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A liberdade em quarentena

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A liberdade em quarentena
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Por ANTONIO LAVAREDA* No Ocidente, que é onde minha vista alcança, a questão da liberdade nesses tempos remete sobretudo ao medo. Como o professor Sul-coreano-alemão, Chul Han, descreve, “a liberdade não é possível onde reina o medo. Medo e liberdade se excluem mutuamente”. O medo aprisiona a sociedade. Contraposto ao espírito da esperança , sobretudo à esperança ativa, comprometida com movimentos de busca do progresso, ele a deixa em permanente quarentena (Byung-Chul Han, 2023). Por certo, isso não significa esquecer o fato de que há diversos países no hemisfério que enfrentam essa questão na dimensão mais concreta, dura, primitiva - de histórica privação de liberdades públicas. Países onde nunca houve instituições propriamentedemocráticas, a exemplo entre outros de Zimbábue, Ruanda, Gabão ou Burundi. Outros há em que elas existiram mas foram interrompidas por revoluções autodenominadas democratizantes, mas que se corromperam em regimes autoritários como Cuba, Venezuela e Nicarágua. Em todos esses países, na ausência quase absoluta da liberdade, o medo do sistema, o temor aos tiranos, está incorporado permanentemente ao kit de sobrevivência mental dos indivíduos na esfera pública. Mas não é desse medo que cogito aqui. Tampouco se trata do “medo líquido” de que fala Bauman, cujas raizes são as incertezas relacionadas aos múltiplos riscos da “globalização negativa”. Sejam os desastres climáticos e ambientais, as crises econômicas, as pandemias, ou o terror ( Bauman, 2008). Dirijo a lente para o sentimento que tem prosperado nesse primeiro quartil do século XXI, difundido regular e sistematicamente - com organização, disciplina e método- , pela extrema direita, em suas diferentes versões nacionais. Um medo “arquitetado”. Assim, às velhas formas de supressão das liberdades vem se somar agora a estratégia do iliberalismo, promovida pela ultra direita internacional. Nela, a democracia é corroída por dentro, conforme o modelo exitoso da Hungria, de Viktor Orbán (Cas Mudde, 2023). O sucesso dessa estratégia se baseia na promoção desenfreada do medo. medo que assume caráter coletivo é polarizador. Magnifica as divisões dentro da sociedade. Politiza e aprofunda diferenças que antes se viam pouco valorizadas, eram toleráveis e conciliáveis. Ele produz e dissemina uma sensação de instabilidade que termina por se materializar efetivamente, estimulando descontentamento e protestos, conflitos e até derrubadas de governos. Esse medo redesenha o debate público, e leva os eleitores a abandonarem seus partidos e lideranças tradicionais, galvanizando o apoio a outsiders, em geral líderes autoritários que lhes acenam com segurança e proteção. O medo justifica, por fim, as políticas repressivas, desde a aceitação da restrição de direitos até mesmo o aplauso à hipótese de governos totalitários, como resposta ao que Hanna Arendt já conceituara como “inimigos objetivos”, geradores de suspeita generalizada e pelo partido e depois pela máquina do Estado (Arendt, 1951). Nos tempos atuais, para promovê-lo e fazer adoecer a democracia representativa os venenos são atualizados, bem como a posologia adotada. Envolve doses elevadas de desinformação deliberada e disseminação maciça de fake news na internet. O pior é que não há antídotos cem porcento eficientes. Não há como evitá-los de todo. A emergência das redes sociais tornou isso impossível. Mas é necessário coibí-los. Limitá-los em alguma medida. Sobretudo pela regulação das plataformas, como fez a União Europeia. As deepfakes criadas por inteligência artificial e os milhões de usuários e bots, que distribuem informação apócrifa em redes criptografadas de ponta a ponta, agravaram o problema. Elevando o desafio a um patamar bem superior ao que foi no passado o de controlar a propaganda política em jornais, rádios e TVs (Lavareda, 2024). Ocorre que, em países como Brasil e Estados Unidos, há uma enorme resistência à regulação de plataformas e redes. A extrema direita paralisa essa agenda nos respectivos congressos. Afinal, é difundindo o medo, e a partir dele agredindo ora as minorias, ora o establishment, mesmo quando estão claramente associados aos interesses das elites econômicas, é com essa fórmula que os novos populistas se valem dos algoritmos das redes para conquistar apoio eleitoral. A combinação dos interesses econômicos das plataformas e da força da ultra direita nesses países torna muito difícil caminhar nessa direção. A expectativa do mundo se volta nesses dias para tentar prever o que acontecerá na principal potência, os Estados Unidos da América, a partir de 20 de janeiro do ano próximo. Mas a rigor não é necessário qualquer exercício adivinhatório. Basta reler os discursos e rever a propaganda da campanha. Até o momento, temos um show de coerência. Os nomes anunciados para o novo gabinete, por mais bizarros que pareçam a muitos, são perfis totalmente congruentes com a retórica do então candidato. Portanto, é mais que justificado o temor de um retrocesso significativo na agenda de combate ao aquecimento global, numa quadra em que se multiplicam os desastres climáticos; do anunciado distanciamento dos líderes europeus, agravado pelo maior alinhamento com a Rússia; e o temor de uma redução substancial do apoio à OTAN, e especialmente à Ucrânia, que será levada à paz de joelhos. Na agenda interna, haverá deportações em massa de indocumentados; perseguição a funcionários que no passado não foram complacentes com iniciativas ilegais; demissões em massa de servidores públicos, a pretexto de reduzir a burocracia; posturas negacionistas na condução da saúde pública; e até mesmo a extinção do Departamento Federal de Educação. Tudo isso sob a direção e batuta ideológica da Direita-Tech representada por Elon Musk e J.D. Vance. Por que Trump volta à Casa Branca? Porque que o medo já estava suficientemente instalado na alma dos americanos ao tempo da votação. A poucos dias da eleição, uma pesquisa do jornal New York Times, em conjunto com o Siena College, mostrava a vitória de Trump no voto nacional por um ponto percentual (Trump, 47%, Harris, 46%) . Como sabemos, o resultado não foi muito diferente: Trump teve no voto total 50%, e Harris 48.4%.Uma diferença de + 1.6. Aquela pesquisa mostrou que 76% dos americanos acreditavam que a democracia no país estava sob ameaça. Uma opinião disseminada em todos os níveis de renda e escolaridade. Com presença simétrica nos dois contingentes eleitorais (com 77% entre os eleitores de Harris, e 76% entre os de Trump). Por seu lado, em outro levantamento, o Instituto Gallup revelou que o medo dos imigrantes havia assumido grandes proporções . Para um inédito percentual de 82% dos eleitores republicanos, a imigração aparecia como questão super importante para ser levada em conta na eleição. Os norte americanos foram às urnas sob dois signos combinados: o do medo generalizado de que sua  democracia estivesse em perigo; e um segundo, potencializado pelo primeiro, o da ansiedade específica movida sobretudo pelo descontentamento com o governo do dia, com 62% acreditando equivocadamente que a economia estava piorando e 46% insatisfeitos com sua situação econômica contra apenas 25% de satisfeitos. Perdeu o partido no poder. O que tem ocorrido com frequência no pós pandemia em diversos outros países que enfrentaram dificuldades, especialmente no capítulo de inflação e juros elevados. Como prescreve a “teoria da inteligência afetiva”, a ansiedade gerada na base eleitoral dos partidos incumbentes cria uma abertura que é usada para encorajar a defecção de eleitores na quantidade suficiente para mudar a correlação de forças em favor dos desafiantes. ( Mackuen, Marcus, Neuman, and Keele, 2007) Porém, cabe enfatizar que, se a economia jogou mais uma vez um papel central no voto, o descontentamento com ela ocorreu dessa vez agravado por um clima de medo, propelido por fake news poderosas, pervasivas, mesmo quando desmentidas de forma contundente pelos fatos. Haitianos comendo gatos” e “votando em massa”; vídeos produzidos na Rússia denunciando “operações irregulares do FBI”; “democratas apoiando o aborto até depois do nascimento”; Estados Unidos ocupado por “hordas de estrangeiros criminosos importados pelo governo das masmorras do terceiro mundo”. Todas, notícias falsas. Somente as postagens de Elon Musk com alegações falsas e vídeos adulterados acumularam bilhões de visualizações segundo o Grok, concorrente do ChatGPT. Grok que é do mesmo Elon Musk, que doou 200 milhões de dólares e fará parte do governo Trump. Concluindo, o certo é que a inflação aliou-se ao medo, e os americanos deram lugar - com o novo governo Trump majoritário na Câmara e no Senado, e respaldado pela maioria conservadora nos Suprema Corte - a uma era de incerteza como poucas vimos antes. Nesse momento, não é exagero afirmar, voltando à metáfora de Chul Han, que a liberdade do mundo entrou em quarentena.     *Antonio Lavareda é cientista político e sociólogo, IPESPE/ UFPE. Presidente de Honra da ABRAPEL - Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais. Palestra proferida na Conferência Internacional “O Porto da Liberdade”. Promovida pelo Instituto Português de História e Cultura Local. Porto. Portugal. 26/11/2024. Foto de capa:   Alex Reprodução Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.   *

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Carta de Paulo Sérgio Pinheiro à Fundação São Paulo sobre convocação dos professores Reginaldo Nasser e Bruno Huberman acusados de antissemitismo

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Carta de Paulo Sérgio Pinheiro à Fundação São Paulo sobre convocação dos professores Reginaldo Nasser e Bruno Huberman acusados de antissemitismo
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Genebra, 22 de novembro de 2024 Sra.Rosangela Sanson DD.Ouvidora Fundação São Paulo R. João Ramalho, 182 - Perdizes, São Paulo - SP, 05008-000 fundacaosaopaulo@fundasp.org.br Senhora Ouvidora, Tomei conhecimento pela mídia que meus eminentes colegas na PUC-SP, Professor Reginaldo Nasser e Professor Bruno Huberman, do curso de Relações Internacionais naquela instituição, foram convidados a darem explicações ao setor de Ética e Integridade da Fundação São Paulo, a respeito de acusação de antissemitismo por parte de alguns alunos. Em vez de submeter os professores Nasser e Huberman a esse vexame público ao alardear essa convocação a Fundação deveria se orgulhar em ter no quadro docente da PUC~SP dois entre os poucos mais conceituados especialistas no Brasil em relações internacionais com ênfase sobre a conjuntura no Oriente Médio. Faz anos que leio e acompanho com o maior interesse as pesquisas e as obras dos dois professores. Assim como sua brilhante docência para os estudantes na Universidade, que acompanho em detalhe nos últimos quatro anos pois dois netos meus, Mateus Pinheiro Lanhoso e Sofia Pinheiro Lanhoso que tiveram o privilégio de terem Nasser e Huberman como professores. A Fundação em vez de demagogicamente aceitarem as denúncias de alguns estudantes, que confundem análise e pesquisa acadêmica do sistema de apartheid israelense e das práticas da política sionista do Estado de Israel com antissemitismo, deveriam levar em conta a obra dos dois professores. Ali veriam que todas suas aulas e publicações se mantém rigorosamente dentro das análises e decisões dos órgãos da ONU. Menciono apenas as decisões da Corte Internacional de Justiça que definem como ilegal a ocupação do Estado de Israel dos territórios palestinos e como plausível o genocídio dos palestinos em curso. A Fundação com essa convocação dos dois professores assume de forma sensacionalista as acusações equivocadas e caluniosas de estudantes que confundem crítica às policy e politics do Estado de Israel com antissemitismo, cerceando por completo a liberdade de expressão de uma maneira inaceitável. O Estado de Israel não está acima das obrigações internacionais e não pode praticar violações a tratados e convenções do direito internacional dos direitos humanos e do direito internacional humanitário. Não pode querer transformar todas as críticas à suas políticas em atos antissemitas tentando se tornar imune a qualquer forma de crítica, contestação ou condenação, como as que têm sido emitidas pela Corte Internacional de Justiça, Tribunal Penal Internacional , da Assembleia Geral da ONU, do Conselho de Segurança da ONU, Secretário-Geral da ONU, Alto Comissariado de Direitos Humanos ,Alto Comissário para Refugiados, meus colegas relatores especiais de direitos humanos e comissões de investigação do Oriente Médio. Esse acolhimento pela Fundação das acusações dos estudantes aos dois professores parece ter como objetivo silenciar a crítica a Israel e ao sionismo igualando-a ao antissemitismo. Essa atitude que visa silenciar toda defesa dos palestino tem sido empregada em muitos países, e agora aqui na PUC-SP ,como um golpe para suprimir a liberdade acadêmica. Dezenas de organizações palestinas, israelenses, da sociedade civil e de direitos humanos de todo o mundo, bem como acadêmicos, escritores tem condenado o impacto antidemocrático e repressivo desse amálgama entre antissemitismo e crítica aos crimes contra a humanidade e crimes de guerra do Estado de Israel, como há dias deliberou o Tribunal Penal Internacional. Diante desses fatos, como membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo ,criada pelo Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, antigo presidente da Fundação São Paulo, e como Assessor Especial do governador de São Paulo Franco Montoro , homenageado no edifício sede desta Fundação ,diante dessa convocação ofensiva para “explicações” dos docentes Nasser e Huberman sinto- me deprimido e enojado. Tais patronos extraordinários, como Dom Paulo e Montoro, que lutaram a vida toda pela dignidade e pela defesa das vítimas de direitos humanos, jamais teriam tolerado esse atentado desprezível contra a reputação ilibada e admirável competência dos professores Reginaldo Nasser e Bruno Huberman Atenciosamente Paulo Sérgio Pinheiro Professor titular de ciência política, USP (aposentado) Doutor honoris causa, UNICAMP Relator Especial de Direitos Humanos da ONU/Presidente da comissão independente internacional da ONU de investigação sobre a República Árabe da Síria, Genebra, desde 2011 Ex-Ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos, governo FHC Ex- Assessor Especial, com status de secretário de estado, do governador Franco Montoro.   Foto de capa: Reprodução Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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Guaíba, o lago dourado  e a “experiência exclusiva”

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Guaíba, o lago dourado e a “experiência exclusiva”
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Por FABIO DAL MOLIN* O texto a seguir foi transcrito de uma propaganda veiculada no intervalo comercial de um telejornal do Rio Grande do Sul. Os destaques são do autor do texto. Golden Lake apresenta “Lake Eyre”, segundo condomínio do ÚNICO bairro PRIVATIVO de Porto Alegre. Um lugar para viver experiências EXCLUSIVAS. onde o cotidiano é repleto de momentos UNICOS. Espaços projetados para cuidar DO CORPO E DA MENTE. Você tem TOTAL CONTROLE sobre o que realmente importa: o seu bem-estar. Um lugar sofisticado e DIFERENTE de tudo que você já viu. Que torna cada instante ESPECIAL. Com ambientes para a família toda viver experiências memoráveis. Onde O TEMPO SE ALINHA AO SEU RITMO e cada dia se transforma em uma nova Oportunidade para você se conectar com o SEU PROPÓSITO.. Com elevadores panorâmicos inéditos e  vista deslumbrante. Os apartamentos foram projetados para oferecer conforto incomparável e um estilo de vida EXCLUSIVO. A sala de estar, equipada com lareira e churrasqueira cria a atmosfera ideal para momentos ESPECIAIS. Onde você tem um lugar RESERVADO para o espetáculo mais belo da cidade. Lake Eyre, viva DIFERENTE, viva o EXCLUSIVO. Observação discursiva: em inglês a palavra exclusive denota tanto exclusivo no sentido de privado quanto “excludente”, que é mais usado no português para exclusão social.  Em 1997 o diretor Phillipe Rousselot lançou o filme “O beijo da serpente”, estrelado pelo jovem Ewan MacGregor (Trainspotting, Cova Rasa, Star Wars) que interpreta um jardineiro farsante chamado Meneer Crown, contratado por um riquíssimo fabricante de  canhões do período entre as revoluções Francesa e Industrial para uma tarefa aparentemente banal mas singular: projetar um jardim. Não qualquer jardim, este teria sido receitado por um alienista para curar sua filha  emotiva, sensível, que flertava com a bruxaria na pequena floresta adjacente a seu palácio, que outrora pertencera a um nobre medieval.  A ideia seria um projeto paisagístico que representasse o total domínio do homem sobre a natureza, da razão sobre a emoção, um jardim sem plantas, sem fontes naturais, e cujas únicas plantas seriam importadas das colônias e seriam cultivadas em estufas. O plano do médico era que, ao passear pelo jardim, este conduziria a mente do caos a ordem, e traria a cura.  Em sua tese de doutorado que originaria “A história da loucura na idade clássica”, Foucault faz a genealogia da passagem entre a loucura mística, espraiada pelas comunidades humanas e folclorizada para a cisão moderna entre razão e desrazão em um mundo que se convertia de uma sociedade tradicional para uma sociedade moderna, urbana e industrial. Foucault chama de “grande confinamento” o processo de “governo dos vivos”, onde, da dicotomia dos castelos e igrejas vs camponeses a europa vai se constituindo em cidades e a vida social subjetiva vai sendo gerida pela fábrica, o exército, a escola, o hospital, o manicômio, a prisão. Foucault enfatiza a figura de Phillipe Pinel, considerado o grande libertador dos loucos, o pai da psiquiatria como conhecemos hoje. Do encarceramento herdado dos leprosos, os desarrazoados de Pinel serão tratados como “humanos”, sendo o conceito de humano oriundo do iluminismo. Em vez de torturas e correntes, um ambiente geometricamente organizado, dividido, limpo, organizado no tempo e no espaço irá aplacar a desmedida da loucura. E o saber médico irá definitivamente adentrar as portas dos manicômios de onde nunca mais sairá.Alguns anos mais adiante, depois de publicar “O nascimento da Clinica”, “As palavras e as coisas”  e constituir a Clínica como o conjunto de aparatos físicos, técnicos e morais de verificação para o governo dos corpos vivos, Foucault lança sua obra mais popular “Vigiar e Punir” onde faz a genealogia dos modos de governar os corpos dóceis que tem início com as estratégias disciplinares para o modelo panóptico, que representa a individualização e molecularização do poder.  A revolução industrial não representa apenas o predomínio das máquinas de metal, mas também o domínio das máquinas do corpo e da mente. Os tempos cartografados por Foucault representam o que os sociólogos chamam de Modernidade.  A Modernidade é um conceito que procura dar conta da ideia de sociedade como um conjunto de instituições disciplinares e de controle e gestão da máquina humana do capitalismo europeu. As sociedades modernas são coletivos de indivíduos governados pelo estado, a ciência, a moral e seus agentes, operadores da medicina, da engenharia e do direito. A sociedade moderna europeia foi financiada pela brutal exploração escravocrata das colônias, e seu corolário filosófico e científico serviu de suporte ideológico para as noções de higiene, eugenia, raça e pureza integradas a de “humano”. “Liberdade, igualdade, fraternidade” são atributos humanos, direitos humanos são para humanos. Na medicina normativista e eugenista loucos,  mestiços, pobres miseráveis,negros, mulheres rebeldes e devassas, pederastas,  eram considerados desvios , não humanos, objetos de estudo e governança da ciência e dos operadores do direito.  As duas grandes guerras mundiais e a depressão econômica de 1929 representaram o auge ideológico (os ideais nazistas) e o colapso econômico do sistema capitalista moderno e duas grandes revoluções comunistas ameaçavam o “mundo livre”. A injeção de recursos dos EUA na Europa e os incrementos científicos e tecnológicos da Segunda Guerra Mundial deram novo fôlego à Modernidade, e os anos pós 1945 são chamados de “os 30 gloriosos” pela sociologia. Foi quando começou a Europa que os turistas brasileiros amam, onde visitamos museus, usamos o trem como transporte, andamos seguros nas ruas e cujos autores das humanidades predominam até hoje nas bibliotecas universitárias (Foucault entre eles). Contudo, todo esse desenvolvimento se deu em uma sociedade que se tornava cada vez mais complexa, comunicativa, questionadora, alfabetizada, transgressora, que produziu maio de 1968, Black Panthers, feminismo, Stonewall, Woodstock, Angela Davis, protestos contra a Guerra do Vietnã. O grande aparato social e tecnológico da modernidade dos 30 gloriosos não era unânime: nos EUA apenas negros eram presos e “ressocializados”, os filhos e filhas passaram a se revoltar contra a repressão sexual das familias heneronormativas, os estudantes não queriam ser mais tijolos de um muro. Chegamos ao conceito de Modernidade Tardia. Ele é muito caro à sociologia contemporânea e surge em oposição ao de Pós Modernidade.  A Modernidade tardia representa a queda do sonho moderno, pela não sustentação do trabalho, da ciência e das instituições modernas como sustentáculo do laço social, e mais:representa a noção de que esse laço jamais existiu, um enorme contingente da população mundial, mesmo habitando os chamados países centrais, jamais experimentou a chamada Modernidade.   Da Modernidade vem o conceito de “inclusão social”: o sujeito moderno é aquele que é socializado pelas instituições modernas, o emprego, a medicina, a saúde, a habitação, todas as promessas que ressurgem na campanha eleitoral. Mas por outro lado o mundo é cada vez mais governado pelos detentores dos meios de produção e logo em seguida pelos especuladores financeiros e acionistas das Big Techs, nunca experimentamos um período de tanta desigualdade social. O conceito de “inclusão” da modernidade gera o que o sociólogo Jock Young em 2002  chamou de “sociedade excludente” (exclusive society). Quem não tem acesso aos mecanismos ideológicos e tecnológicos da inclusão, está excluído. E a ideia de sociedade excludente é que a de um mecanismo permanente de exclusão. Hoje, seis meses após o desastre ambiental vivido pelo Rio Grande do Sul, onde cidades inteiras foram varridas do mapa, um enorme contingente de pessoas perderam tudo o que tinham a estão até hoje vivendo na casa de parentes ou moradias provisórias,Porto Alegre  não possui parque industrial e cuja economia depende do trabalho precário e do setor terciário de serviços, e também uma enorme crise  urbanística e ambiental.  Os eleitores da cidade, em sua maioria pobres e trabalhadores precarizados, insistem em eleger gestores que privilegiam a devastação do patrimônio histórico, cultural e ambiental da cidade e grandes empreendimentos imobiliários voltados a um público restrito, mesmo após ter vivido as piores consequências desta gestão na enchente.  E agora como sintoma social surge a propaganda de uma empresa chamada “Golden lake”, um lago dourado, referência ao Guaíba iluminado pelo sol, o mesmo rio que transbordou e inundou a cidade de fezes, que agora está mais raso ainda pelo assoreamento e encalha navios e prejudica mais ainda sua pobre economia. O primeiro bairro “privativo”, onde é possível ter controle total sobre viver experiências únicas e desfrutar de uma vida exclusiva, onde há espaços projetados para o bem estar do corpo e da mente.  A gestão “exclusiva” do bairro privativo, às margens do “lago Guaíba” mas que possui seu próprio lago artificial, se dá pela exploração privada da força de trabalho precária dos operários da construção civil, da limpeza, segurança, comércio, alimentação e entregas. Todos pauperizados e precarizados e que jamais poderão morar onde trabalham, vivem justamente “do outro lado do rio” em Eldorado do Sul, no Sarandi, Humaitá, Navegantes. Ali onde o lago dourado transborda realmente em uma “exclusive experience” já que as pessoas gostam de nomes em inglês.   *Fabio Dal Molin, psicólogo, psicanalista, doutor em sociologia, professor da FURG e pós-doutorando do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Clínica e Cultura da UFRGS. Foto de capa:   Alex Rocha/PMPA Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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Bolsonaro tem medo de ser preso e admite se refugiar em embaixada

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Bolsonaro tem medo de ser preso e admite se refugiar em embaixada
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Em entrevista para o site UOL, realizada por Raquel Landim e Letícia Casado, o ex-presidente Jair Bolsonaro se diz perseguido e não descarta se refugiar em uma embaixada caso tenha sua prisão decretada ao final do processo penal. "Embaixada, pelo que vejo na história do mundo, quem se vê perseguido, pode ir para lá", disse ao UOL. "Se eu devesse alguma coisa, estaria nos Estados Unidos, não teria voltado." Ele admite ter conversado sobre "artigos da Constituição" com os comandantes das Forças Armadas para "voltar a discutir o processo eleitoral" após o pleito de 2022, mas diz que a ideia logo foi "abandonada". Bolsonaro nega ter ciência de plano para prender ou matar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice Geraldo Alckmin e o ministro do STF Alexandre de Moraes. Leia a seguir trechos da entrevista de Bolsonaro ao UOL, concedida nesta quarta-feira em um restaurante em Brasília. A PF afirma que o senhor tinha ciência do plano para matar ou prender o ministro Alexandre de Moraes. O senhor sabia disso? Para mim, é uma grande estória. A PF faz aquilo que o senhor ministro [Alexandre de Moraes] assim deseja. Basta você ter conhecimento dos áudios do Airton Viera [juiz instrutor de Moraes] para o Tagliaferro [Eduardo Tagliaferro, funcionário do TSE]: "Tenha criatividade" [expressão usada por Airton para Tagliaferro ao pedir investigação contra uma revista]. Aí o que fazem são suposições. Que plano era esse? Dar um golpe com um general da reserva, três ou quatro oficiais e um agente da PF? Que loucura é essa? Ali no prédio da Presidência trabalham mais ou menos 500 pessoas. E eu sei o que cada um tá fazendo? A condenação do presidente Lula na Lava Jato considerou a "teoria do domínio do fato". No seu caso, parece praticamente impossível que o senhor não soubesse que um golpe estava sendo elaborado. O senhor acredita que o Judiciário pode aplicar a mesma teoria no seu processo? Não. Lá atrás teve desvio. Foram devolvidos R$ 5 bilhões. Tinha o sítio de Atibaia, o apartamento do Guarujá, delações do Palocci [Antonio Palocci], depoimentos, delações. Agora tem uma única delação [de Mauro Cid], que ninguém mostra. Por que não mostra? A investigação não tem só a delação de Mauro Cid, seu ex-ajudante de ordens. Tem documentos, provas, a agenda do general Augusto Heleno. O que é esse plano [Punhal] Verde e Amarelo [apreendido com o general reformado do Exército Mário Fernandes, que previa a morte de Lula, Alckmin e Moraes] de que você fala? É de 2022. Não tenho a menor ideia do que seja isso. Começou a colocar em prática esse plano? Pelo que eu sei, não. Outro ponto importante da investigação da PF é a chamada minuta do golpe. Tem os depoimentos do comandante do Exército e do comandante da Marinha dizendo que o senhor apresenta a minuta e propõe a eles que seja declarado estado de defesa ou estado de sítio para anular as eleições. Minuta do golpe é baseada na Constituição. Para que serve a Constituição? É a nossa lei máxima. Eu entendo que ali é um norte para você seguir. Se tem um remédio ali, por que não discutir? Discutir um dos artigos da Constituição é algum crime? Foi levada avante alguma dessas possíveis propostas? O comandante do Exército falou sobre isso. Foi discutida a hipótese de GLO, de 142, de estado de sítio, estado de defesa. Qual é o problema de discutir isso aí? O senhor tem medo de ser preso? Bem... Vivemos num mundo das arbitrariedades. Corro risco, sem dever nada, corro risco. [O STF] Vai fazer a arbitrariedade, vamos ver as consequências. O que eu tenho a ver com o cara do rojão [do atentado na frente do STF]? Caiu na minha conta. O próprio Alexandre no dia seguinte: pau em mim. E o senhor cogita se exilar numa embaixada? Embaixada, pelo que eu vejo a história do mundo, né, quem se vê perseguido pode ir para lá. Se eu devesse alguma coisa, estaria nos Estados Unidos, não teria voltado. O senhor vai se manter candidato a presidente em 2026? Eu vou. Sou um cidadão. Sou um réu sem crime. Fui condenado [tornado inelegível pelo TSE] sem crime nenhum. E quem vai ser seu vice? Talvez um nordestino, um pau de arara, um cabra da peste. Originalmente publicado no site do UOL, em 28/11/2024 Foto da capa: EVARISTO SA/AFP Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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É só um PIX…

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É só um PIX…
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Por  GUSTAVO AROSSI * Há mais de um ano facilitaram nossas vidas com o chamado PIX. A vida dos brasileiros está muito melhor no que diz respeito a transferências diretas, instantâneas de dinheiro. Segundo dados, por dia são milhões de transações. O Pix até virou – “não há o que não haja” – em “emendas parlamentares PIX”. Atentem que nada passa despercebido do astuto e rápido Congresso Nacional. Deixando de lado a questão tecnológica e facilitadora da forma como nos relacionamos com nossos proventos e ou recursos financeiros, não posso deixar de mencionar o que hoje veio à lume sobre a chamada “Operação Capa Dura”, na prefeitura de Porto Alegre. Trata especificamente de esquemas de corrupção dentro de uma das mais importantes secretarias de qualquer município: Secretaria de Educação. Há quem ainda ouse dizer que o futuro é a educação! Deitados os fatos, cumpre ainda destacarmos: a dita investigação já prendeu secretários municipais; afastou por força da lei pessoas ligadas umbilicalmente ao governo Melo. Hoje, pasmem, soubemos que a Polícia Civil do Rio Grande do Sul escancarou que mais de meio milhão de reais cruzaram por “Pix” e saques em espécie –  moeda sonante – entre contas bancárias de pessoas consideradas peças-chave dentro do governo reeleito. Ainda e em tempo: não bastasse apenas que R$ 43,2 milhões teriam sido desviados (dados da Polícia Federal); nomes de pessoas com trânsito mais do que livre dentro das colunas da prefeitura foram citados. Com a quebra de sigilo bancário, soubemos que o vereador e filho do prefeito movimentou – transferiu – R$ 391 mil numa plataforma virtual de apostas e posteriormente resgatou R$ 287 mil, da mesma entidade de jogatina. Apenas para informação: o salário líquido de um vereador em Porto Alegre é de R$ 13,3 mil reais. Para algum desavisado e ou para o último crente na história da Velhinha de Taubaté, os fatos não são nada bons! É fato que a corrupção chegou no limite. Aliás, não deve existir linha limítrofe quando se trata da corrupção! Até porque desviar dinheiro da educação não é apenas um crime. É um crime lesa-pátria e sem chances de qualquer tipo de tergiversação. É necessária coragem, caro prefeito reeleito de, no mínimo apoiar impreterivelmente e tomar como finalidade primordial as investigações na SMED da capital dos gaúchos. Não fica e não é de bom tom deixar no ar apenas a ideia de que “as investigações devem ser realizadas”. Coragem e vergonha na cara para sim – se necessário – entregar o cordeiro para que seja imolado! O povo de Porto Alegre não merece assistir a  tudo o que está acontecendo sem uma resposta à altura. A democracia também não tem tempo para tal. Tome tenência, prezado prefeito Melo! Afinal de contas, sua reeleição contou com mais de 60% de participação popular e para a festa da democracia que hoje está rengueando. Por derradeiro, lembro de uma máxima latina que vem a calhar neste momento triste da história de Porto Alegre: “pecunia non ollet”.   *Gustavo Arossi é professor de Filosofia e Secretário de Educação em Anta Gorda/RS. Foto de capa: Marcello Casal JrAgência Bras Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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