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Opinião

Prolegômenos

Prolegômenos

Artigo por RED
23/09/2022 12:26 • Atualizado em 24/09/2022 11:24
Prolegômenos

De JOÃO BATISTA MEZZOMO*

Prolegômenos a Toda a Metafísica Futura é um livro que o filósofo Immanuel Kant escreveu para tentar explicar o seu primeiro e mais conhecido livro, Crítica da Razão Pura, devido às queixas generalizadas a respeito do grau de complexidade e dificuldade de compreensão do mesmo. Porém, pouco adiantou: os “Prolegômenos” foram deixados de lado por terem sido considerados mais difíceis do que a “Crítica” que Kant tentou explicar.

Espero não fazer o mesmo nestes meus prolegômenos, onde tentarei colocar algumas bases do que vou abordar quinzenalmente neste espaço. Eu não pretendo escrever unicamente sobre filosofia, mas principalmente abordar, de um ponto de vista filosófico, os temas que julgo pertinentes para quem, como eu, deseja construir um “outro mundo possível”, ação que no momento, ao meu ver, carece de certa reflexão, certo aprofundamento, e a esquerda me parece um tanto perdida, presa ainda a condições do passado. Para fazer isso eu desejo inicialmente colocar alguns fundamentos, de modo que nas abordagens futuras eu terei de recorrer a eles.

Em primeiro lugar, adotamos a visão de Hegel de que “a verdade está no todo”, mas num sentido bastante mais vasto do que Hegel adotou. Para Hegel tal princípio se restringia ao campo meramente especulativo, mas sua abordagem da totalidade possui em si muitos desdobramentos possíveis, alguns deles nem Hegel poderia imaginar, já que viveu num tempo e lugar um tanto diverso do nosso. Usando um modo de falar de hoje, o lugar da fala de Hegel não permitia o que o nosso permite, e vice-versa, mas a frase que resume de algum modo o seu filosofar continua válida, em essência. A “verdade” está no todo, e ela se mostra à medida que o processo histórico avança.

Eu grifei a palavra verdade para destacá-la. Pois afinal, que verdade é essa que está no todo? É a verdade que está encoberta para as abordagens parciais. Mas ela sempre esteve encoberta? Possivelmente não, quem a encobriu foi o processo que nos trouxe até o momento atual, um momento de racionalidade e conhecimento, mas um conhecimento que nos concede apenas verdades parciais, nas quais “temos razão”, o que é sutilmente diferente de “possuir a verdade”, ou “residir na verdade”. Hegel trouxe essa ideia de um pré-socrático, Heráclito, junto com o método dialético, que é um modo de abordar a totalidade de forma a se aproximar da “verdade”. Hegel fez isso para tentar romper a interdição kantiana, a qual vedou à razão humana a possibilidade de penetrar além dos fenômenos. Pois foi justamente depois de Heráclito que a filosofia como conhecemos hoje iniciou, com Parmênides e depois com Sócrates, os quais abriram mão da totalidade, composta por ser e não-ser, e passaram a tratar somente do ser, “que é”, obstaculizando o não-ser, “que não é”. Ou seja, eles passaram a tratar somente do que é inteligível pela razão humana, mas nunca disseram que o não inteligível não existe, apenas o interditaram, por motivos práticos. Nessa linha de raciocínio, a tradição de conhecimento ocidental, iniciada na Atenas de 2400 anos atrás, nos trouxe um conhecimento que transformou o mundo, mas manteve a sua essência velada. E agora que temos de ir um pouco além, penso que precisamos voltar de alguma forma para a totalidade. Mas o que isso significaria?

Bem, muitas coisas. Em primeiro lugar, se a verdade está no todo, todos “tem razão”, de modo que teríamos de repensar coisas como “com fascismo não se dialoga”. Dito de forma mais abrangente, quando emitimos juízos sobre o mundo separando o bem do mal, nos afastamos da verdade, por isso “quando a moral chega, a ciência dá no pé”. Precisamos tentar ir “além do bem o e do mal”, para um território “extramoral” (dois termos de Nietzsche, por contraditório que seja), se quisermos compreender o todo e nos aproximar da “verdade” que nele reside. Significa isso que devemos abandonar nossa posição neste verdadeiro cabo de guerra? Não! Significa apenas poder nos colocar acima do próprio cabo de guerra e do próprio mundo, de modo a entender o sentido de ambos, que não são resultado da decisão de ninguém que seja nosso conhecido, ou conhecido de conhecido.

Em segundo lugar, significa sair de um ponto de vista que supõe a tudo e a todos iguais. Se pudermos vencer a preguiça que trata a todos pela nossa própria régua, poderemos ver que o planeta em que vivemos se constitui numa vastidão de essências extremamente diversas, que parecem resistir às invasões e domínios humanos que se sucedem na história. A abordagem que faremos trata do planeta como um todo, onde cada continente tem sua essência imutável, seu sentido, “sua razão”, mas a verdade mais uma vez somente pode ser percebida pelo todo. E da mesma forma sucede com os países dentro dos continentes, e com as regiões dentro dos países.

Por outro lado, também não podemos julgar o passado pelo presente. Muitos modos de pensar que nos escandalizam hoje eram considerados normais há pouco tempo, e até por pessoas de nosso tempo, e eles também tiveram a sua razão de existir e em alguma medida ainda a tem. Considerado globalmente, as diversas regiões e povos do mundo evoluem e em seu conjunto se dirigem a “um fim” que desconhecemos, mas que talvez possamos vislumbrar pela consideração do todo que não julga, mas tenta revelar. Neste sentido, cada etapa foi e é necessária e quando a julgamos moralmente nos afastamos da compreensão possível do processo histórico. Dizendo o mesmo de outro modo, quem se escandaliza com o retorno de certas ideias e mesmo com a atitude de figuras de nosso passado, é claro que “tem razão”, mas talvez, mais uma vez, de seu “lugar de fala” não consiga vislumbrar muito bem a “verdade”. Como disse Hegel, o sol nasce e se põe todos os dias por leis que desconhece. Por que seria diferente com a própria história?

Ou seja, considerar a totalidade significa olhar para tudo tentando descobrir em que consiste, longe de simplificações ou julgamentos. Por exemplo, se dizemos que a religião é o ópio do povo, claro que “temos razão”, mas ocorre que ela pode não ser somente isso. Da mesma forma, considerar aquilo que não compreendemos como inexistente pode ser bom para debates acadêmicos ou mesmo para posar de sabichões, mas não resolve muito pois, a rigor, nós desconhecemos a essência de tudo e, consequentemente, de nós mesmos. Então, quanto à religião, à metafísica e ao próprio misticismo em geral, não podemos simplesmente descartá-los, pois são uma peça da totalidade que somente em conjunto com as outras poderão, quiçá, deixar ver a figura que escondem. Do mesmo modo e pelos mesmos motivos, não podemos olhar as áreas do conhecimento científico como coisas estanques e propriedade dos especialistas da área, que efetivamente “tem razão”, no entanto…..

Ainda, e muito importante, avaliar sob o ponto de vista da totalidade significa deixar de lado a consideração do mundo apenas como o resultado de leis de causa e efeito. Teremos de avaliar as coisas também em vista dos fins para os quais hipoteticamente foram criadas, ou seja, sob o ponto de vista “teleológico” (da palavra grega telos, que significa “fim”). Quando olhamos o todo, automaticamente somos induzidos a aventar a hipótese de “algo” ter pensado tudo isso, o que remete também a um retorno à metafísica. Por isso mesmo, Hegel concluiu que a história é movida por uma “razão astuta” e que não cabe à filosofia decidir seus rumos, apenas revelar seus passos, depois de dados. Esse foi um dos principais pontos de discordância de Marx com Hegel, mas isso não é assunto dos presente prolegômenos, retornaremos a ele em breve.

É bom saber que o pensamento de Hegel e a própria consideração do todo foi colocada de lado e há muito imperam as abordagens parciais. Um dos motivos, mas não o único, é que é mais fácil tratar da coisa cortada em mil pedaços e morta e “analisar” o seu cadáver do que considerá-la viva e em ação. E é bem mais fácil nos colocarmos no ponto do certo, que tem em seu poder a máquina da história, do que olhar para a história em permanente transformação, levando em conta todos os pontos de vista. Além do mais, a dialética de Hegel se presta a justificar qualquer coisa, e ela de fato serviu para justificar o status quo de seu tempo, como veremos quando tratarmos das diferenças entre Hegel e Marx e a questão de “o que fazer” neste momento. Mesmo assim, pensamos que as abordagens “em partes” já não conseguem mais avançar no sentido de explicar o mundo atual e seus problemas, por isso, temos de olhar as coisas novamente de maneira global, ainda que isso cause certo desalinho em nosso mundo composto e alimentado por ideias fixas a respeito de tudo.

Por ora encerramos aqui para evitar que nossos prolegômenos tenham o mesmo destino que os de Kant. Antes de finalizar, porém, gostaria de tratar um pouco mais daquele início do caminho ocidental do conhecimento, em Parmênides e Sócrates. Teremos de referir algumas vezes àquele início, pois se trata de um dos fundamentos do Ocidente, juntamente com outro, que é o da tradição judaico-cristã. Em ambos os casos, houve quem dissesse ter alguém ouvido vozes, ou tido visões. Nos dias atuais seriam reputados esquizofrênicos, mas aqueles tempos não tinham a mesma visão que a de hoje sobre tais tipos de eventos, se é que foram de fato eventos. Porém, independentemente de terem sido ou não, tais relatos são tomados como reais e fundam, por um lado, a crença em uma possibilidade além desta vida, por outro, a de que o mundo é uma máquina regida por leis, imunes a qualquer interferência sobrenatural.

Fiquemos apenas com o caminho grego, que nos deu a racionalidade como fundamento do mundo. Quem deu o verdadeiro impulso foi Sócrates, que saiu a questionar em que consistem as coisas, causando certo desconforto numa sociedade que fundava o mundo em entidades sobrenaturais, os mitos. Por isso uma das acusações que levou Sócrates ao julgamento e à morte, de que desacreditava dos deuses do panteão grego, tinha sim certo fundamento, apesar de seus protestos. Mas Sócrates não partiu do nada, antes dele Parmênides já havia tido, ao que parece, uma espécie de arrebatamento, sendo carregado por musas numa biga em chamas, até cruzar um portal onde teria tomado posse de um precioso conhecimento, através de uma voz que lhe disse que “o ser é, o não-ser não é”, além de o ter aconselhado a não se envolver no perigoso caminho do não-ser. Isso representava uma ruptura em relação à totalidade de Heráclito, seu contemporâneo, já referimos isso. Pois bem, Sócrates jovem conheceu Parmênides velho, e nele se inspirou. Além disso, Sócrates diversas vezes falou que desde criança ouvia a voz de um deus, ou um demônio – daimon pode ser tanto um quanto outro. Enfim, ele ouvia a voz de uma entidade que o orientava, imagino que semelhante às entidades da Umbanda, ou do espiritismo. E o daimon de Sócrates só falava com ele para contrariá-lo, ou seja, ele somente alertava Sócrates quando este procedia de modo equivocado ou falava uma inverdade. Assim, Sócrates deve ao daimon o impulso que deu à filosofia, e nós também devemos isso a ele. E quando Sócrates foi condenado a tomar cicuta, lhe foi oferecido uma saída: ele poderia desdizer o que disse e se safaria da morte. Mas Sócrates respondeu que preferia morrer do que deixar de ser ele mesmo e que, quando decidiu isso, seu deus não falou nada….

Vejam vejam, Sócrates não escreveu uma linha, Sócrates preferiu morrer a abrir mão do que acreditava e Sócrates foi orientado por uma voz, que se calou na decisão final. E mudou o mundo, ou mudaram em seu nome. Existe outro personagem de nossa história que também dizem que dizia ter tido orientação sobrenatural, que também não escreveu nada e que também preferiu morrer a fugir de seu destino, e a voz que pretensamente o orientava também se calou na hora fatal. E ele também mudou o mundo, ou mudaram em seu nome: foi Jesus. E no nascedouro daquele rio que chegou na Palestina há 2000 anos atrás, foi escrito por alguém que alguém também disse ter ouvido uma voz saindo de uma sarça em chamas que lhe disse: eu sou aquele que é!

É importante que fique claro que as considerações acima não se referem à propriedade nem à realidade de crenças místico-religiosas de qualquer espécie, tampouco à sua negação. Elas somente colocam a questão dos fundamentos do modo como explicamos o mundo de um ponto de vista da totalidade, sem julgamentos de nenhum tipo, nem dogmas, sejam religiosos ou “científicos”, para embasar as considerações que se fará neste espaço dos problemas de hoje. A pertinência ou não deste caminho deve ser analisada pelos seus resultados na tentativa de explicação do mundo e como base de uma possível ação concreta no futuro, como sucede com toda a ciência e com a própria técnica. Por fim, se em meus artigos, no futuro, as conclusões que eu chegar através desse método que a tudo mistura colidirem com o que você pensa, imagine, nem que seja de brincadeira, que você é o Sócrates e eu sou o seu daimon, se lhe apraz.

*Filósofo, economista e engenheiro elétrico, servidor público da Secretaria da Fazenda do RS.

Foto em Pixabay.

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