Opinião
O que é isto, ocidente?
O que é isto, ocidente?
De JOÃO BATISTA MEZZOMO*
Definir o que seja Ocidente por si só já é assunto polêmico. Para efeitos deste artigo, consideramos um país pertencente ao Ocidente se tiver essas quatro características: ter predominância cristã, seu idioma ser indo-europeu, seu sistema político ser republicano e situar-se a ocidente de uma linha imaginária traçada mais ou menos entre Moscou e o ponto mais extremo sul da América do Sul. Do ponto de vista deste artigo, oriental e ocidental são dois modos de ser, os quais estão presentes em tudo, mas uma parte dos países tem mais características do “modo oriental de ser”, por isso chamamos Oriente, outra parte tem mais características do “modo ocidental de ser”, por isso chamamos Ocidente, outra parte (como os países do Leste Europeu) tem os dois modos em semelhante medida, por isso é difícil definir a qual modo de ser pertencem. Outra parte ainda tem como modo natural de ser um dos dois, mas adotam muitas características do outro, por terem se tornado sua área de influência, como o Japão. Por fim, existem ainda regiões que estão fora dessa classificação, por estarem, no tempo e no espaço, em pontos anteriores à emergência dessa diferença, como a África.
Originalmente, só existia no mundo uma espécie semelhante ao modo oriental de ser, mas o modo ocidental estava presente de maneira latente, como costuma acontecer. O Ocidente surgiu como uma diferenciação daquele antigo modo de ser e, em seu surgimento, criou o Oriente como “o resto do mundo”, de modo equivalente à vida que originalmente era assexuada e adotava um modo de ser mais próximo ao feminino, pela completude, tendo o masculino surgido como uma diferenciação a partir daquela forma biológica mais antiga. Do mesmo modo, podemos traçar um paralelo entre o antigo modo de ser com a infância, sendo o adulto uma diferenciação a partir dela, a qual foi uma fase onde estivemos num modo de ser em que detínhamos uma ligação mais profunda com o todo, mas agora estamos esquecidos disso.
O Ocidente começou a surgir de forma visível aproximadamente 500 anos antes de Cristo, quando alguns “reportaram” terem recebido orientações para alterar o modo de ser: Parmênides e Sócrates na Grécia Antiga, Jacó e Moises em alguma região entre o que hoje chamamos Oriente Médio e o norte da África. Em ambos os casos, independentemente de terem sido eventos reais ou não, o fato é que eles criaram dois fluxos, os quais vieram a se juntar na Idade Média, quando o Ocidente foi gestado e veio a se revelar para o mundo. O primeiro fluxo, da tradição judaico-cristã, gerou uma religião do tipo moderno, que tirou todo o sobrenatural do mundo e o declarou isento de magia e ao inteiro dispor do ser humano, pretensamente feito à imagem e semelhança daquele que teria se dito o único Deus, Javé. O outro, o caminho da racionalidade grega, gerou uma compreensão racional do mundo e uma ciência que já se pensou descobridora de leis insofismáveis, mas hoje sabemos que não é bem assim. Esse caminho grego é o que fez Sócrates abandonar a explicação mítica da realidade e sair por a Atenas e perguntar: O que é isto, virtude; o que é isto, coragem; o que é isto, amor? Por isso mesmo, pelo título deste artigo você pode ter certeza que o autor deve um tributo à Sócrates, e provavelmente você também. Pois ele foi, ao que tudo indica, o primeiro que percebeu que as coisas poderiam ser explicadas pela racionalidade e não como atributos de divindades. O fato é que a religião e a ciência modernas, que muitas vezes se consideram mutuamente antípodas, juntas possibilitaram um novo modo de ser, a chamada modernidade, a qual individualmente não poderiam constituir. O Ocidente surgiu a partir desse novo modo de ser que dividiu a realidade em corpo e alma, matéria e espírito, teoria e prática. Um modo de ser que possibilitou imensos avanços civilizatórios e no controle do ser humano sobre a natureza, de modo que hoje podemos começar a vislumbrar a possibilidade de um mundo de abundância.
Neste ponto devo fazer um pequeno parêntesis, na medida em que imagino que muitos que me leem podem estar resmungando entre dentes que não foi um avanço civilizatório, mas um retrocesso. Vejam bem, no meu artigo intitulado Prolegômenos eu alertei que não podemos julgar se queremos compreender, e também que o sentido que adotamos não é somente o de causa e efeito, mas também e ao mesmo tempo o teleológico, ou seja, dos fins, e neste último sentido, o que foi feito não foi feito por nós, seres humanos. Pelo contrário, pela nossa hipótese, nós fomos e ainda somos carregados em vista de fins determinados alhures. E para que a humanidade não seja mais carregada pelo fluxo da história, mas sim possa se colocar a cavaleiro de seu destino, ela tem de constituir uma lei que a oriente. Ela ainda não teria descoberto essa lei, mas estaria em seu encalço, mesmo que às vezes não se dê conta disso. E vejam, se somos conduzidos por fins determinados alhures, é possível que um deles tenha sido a constituição de uma sociedade crítica, que desafiou o mundo antigo. Sócrates e Jesus teriam seguido as suas respectivas fontes e pago caro por isso: pagaram com a vida. Por isso, eles se constituíram em sementes de uma sociedade que desafiou a natureza e é crítica, inclusive consigo mesma, donde se origina também a crítica do Ocidente ao próprio Ocidente, ou seja, àquilo que nós mesmos somos. E o que poderíamos dizer preliminarmente dos “deuses” de Jesus e Sócrates, numa consideração fria e racional? Poderíamos dizer que eles parecem ter sido comandos dados com a intenção de que algo se diferenciasse para trilhar um caminho novo. O caminho se constituiu, e ele é crítico, inclusive consigo mesmo, e também, a racionalidade que ele usa como instrumento ilumina o seu redor, mas deixa escuro o local de onde ele veio, o que induz às vezes à idealização do passado e o desmerecimento do presente. E, pensando bem, se fôssemos nós a bolar um mundo com o objetivo de chegar a um determinado fim, como faríamos o nosso agente – uma espécie de criança que pouco ou nada sabe à respeito – ir em direção ao ponto desejado? Obviamente, nós podemos nos queixar e criticar a obra feita, mas primeiro convém compreendê-la, e não é através de queixas e julgamentos morais que poderemos fazer isso.
Oriente e Ocidente são diferentes em muitos aspectos e enumerá-los e esclarecê-los é importante para entender a nossa situação, do ser humano, bem como para esclarecer aquela importante questão que diz respeito à felicidade coletiva e para onde estamos indo, coletivamente, algo que presentemente ignoramos, mas estamos no caminho de seu desvendamento. Primeiramente, o Ocidente é filho do Oriente, foi preparado por ele em minúcias e em muitos sentidos é a realização de seus desejos, como são nossos filhos para nós e fomos nós para nossos pais. Mas, também como sucede conosco, tão logo o Ocidente começou a tomar o seu caminho, estabeleceu-se um “conflito planetário de gerações”. Numa visão planetária mais ampla, digamos que a mãe de tudo foi a África, ela parece ser nossa “mãe solteira” de pai ignorado. Seus filhos são os povos asiáticos e indo europeus. Seu neto, o Ocidente. A África é então, nossa criança, nossa mãe e nossa avó. Ela é a guardiã dos tesouros ocultos, “o nada que é tudo”, o princípio e o fim. Segundo a versão mais aceita pela antropologia atual, depois de seu surgimento na África, o ser humano se espalhou pelo resto do mundo. Saindo de casa ele passou pela região do atual Oriente Médio e depois se dividiu: a parte que foi pelo lado direito do Himalaia formou os povos asiáticos, a outra os povos indo-europeus, os quais são falantes dos idiomas indo-europeus atuais, que surgiram às margens do Volga, um rio que corta a Rússia numa região próxima à Ucrânia. Essas duas correntes, “filhas” da “mama África”, vieram em direção ao seu ocidente geográfico esporadicamente se tocando, no mais das vezes violentamente, se misturando e disputando espaço. A parte indo-europeia parou no Atlântico, mas outra parte, presumivelmente bem mais asiática do que indo-europeia, alcançou o continente americano e o povoou desde a sua cabeça, na América do Norte, até seus pés, na Patagônia, passando pelo seu coração, na América Central, sua barriga e suas vísceras, na altura do Rio de Janeiro e suas pernas e coxas, no Cone Sul. E a sustentar de pé o “bicho” que chamamos América, sua coluna vertebral, a Cordilheira dos Andes (reedição do Himalaia?). Assim o Ocidente se constituiu em duas partes, advindas elas da divisão ocorrida no passado e agora separadas por um oceano. Sem que uma soubesse da outra, mesmo assim elas sentiam reciprocamente suas faltas. Do lado da Europa, a escolha pelo ser gerou seres em conflito, com um vazio no oco do peito, sempre em busca de sua parte perdida. Do lado da América, em muitos pontos perto do Atlântico, se esperava algo que foi embora prometendo voltar, como no relato da lenda da Serpente Emplumada, comum a muitos povos da América central. Enquanto se esperava o momento dessa volta, na América viveu-se profundamente o não-ser, em práticas místico religiosas ainda não desvendadas em sua essência, mas que pareceram extremamente selvagens ao conquistador. Mas, em alguns pontos, o conquistado também estranhou certa ânsia exagerada do conquistador por destruir, modificar, acumular, algo que aos seus olhos denotava imaturidade e desequilíbrio. Mesmo assim, de um modo geral o ameríndio recebeu o conquistador europeu de um modo que nem Ásia e nem África receberam.
Se as coisas aconteceram exatamente dessa forma, não sabemos ao certo, mas isso pouco ou nada importa. O que importa é saber se a descrição pode explicar aquilo que vemos no mundo e mesmo basear um conhecimento que venha um dia nos tirar da ignorância sobre o nosso destino, conhecimento o qual só poderemos obter colocando nossas ideias em prática, ao modo de uma ciência. Por isso, a descrição do surgimento do Ocidente a partir de um modo oriental de ser somente pode ser válida se ela explicar as coisas que vemos de modo que se tornem inteligíveis e permitam uma ação sobre a realidade histórica. Seguindo adiante, agora numa parte mais conhecida de nossa história, os povos asiáticos e indo-europeus tinham o mesmo modo oriental de ser antes que o Ocidente começasse a aflorar como resultado dos dois. Eram basicamente povos nômades, sua atividade inicialmente era a coleta. Com a fixação em alguns locais eles se tornaram sedentários e desenvolveram a agricultura, mas o choque com os povos nômades continuou por muito tempo e em algum sentido continua até os dias atuais, pois o espírito das coisas nunca morre. E foi o “espírito do feudalismo” que, antecedendo ao próprio feudalismo histórico e com a fixação dos povos e o desenvolvimento da agricultura, fez surgir o modo de produção ligado à terra, com suas relações servis e fundadas em um poder que provinha do céu. A sociedade que se formou era hierárquica, sob o comando de um chefe de guerra, um imperador ou um grupo familiar, nas oligarquias. Não existiam liberdades individuais, a única liberdade existente era a da polis ou grupo humano não ser dominada por outros, e essa liberdade custava a necessidade de guerra permanente, com a consequente ausência de liberdades individuais. Tão logo o modo ocidental começou a aparecer no mundo, em Atenas, Esparta, representando o mundo antigo, o atacou, na Guerra do Peloponeso, por medo dessa novidade que poderia depor a oligarquia governante. Desde lá isso tem se repetido, quer nas guerras de Roma contra a sua “Atenas”, Cartago, uma cidade comercial fundada por fenícios; quer nas Cruzadas quando o Ocidente conquistou seu espaço vital, empurrando o Oriente para mais longe; quer da Guerra dos 30 Anos, quando a Europa, então misturada como a primitiva terra do Gênesis, separou águas (moderno – Ocidente) de terras (antigo – Oriente) e dividiu-se em dois blocos pró e contra a novidade representada pela indústria e comércio em expansão, com consequentes novas ideias; quer nas Guerras Napoleônicas, quando a França internacionalizou o modelo republicano em grande medida para se defender do mundo antigo, de base agrária; quer na Guerra Franco-Prussiana, bem como nas Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Nesses três últimos conflitos, foi o Oriente guerreiro que investiu contra o que, em sua opinião, era um decadente sistema do “populacho”, mas que em seu avanço ameaçava destruí-lo em sua essência guerreira, como acontecera com Roma. Em todos esses conflitos, um componente essencial era a disputa de modelos de mundo: um governo de poucos, aparentemente imutável, hierárquico, de base agrária, outro democrático, republicano, em constante mutação, baseado na mercadoria e nos negócios da burguesia: comércio, indústria e bancos. Dois modelos de mundo, dois espíritos, dois modos de produção, dois conjuntos de classes e dois modelos de Estado.
Mas as diferenças entre Oriente e Ocidente são mais sutis que isso. O Ocidente dividiu o mundo em dois, criou uma espécie de segunda natureza, uma cópia abstrata da primeira, a qual considera plenamente racional, e pensa poder igualar a realidade do mundo a essa abstração. Era a isso que se referia Hegel quando disse que “a ideologia é uma inversão da realidade”, algo que Marx tomou e usou no sentido de ideologia como uma visão de mundo passível de ser usada por uma classe para convencimento de outra. Mas Hegel via ideologia como uma imagem refletida em um espelho, um mundo em nossa cabeça serviria como modelo compreensível para o mundo, mas não se igualaria a ele. O mundo abstrato é perfeitamente inteligível pois ele é o ser de Parmênides, mas o mundo real é ser e não-ser. O “modo oriental de ser” e o próprio Oriente de hoje não separam ser de não-ser, por isso o seu símbolo é o Yin e Yang, representativo da totalidade, mas a deusa aconselhou Parmênides – e ele aceitou seu conselho – a abandonar aquele mundo duplo e complexo, de “seres bifrontes”, e Sócrates acolheu a orientação de Parmênides. Acabou iniciando aquele fluxo que gerou um mundo duplo, com seres de duas caras – uma teórica, a outra prática – algo que o Oriente não entende muito bem e reputa falso. Por outro lado, um certo deus que falara a Jacó, a pedido de Moises se auto denominou “eu sou aquele que é” (JAVE) e desaconselhou todo e qualquer contado com os povos que não seguissem estritamente o caminho apontado por ele. Esses dois movimentos se fundiram na Idade Média, um período que pode ser visto como de gestação do Ocidente, e deram à luz a este ser que desenvolveu artefatos novos, que lhe permitiram lançar os seus “colombos” a ocidente, numa história bem conhecida, mas não inteiramente revelada. E as naves que “descobriram” um novo mundo eram conduzidas por seres em conflito em busca de sua parte perdida, elas tinham cruzes em suas velas, a denotar que pretensamente não eram apenas deste mundo, mas ao mesmo tempo eram artefatos de uma ciência ainda em início de desenvolvimento, o que mostraria para um observador situado nas estrelas a duplicidade contraditória e ao mesmo tempo criativa que caracteriza o Ocidente. Para que a “razão astuta” pudesse levar o ser humano a fazer isso, ela teve que preparar os eventos em minúcias, desde a disposição do planeta em mares e continentes com essências próprias até o desenvolvimento de línguas novas, que permitiram novas descrições e compreensões de mundo.
A partir daí, aprofundou-se a construção de um mundo dividido em espírito e matéria, tendo o Ocidente desenvolvido uma ciência muitíssimo mais criativa e poderosa que a do “modo oriental de ser” e com ela se alastrado pelo mundo. Essa ciência era mais avançada que a anterior porque com ela o mundo resultou isento do sagrado, por isso pode ser manipulado sem nenhum receio ou culpa, e o mundo abstrato “na cabeça” admite mil ideias, que depois podem ser testadas na realidade empírica. Resultou que essa ciência nova tirou a primazia do Oriente na fabricação e a indústria foi durante o domínio inglês algo que se tentava colocar sob o controle de um único país todos os setores da indústria, desde a matéria prima, o segredo de indústria, a fabricação e a comercialização. Depois que a Inglaterra foi substituída no comando pelos EUA, igualmente manteve-se o controle das diversas partes da indústria, como os custos dos insumos, o qual foi mantido baixo através da produção própria de amplo espectro, através da primazia do dólar, ancorada nos acordos de Bretton Woods, bem como pelo seu poder de império, que colocou dirigentes amigos em posições estratégicas pelo mundo afora, até que coisas como o monopólio da OPEP e a formação de um acúmulo de riqueza fora do controle dos países começaram a romper o modelo. Mais adiante, com a queda do socialismo real e os acordos com a China, a fabricação (que é apenas uma das partes da chamada “indústria”) passou a se transferir paulatinamente para a Ásia. Essa questão da dita “desindustrialização do Ocidente” merece uma consideração mais cuidadosa aqui, e mais ainda num artigo futuro, pois ela encerra muitas questões importantes e sutis e muitos equívocos.
O fato de a Ásia ser mais hábil na fabricação que o resto do mundo já havia sido detectado ao menos desde as Guerras do Ópio e a dominação da Inglaterra sobre a China. No livro A Imperatriz de Ferro a autora, Jung Chang, relata en passant o sucesso da construção de Hong Kong pelos ingleses, usando mão de obra chinesa. Mas podemos citar muitas outras evidências, como o sucesso da Terceira Revolução Industrial, no Japão, onde a diferença foi justamente o aprimoramento do processo de fabricação e, por fim, a própria inundação atual de produtos de fabricação chinesa a baixos preços.
Na verdade, a China já foi a pátria da fabricação até mais ou menos o início do Século XV, quando se recolheu em si justamente no momento em que a Europa começava a se expandir. Os motivos também são inerentes ao modo oriental de ser, pois o imperador Zhu Di, que tinha um temperamento “internacionalista”, algo um tanto alheio à essência do pensamento chines, o qual é extremamente centrado em si, foi derrubado por setores conservadores mais autenticamente chineses e mais centrados na atividade rural e na própria China, vista a si mesma como o “império central”. A partir daí a China se fechou em si, até que o extremo avanço do Ocidente a acordou, na segunda metade do século XX. Tal primazia na fabricação vem igualmente do modo oriental de ser, pois nele matéria e espírito não estão separados. O mundo sempre é novo e digno de espanto e admiração, de modo a que lidar com ele é sempre fascinante. Para um ocidental que tem um mundo teórico na cabeça, o qual tenta impor ao mundo real, pleno de diversidades, ter de encarar o insubordinado mundo real numa atividade fabril o obriga a “repetir sempre a mesma coisa”, numa atividade tediosa e equivalente ao trabalho escravo, pois o obriga a sair de seu mundo abstrato em que só existe o ser, plenamente inteligível, e onde a matéria é simplesmente a substância descrita pelas ciências físicas, algo desprovido de atributos além das que seu modelo redutor da realidade concede. A diferença entre os modos oriental e ocidental de ser no que tange à atividade fabril foi muito bem captada no documentário “Indústria Americana“, recentemente premiado com o Oscar. Na película, uma jovem operária chinesa verifica a qualidade de vidros fabricados para a indústria automobilista numa fábrica chinesa nos EUA. A cada vidro que ela minuciosamente revisa, parece aumentar seu foco, sua satisfação e seu grau de eficiência. Já um operário americano envolvido na mesma atividade, sentado num bar após um duro dia de trabalho, se questiona: “o que estou fazendo com a minha vida?”
Ou seja, o que normalmente se diz no Ocidente sobre a exploração desumana do trabalho nos países asiáticos é, em boa medida, um preconceito de quem olha para “o outro” e o julga a partir de si mesmo, algo tipicamente ocidental. Pois o ocidental já tem um modelo de ser humano na sua cabeça e o tenta impor ao mundo, mesmo que o mundo às vezes demonstre até de forma violenta não ser o caso. Mas vejam, esse “distraído” modo de ser ocidental é extremamente criativo e está por trás do imenso avanço da produtividade no mundo. Talvez seja o caso de entendermos que aqui também “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Por isso mesmo, enquanto se estava discutindo se era melhor o comunismo ou o capitalismo, a razão astuta cuidou para que o invento do Ocidente caísse nas mãos do Oriente e a sociedade global se tornou extremamente mais produtiva, permitindo mesmo que, nos dias atuais, já se possa pensar num mundo de abundância. E o que barra um avanço maior? Justamente “o mundo em nossa cabeça”, o qual resiste para não morrer e luta contra as mudanças, tentando trazer de volta a realidade de países estanques a um mundo que já opera globalmente e não demostra intenções de voltar atrás.
Por fim, se o Oriente gerou o Ocidente, foi porque as coisas assim foram preparadas, incluindo o próprio Oriente. E do mesmo modo que o “filho” acordou do sono os seus progenitores, estes igualmente poderão trazer o seu distraído herdeiro de volta à Terra, um planeta pleno de diversidades e que transborda o molde de uma abstração que o põe de ponta cabeça. Por outro lado, devemos lembrar que, na ordem natural do mundo, os bisnetos costumam nascer dos netos, não dos pais. Ou seja, possivelmente o novo de alguma forma nascerá do Ocidente, ou mesmo, talvez ele já tenha nascido, mas estamos lutando contra. E não vamos ajudá-lo a se constituir lutando contra o Ocidente, nem trazendo de volta guerras do passado. O novo é a terra constituída como um país único, onde haverá espaço para todos os mundos, todas as pessoas, todas as escolhas. E ela já está aqui, mas o velho mundo de países estanques resiste para não morrer. Pela nossa hipótese, independentemente do que venha a acontecer, tudo isso se fará por ditames de uma razão astuta, até que o ser humano possa enfim se libertar dessa lei e se colocar a cavaleiro de seu destino. Como filósofo, devo dizer que creio que isso somente poderá ser alcançado pela fria reflexão e pelo esclarecimento, nunca por julgamentos morais e vendetas.
*Filósofo, economista e engenheiro elétrico, servidor público da Secretaria da Fazenda do RS.
Imagem – ilustração em ncultura.
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