mais acertos que erros, tem sido louvável a persistência com a qual o Ministro Haddad tem buscado mitigar, nas condições adversas já citadas, a sanha fiscalista dos mercados de modo a causar o menor dano possível à população de menor renda. É importante a preservação do crescimento econômico e a manutenção da busca de alguma distribuição de renda. No entanto, a inflação também não pode fugir ao controle, pois isso feriria profundamente a popularidade do presidente Lula.
Aparentemente, Scherer e Marquetti entendem que, malgrado suas consequências perversas no plano redistributivo, o esforço governamental de deprimir seus dispêndios, eliminando o déficit fiscal e gerando algum superávit nos dois últimos anos da atual gestão, teria desdobramentos positivos no controle da inflação. Pelo menos é o que alcanço entender da última frase da passagem reproduzida acima. Isso não significa dizer que eles pactuam da leitura de Haddad sobre os determinantes da inflação. Até mesmo porque a “leitura” de Haddad é uma incógnita: ele não é economista, não escreve sobre economia e não ingressa em quaisquer debates teóricos. Na verdade, suas manifestações sobre o tema não passam de platitudes convencionais, tais como
Nós precisamos garantira a sustentabilidade da Economia. E uma coisa que pode nos prejudicar é se os gastos do governo se expandirem para além do Arcabouço Fiscal que nós aprovamos no ano passado. Aí nós corremos o risco de ter uma desaceleração da economia, em função de juro, em função de dólar. Então nós precisamos tomar medidas que visam conter essa dinâmica de valorização da despesa. Você vai continuar valorizando o salário-mínimo. Você vai continuar garantindo os benefícios sociais, mas num ritmo que permita a economia se acomodar, para não comprometer o crescimento sustentável. Haddad, Entrevista a Record News 19 horas (30/11/2024)
Com certeza, Scherer e Marquetti não pactuam dessa leitura. Na verdade, tenho sérias dúvidas de que Haddad efetivamente concorde com suas palavras. Afinal, é difícil acreditar que o autor de uma tese de doutorado que defende a atualidade da Crítica da Economia Política de Marx à pretensão (ideológica) de que as relações mercantis sejam naturais pense, realmente, nos termos da passagem acima. Ouvindo-o, ficamos com a sensação de que a Economia seria um sistema simples e natural, com leis claras e imutáveis. A taxa de juros e a taxa de câmbio respondem ao déficit governamental e ao crescimento da dívida de uma forma similar àquela como o gelo reage à exposição a uma fonte térmica (de calor): ele passa do estado sólido para o líquido, a partir de certa temperatura as moléculas da lâmina d’água são capturadas pelo ar e tem início o processo de evaporação; a partir de 100 graus, a água entra em ebulição e, ao fim e ao cabo, evapora integralmente. Simples assim. Para manter a água numa situação “líquida sustentável” é preciso mantê-la a uma temperatura superior a 0 graus e inferior a 20 graus Celsius. Igualmente bem, para manter a economia crescendo de forma sustentável, o juro baixo, o dólar relativamente barato e a inflação sob controle é preciso gastar menos do que se arrecada.
Com o perdão de mais um sincericídio, o discurso é tão mecânico e simplório que somos obrigados a supor que o Ministro está representando um papel: o papel de “acalmador do Mercado”. Para tanto, repete os mantras da Faria Lima e dos “jornalistas e especialistas econômicos” que pululam na mídia conservadora. O problema é que essa tentativa de ser o “Lexotan-Rivotril dos Mercados” é inútil. Como ficou demonstrado pelo ataque especulativo contra o real no último mês, que passou de R$ 5,68 por US$ 1,00 para R$ 6,04 por US$ 1,00. O salto ocorreu no final de novembro (quando o pacote já vinha sendo debatido) e persistiu após sua divulgação. A “justificativa” dada pelo “Mercado” foi a de que as alterações no Imposto de Renda – com a isenção para os que ganham até R$ 5.000,00 ao mês; a ser compensada pela elevação da alíquota incidente sobre os que auferem mais de R$ 50.000 no mesmo período – levariam ao aumento do déficit, ao contrário do que o Governo pretenderia. Ora, um dólar mais forte implica em elevação do custo dos importados e dos exportados e, portanto, implica inflação mais elevada. Para combate-la, o mercado aposta na elevação da taxa de juros e, portanto, em maiores dispêndios do Tesouro para a rolagem da dívida e depressão da disponibilidade de caixa para dispêndios não financeiros: traduzindo em bom português: após os cortes, o mercado aposta que o déficit total do governo (primário + financeiro) será ampliado; não diminuído. Se isso não é um tiro pela culatra, não sei o que esta expressão possa significar.
Pergunta-se: o mercado está certo? Sim e não. O mercado não é um bom samaritano ou um monge budista; não é um sujeito “moral”. Os operadores do mercado tem uma única meta: ganhar dinheiro. E os ganhos são máximos no jogo especulativo. Se os operadores entendem que uma determinada política econômica levará a desvalorização do real, o “correto” é comprar dólares na baixa e revendê-los, mais tarde, quando o movimento altista cessar. O problema não é o mercado. O problema é o Banco Central. Teoricamente, um Banco Central existe para dar estabilidade e previsibilidade ao circuito monetário-financeiro. O que implica atuar de forma contracíclica, enfrentando os recorrentes ataques especulativos contra a moeda nacional. Para tanto, ele conta com diversos instrumentos, que vão muito além da alteração na taxa de juros básica. Ele pode ampliar a oferta de dólares ou lançar títulos nominados em dólar (swaps cambiais) com vistas a “saciar a fome” por divisas e impedir a desvalorização do real. E o que não falta ao Brasil são reservas e instrumentos financeiros para realizar esta tarefa. Mas não é isto que tem sido feito. Por quê?
Por interé$$es, como dizia o tio Brizola. Não resta dúvida que Campos Neto é um economista liberal e, como tal, avesso a intervenções no “mercado”. Mas está muito longe de ser burro. E toda a pessoa inteligente sabe que onde há regras, também há exceções. E ele usou e abusou do direito a excepcionalidades durante o governo Bolsonaro, realizando 113 operações no mercado cambial, com vistas a estabilizar o real e enfrentar ataques especulativos. Só em 2022, o Bacen vendeu US$ 11,5 bilhões. Mas sua postura mudou radicalmente no novo governo. Em 2023, o Bacen não atuou uma única vez no mercado de câmbio. E em 2024 realizou uma única operação de venda: US$ 4 bilhões, em setembro, com compromisso de recompra entre abril e junho de 2025. Em termos líquidos, o Bacen atuou como comprador nos últimos dois anos, adquirindo um saldo de US$ 9 bilhões. Em suma: o Bacen de Campos Neto sob Bolsonaro impunha limites à especulação. O Bacen de Campos Neto sob Lula atua “em apoio ao mercado” nos seus movimentos especulativos. ... É nóis!
O que nos permite retornar à fala de Haddad reproduzida acima. Ao “naturalizar” a evolução do dólar e da taxa de juros Haddad – consciente ou inconscientemente – está sancionando a inatividade de Campos Neto, que tem deixado o “mercado livre para se autorregular”. Pior ainda: Galípolo – o futuro Presidente do Banco Central, indicado por Lula com apoio de Haddad – vem dando declarações na mídia de que manterá a política não intervencionista de Campos Neto e que o câmbio flutuará livremente.
É nóis 2, A missão. Tá tudo dominado na casa da tia Irene. Tá como o diabo gosta. E podes ter certeza, caro leitor: a turma da Patrulha vai continuar elogiando tudo e chamando os críticos da gestão econômica de “agentes da Kaos”. Como diria o Agente 86: o velho truque da avestruz que põe a cabeça no buraco e deixa a bunda à mostra!,
3) Uma teorizadinha não dói
Depois de anos de silêncio atordoante, os economistas heterodoxos voltaram a tratar do tema da inflação e a tentar entender nossa compulsão inflacionária, que persiste mesmo após o Plano Real. Três trabalhos me parecem particularmente relevantes: A inflação brasileira na década de 2000 e a importância de políticas não monetárias de controle, de Júlia Braga (depositório IPEA); Transmissão Assimétrica da Política Monetária sobre a Inflação por Grupos do IPCA: Uma Análise Empírica, de Gilberto Tadeu Lima et al.; e Análise desagregada da inflação por setores industriais da economia brasileira entre 1996 e 2011, de Carlos Bastos et al. Parafraseando Caetano, o que estes três trabalhos revelaram é “surpreendeu a todos, não por ser exótico; mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto, quando teria sido o óbvio”.
A grande qualidade desses trabalhos é que eles não se assentam primordialmente em “modelos teóricos”, mas em pesquisas empíricas. Ou, antes: eles comportam teoria, evidentemente. Mas buscam testar teorias distintas e chegam à conclusão de que “um certo ecletismo-sincrético-confuso” pode ser o método mais adequado para entender a inflação brasileira. Desde logo, eles mostram que as variações da taxa de juros em si mesma tem pouco impacto sobre a inflação. Ela só é eficaz quando a elevação dos juros afeta a taxa câmbio. Esta é a variável central do sistema de controle de preços no Brasil. Mais: os autores demostram “o que teria sido o óbvio”: o efeito do câmbio se dá, fundamentalmente, na evolução dos preços dos bens tradables, vale dizer: dos bens importáveis e exportáveis. No trabalho de Lima et al, chega-se mesmo à conclusão (esta sim, algo exótica, mas totalmente compreensível) de que a elevação da taxa de juros leva a uma elevação de preços nos serviços de saúde (Lima et al., p. 19), e, de forma um pouco menos acentuada, nos serviços de educação (Lima et al., pp. 10 e 11) Os setores que respondem melhor à elevação juros (quando acompanhada de valorização do real) são: Vestuário, Calçados, Joias e Bijuterias, Tecidos e Armarinho, Móveis e Utensílios, Aparelhos Domésticos, e Alimentação no Domicílio. No caso da inflação na Habitação e em Transporte, o impacto é nulo.
Confesso que senti falta nos três trabalhos de uma derivação que me parece absolutamente lógica: se a taxa de juros só é eficaz no controle de preços através de seu impacto sobre a taxa de câmbio e, portanto, através de seu impacto sobre os preços dos importados e dos exportados, então o uso (e abuso) dos juros como instrumento de controle da inflação no Brasil é (senão o principal, como acredito eu, pelo menos um dos principais) determinantes de nossa desindustrialização. Como investir e inovar em um setor que, a qualquer momento, pode vir a ser impactado - mais uma vez – pelas políticas de juros elevados, real valorizado e importados baratos?
Julia Braga e Carlos Bastos trazem um outro elemento para a nossa reflexão. Eles mostram que, para além do câmbio, o segunda variável mais importante nos processos de retomada da inflação são os custos salariais. Na sinopse de seu artigo referido acima, Julia Braga afirma:
O indicador de demanda não apresentou significância estatística na equação da inflação de bens e serviços, mas sim na equação da variação salarial; e houve predominância da influência de pressões cambiais e da evolução dos preços das commodities na explicação da inflação cheia. Porém, estimativas desagregadas em bens de consumo e serviços indicaram a predominância dos salários como variável explicativa dos preços dos serviços não monitorados. (Julia Braga, p. 5)
Opa! Talvez aqui se encontre a explicação da passagem citada acima do texto de Scherer e Marquetti, em que os autores, defendendo o Pacote de Novembro, afirmavam que, a despeito de comportar elementos regressivos em termos de distribuição de renda, é preciso entender que “a inflação também não pode fugir ao controle, pois isso feriria profundamente a popularidade do presidente Lula.” Mas – perguntamos, então – qual a fundamento da pretensão de que o Pacote teria alguma eficácia no controle de preços? Estariam eles endossando a “tese de Haddad” de que a conquista do superávit fiscal levaria “naturalmente” à queda dos juros e à revalorização do real? ... Se já é difícil acreditar que o Ministro leve, efetivamente, esta tese a sério, muito mais difícil seria acreditar que dois economistas heterodoxos extremamente competentes abraçassem esta hipótese. Quer me parecer, que Scherer e Marquetti estejam apontando para a dimensão revelada por Julia Braga em sua pesquisa: o componente de custos internos da inflação brasileira. Para que se entenda o ponto, é preciso entender que variações no salário-mínimo repercutem sobre toda a pirâmide salarial; inclusive sobre a remuneração de trabalhadores que auferem mais do que este valor, e que usualmente pautam suas demandas em um determinado multiplicador do valor base. Vale dizer: quando o salário-mínimo cresce acima da inflação passada e acima da produtividade, emergem dois desdobramentos: 1) as empresas se deparam com uma elevação dos custos diretos por unidade produzida; 2) o impacto desta elevação de custos não fica restrita à base da pirâmide, mas reverbera sobre toda a estrutura de salário. Tal como nos explicou Michal Kalecki (dentre outros teóricos da precificação por mark-up), aqueles setores em que o poder de precificação não é afetado pelos preços dos importados – os serviços em geral (incluindo comércio, saúde, educação, alimentação fora de casa, cuidados pessoais, habitação, transporte, etc.) - alcançam repassar para os preços a elevação de custos imposta pela variação salarial.
No popular (em respeito ao leitor não-economista): a elevação do salário-mínimo pela regra “INPC + crescimento do PIB de dois anos atrás” gera uma pressão de custos para os empresários. Quando a produtividade do trabalho cresce aceleradamente (vale dizer: quando os empresários podem, ou demitir alguns “cabras”, ou, se se deparam com demanda crescente, elevar a produção sem contratar mais gente), o crescimento do salário acima da inflação é facilmente absorvido: os custos com a folha de pagamento, ou não se elevam (quando há demissões), ou se elevam no mesmo patamar das receitas e do lucro bruto (quando a demanda é crescente e a elevação da produtividade torna desnecessária a contratação de novos trabalhadores). Mas quando a produtividade é dada (ou cresce muito pouco), a elevação dos salários nominais acima da inflação deprime a margem de lucro do empresário. Como a elevação de custos associada à elevação do salário-base é UNIVERSAL, impactando todos os setores, os empresários repassam essa elevação para os preços sem temer perda de fatia de mercado. Afinal, mais cedo ou mais tarde, todos elevarão seus preços. E a inflação é “startada”.
O Bacen reage prontamente elevando a taxa de juros. Se a conjuntura econômica internacional é de relativa estabilidade, o diferencial de remuneração dos títulos internos frente aos externos atrai o capital volátil (o hot money). Em condições normais (o que não inclui a gestão de Campos Neto no Brasil), o Bacen vende dólares, diminuindo seu preço. A valorização da moeda nacional torna os importados mais baratos. A nova pressão competitiva, obriga as empresas que atuam em setores tradables a baixarem os preços. Mas os salários nominais não caem. O que alimenta um diferencial de rentabilidade: nos serviços (que não são importáveis), os preços continuam elevados. Na indústria de transformação, os preços são deprimidos. Dada a elevação dos salários nominais, a margem de lucro cai na indústria de transformação. E, com ela, a propensão a investir e a inovar. ... É nóis!
Não posso asseverar que este tenha sido a démarche analítica de Scherer e Marquetti. Se for, temos acordo. O que implica uma crítica à análise de Cunha e Miebach, que parecem tomar a nova regra para elevação do salário-mínimo nominal como uma regra depressora da elevação do salário real, ignorando o componente inflacionárioo (via custos) da regra em vigor atualmente. De outro lado, no que diz respeito à avaliação da política econômica em geral de Lula III, temos maior convergência com Cunha e Miebach. Do ponto de vista que abraço, o Pacote tem, sim, componentes regressivos em termos distributivos e deprime a expansão daquele que vem sendo um dos principais determinantes do crescimento do PIB nos dois últimos anos: o consumo das famílias. Com a depressão relativa dos dispêndios do Governo Federal e da expansão do consumo das famílias, corremos um sério risco de que a taxa de crescimento da economia nos próximos dois anos fique abaixo de 3%. Se – para piorar – o novo Presidente do Banco Central cumprir seus compromissos de dar continuidade à gestão Campos Neto e não intervir no câmbio, privilegiando a política de juros como instrumento (sabidamente ineficaz) de combate à inflação, teremos seríssimos problemas em 2026.
Ainda tenho esperanças de que o debate sirva para algo e que se dê audiência àqueles que ousam pensar, criticar e trazer alternativas. Se minhas esperanças forem frustradas, please, não me pergunte onde fica o Alegrete. O caminho mais curto de fuga para o Uruguai passa por Jaguarão.
*Carlos Águedo Paiva é Economista, Doutor em Economia e Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica.
Ilustração de capa: IA
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