Em um Mundo Desnorteado Há que se Resignificar Orientações

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Por ARLINDO VILASCHI*

Desde a Revolução Industrial, no século XVIII, os países do Norte — em especial da Europa Ocidental e, mais tarde, os Estados Unidos — assumiram o papel de liderança global. Essa posição lhes permitiu impor ao restante do mundo valores econômicos, culturais e políticos apresentados como universais. A modernização, o progresso, a democracia liberal e o livre mercado foram transformados em modelos a serem seguidos. Aos países do Sul, coube a condição de aprendizes, ou dependentes, sempre estimulados a ajustar seus rumos conforme as orientações vindas desse Norte hegemônico.

Ao longo do século XX, essa liderança foi consolidada com o poder econômico e militar das grandes potências, especialmente dos Estados Unidos, após a Segunda Guerra Mundial. O Plano Marshall, a criação do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional (FMI) e, mais tarde, da Organização Mundial do Comércio (OMC), compuseram um arcabouço institucional que reforçou a ordem internacional sob hegemonia ocidental. O discurso era de integração, mas a prática revelava o controle sobre fluxos financeiros e decisões políticas que atendiam primordialmente a Washington e seus aliados.

Nas últimas décadas, essa bússola começou a girar de forma errática, como uma biruta de aeroporto ao sabor dos ventos dominantes. Os Estados Unidos, principal referência desse Norte, passaram a adotar políticas cada vez mais contraditórias, com relação aos discursos de liberdade e prosperidade para todos, porém centradas em seus interesses imediatistas.

A presidência de Donald Trump, em seu primeiro mandato, tornou essa oscilação explícita: ataques às instituições multilaterais, criadas e controladas pelos EEUU e aliados; rejeição aos acordos climáticos internacionais; desrespeito a fundamentos do multilateralismo; relativização do sentido de democracia e soberania de povos e nações. No mandato de Biden, que governou no intervalo entre os dois períodos de Trump como presidente, continuou evidente que o Norte havia perdido clareza estratégica, dividindo-se entre um discurso globalista e práticas nacionalistas de defesa de privilégios.

Esse comportamento errático fragiliza a pretensão de universalidade de valores impostos ao mundo, pelo Ocidente, desde a Revolução Industrial. Se antes os EUA eram vistos como uma espécie de guia, hoje se revelam cada vez mais reféns de radicalismos anti migrantes / direitos sociais / liberdades individuais, e de interesses econômicos e financeiros imediatistas. Essa contradição abre espaço para que outras vozes e experiências, historicamente silenciadas ou marginalizadas, sejam consideradas na construção de novos rumos para a geopolítica global.

Pensar para além do Norte significa olhar também para o Oriente e recuperar valores e práticas ancestrais espalhadas por todo o mundo. Nos continentes da América, da África, da Oceania e também europeu, culturas ancestrais resistem e são resilientes na defesa de princípios e práticas de convivência comunitária; de equilíbrio com a natureza; de solidariedade intergeracional; e de reciprocidade econômica.

Resiliência e resistência na defesa de princípios e práticas que podem inspirar alternativas ao individualismo competitivo a qualquer custo e à exploração predatória de recursos que marcaram o projeto hegemônico do Ocidente. Não se trata de romantizar o passado, mas de reconhecer que existem formas de organização social e política que podem enriquecer a busca por futuros mais equilibrados.

Nesse contexto, o papel dos BRICS+ é promissor. Ao ampliar sua composição, o grupo fortalece a possibilidade de um contraponto real às instituições criadas no pós-guerra. Sua agenda de cooperação financeira, com o Novo Banco de Desenvolvimento, sinaliza caminhos para reduzir a dependência de organismos como o FMI e o Banco Mundial, cujas políticas de ajuste estrutural, frequentemente, impuseram severos custos sociais aos países do Sul.

Mais do que criar uma nova hegemonia, o desafio é ousar construir uma ordem verdadeiramente multipolar que reconheça a diversidade de experiências históricas e culturais, como fonte de riqueza política. As crises gestadas a partir do que impõem as potências do Norte, que se explicitaram e se ampliaram desde as últimas décadas do século passado, impõem uma nova agenda para os anos vindouros do século XXI. Exigem que se vá além da reprodução da lógica de dominação — seja ela ocidental, oriental ou de qualquer outro polo.

O Norte, que por tanto tempo serviu de referência, perdeu sua credibilidade ao mostrar-se incoerente e volátil. O desafio que se coloca agora é construir, a muitas mãos, um horizonte no qual as escolhas globais não estejam subordinadas a uma única bússola, mas se orientem por múltiplos pontos cardeais, com destaque para aqueles que, por séculos, foram marginalizados e ridicularizados, como se atrasos representassem.

Essa é uma busca de possibilidades de convivência entre humanos e entre eles e os demais seres viventes. Convivência que precisa combinar democracia, justiça social e ambiental e sustentabilidade intergeracional.

Que as celebrações de fim de ano vá além de um intervalo festivo marcado por luzes e presentes. Que elas se tornem um convite à reflexão sobre os caminhos que trilhamos como sociedade de humanos. Celebrações que simbolizam, majoritariamente no Ocidente, nascimento, esperança e renovação, podem servir de inspiração para o cultivo da solidariedade em tempos de individualismo; para o semear de justiça em meio às desigualdades; e para o valorizar da vida em plenitude, para todos.

Que a mensagem de fraternidade, que é universal e está muito além de discursos de diminutas parcelas da população do mundo que se quer povo escolhido, possa ecoar nas celebrações de fim de ano. Vale lembrar que é sempre possível recomeçar, recriar e partilhar, construindo juntos futuros mais humanos e dignos para todos.


Arlindo Villaschi É Professor de Economia.

Foto de capa: IA

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