A COP30 e o Novo Mito do Desenvolvimento

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COP30

Por CIDOVAL MORAIS DE SOUSA*

A Conferência das Partes da Convenção do Clima (COP30), realizada em Belém, trouxe ao Brasil uma oportunidade histórica de reposicionar-se no debate global sobre mudanças climáticas. Para o Nordeste e, em especial, para o semiárido e a Caatinga, o evento representou tanto uma vitrine quanto um espelho: vitrine porque expôs ao mundo a singularidade de um bioma e de uma região que carregam em si os dilemas da adaptação e da justiça climática; espelho porque refletiu, de forma crítica, os limites de nossa própria narrativa sobre desenvolvimento. Inspirados pela leitura de Celso Furtado, que denunciou o “mito do desenvolvimento” como promessa modernizadora incapaz de enfrentar desigualdades estruturais, podemos hoje identificar a emergência de um “novo mito”: o mito da transição verde como panaceia universal. O desafio é não repetir a armadilha de acreditar que soluções tecnológicas e mercados de carbono, isoladamente, serão capazes de resolver problemas que são, antes de tudo, sociais, políticos e históricos.

Mito e ambivalências

Celso Furtado, ao denunciar o mito do desenvolvimento, expôs a contradição central da modernização periférica: a promessa de prosperidade universal escondia a reprodução da dependência e da desigualdade. O mito, segundo ele, era uma narrativa sedutora que mobilizava sociedades inteiras em torno de uma ideia de progresso que, na prática, reforçava a concentração de renda e a subordinação aos centros hegemônicos. Hoje, no contexto da COP30, realizada em Belém, esse mito, em nossa leitura, reaparece com nova roupagem: não é mais apenas o crescimento industrial ou a modernização tecnológica, mas a transição verde e a descarbonização como panaceia universal. O “novo mito do desenvolvimento” é o mito da transição energética e da bioeconomia, apresentado como solução capaz de reconciliar economia e ecologia, mas que corre o risco de repetir a mesma lógica excludente e dependente.

No caso do semiárido nordestino e da Caatinga, essa metamorfose é particularmente evidente. A COP30 trouxe visibilidade inédita ao bioma, reconhecendo sua importância estratégica para o equilíbrio climático global. Lá, o Instituto Nacional do Semiárido (INSA/MCTI) destacou que a Caatinga é central para o sequestro de carbono e para a adaptação às mudanças climáticas. O Ministério do Meio Ambiente reforçou a necessidade de enfrentar a desertificação e valorizar povos e comunidades tradicionais. O Consórcio Nordeste apresentou uma Carta-Compromisso com dez pontos para a transformação ecológica, incluindo energias renováveis, bioeconomia e justiça climática. Bancos públicos como BNB e BNDES anunciaram R$ 100 milhões para preservação e recuperação da Caatinga. A sociedade civil, por meio da ASA e do Centro Sabiá, dentre outros, defendeu a “Convivência com o Semiárido” como paradigma alternativo. Em síntese, um quadro robusto de leituras, proposições e esperanças.

No entanto, o mapa de compromissos e lacunas revela a ambivalência do novo mito verde. De um lado, há avanços simbólicos: reconhecimento internacional da Caatinga, anúncios de financiamento, planos regionais de transformação ecológica. De outro, persistem lacunas estruturais: ausência de metas vinculantes para conservação e restauração, falta de marco regulatório específico para créditos de carbono, carência de diretrizes de transição justa para ordenamento territorial e repartição de benefícios das energias renováveis (cadê os royalties?), pouca valorização das experiências comunitárias já consolidadas e fragilidade na governança multissetorial. O risco é que o protagonismo simbólico da Caatinga se torne apenas mais uma narrativa sedutora, sem capacidade de enfrentar as desigualdades históricas do semiárido.

Historicamente marcado pela seca, pela migração e pela pobreza, o semiárido tornou-se também espaço de resistência e inovação social. Programas de cisternas, agroecologia, manejo comunitário da Caatinga, empreendimentos solidários, inclusive de geração de energia solar descentralizada, demonstram que soluções locais podem ser eficazes e sustentáveis. No entanto, a COP30 pouco valorizou essas experiências como referência global. O protagonismo foi dado a grandes projetos de bioeconomia e créditos de carbono, enquanto práticas comunitárias permaneceram à margem. O novo mito verde, assim, corre o risco de invisibilizar sujeitos locais e impor modelos externos, transformando territórios em laboratórios de experimentos sem considerar suas especificidades socioculturais.

Para enfrentar esse risco, é necessário construir uma agenda crítica e propositiva. O Memo de Políticas Prioritárias aponta sete medidas fundamentais: (1) Plano Caatinga 2030, com metas vinculantes de conservação e restauração; (2) Marco regulatório de créditos de carbono da Caatinga, com protocolos metodológicos e salvaguardas sociais; (3) Diretrizes de transição justa para energias renováveis, com zoneamento ecológico-econômico e repartição de receitas; (4) Programa de adaptação hídrica e produtiva, ampliando cisternas, dessalinização eficiente e agroecologia; (5) Fundo Caatinga, com financiamento permanente para projetos comunitários; (6) Indicadores públicos trimestrais de metas e investimentos; (7) Programas de educação e cultura climática sobre convivência com o semiárido. Essas medidas, se implementadas, poderiam transformar o protagonismo simbólico em protagonismo real.

O Painel de Evidências reforça a necessidade de ação concreta. O INSA/MCTI afirmou: “A Caatinga é central para o equilíbrio climático do planeta”. O MMA declarou: “É preciso enfrentar a desertificação e valorizar povos e comunidades tradicionais da Caatinga”. O Consórcio Nordeste apresentou “um plano coletivo e participativo para enfrentar a crise climática”. O BNB e o BNDES anunciaram “R$ 100 milhões para projetos de preservação e recuperação da Caatinga”. A ASA reiterou: “Convivência com o Semiárido é a saída”. O Centro Sabiá garantiu: “O debate do clima da Caatinga vai continuar, inclusive em diferentes espaços”. Essas falas mostram que há consciência, articulação, mobilização e propostas, mas o compromisso com as ações transformadoras não avançou na COP30.

Se a Caatinga e o semiárido deixaram de ser invisíveis e passaram a ocupar um lugar estratégico na agenda climática global, o protagonismo simbólico precisa se transformar em compromissos vinculantes e políticas concretas. A mensagem, nesse ponto, é clara: (1) justiça climática exige que o semiárido seja centro da transição verde; (2) agricultores familiares e povos tradicionais são guardiões da Caatinga e devem ser beneficiários diretos; (3) energias renováveis só serão sustentáveis se respeitarem territórios e repartirem benefícios; (4) sem financiamento estruturado, o protagonismo da Caatinga será apenas retórico; (5) governança transparente é condição para credibilidade e efetividade.

Caatingar o futuro

Como já mostrado nos itens anteriores, A COP30, realizada em Belém, expôs ao mundo o paradoxo brasileiro: somos guardiões de biomas únicos, mas seguimos presos a narrativas que concentram recursos e visibilidade em apenas alguns territórios.  Estudo divulgado pela Agência Eco Nordeste mostrou que 80% do financiamento climático internacional se concentra na Amazônia, deixando a Caatinga e outros biomas em situação de subfinanciamento crônico. Essa invisibilidade financeira revela que o “novo mito do desenvolvimento verde” ainda reproduz velhas hierarquias: o semiárido continua à margem, mesmo sendo espaço de inovação social e resiliência climática.

O semiárido brasileiro foi apresentado na Cop30 como laboratório de políticas públicas replicáveis mundialmente, graças a experiências como o Programa Cisternas — o maior programa de captação de água de agricultores familiares do mundo, com mais de 1,3 milhão de unidades. A Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) reafirmou que a saída não é “combater a seca”, mas conviver com o semiárido, transformando escassez em autonomia e redes de cooperação. O Consórcio Nordeste, por sua vez, apresentou ao mundo um roteiro de neoindustrialização verde e “recaatingamento”, articulando energias renováveis, bioeconomia e restauração produtiva. O Ministério do Meio Ambiente, através do programa Recaatingar, assumiu a meta de restaurar 10 milhões de hectares degradados da Caatinga, mas com a ênfase de que restaurar não é apenas plantar árvores: é recompor paisagens capazes de sustentar vidas, culturas e sistemas alimentares.

É nesse contexto que insisto no verbo “Caatingar” como horizonte utópico. Caatingar significa reconhecer a singularidade do bioma e transformá-la em ação política, cultural e econômica. É verbo que convoca à prática: caatingar é restaurar com justiça, caatingar é financiar com equidade, caatingar é incluir comunidades como protagonistas. É verbo que rompe com o mito do desenvolvimento verde como narrativa abstrata e o traduz em compromisso concreto com territórios historicamente invisibilizados. Não basta celebrar a visibilidade conquistada; é preciso garantir que ela se traduza em políticas vinculantes, financiamento estruturado e governança participativa. O semiárido não pode ser apenas fonte de vento, sol ou carbono; precisa ser reconhecido como território de vida, cultura e inovação. A convivência com o semiárido, construída gota a gota nas cisternas, nas sementes crioulas e nas práticas agroecológicas, é a verdadeira utopia concreta que o Brasil tem a oferecer ao mundo.

Se a Amazônia é o pulmão do planeta, a Caatinga é sua resistência. E resistir, aqui, não é apenas sobreviver: é reinventar o futuro. A COP30 nos mostrou que o Brasil pode ser solução global, mas somente se aprender a caatingar suas políticas, seus financiamentos e suas narrativas. Para além do mito, o desafio é transformar protagonismo simbólico em protagonismo real. O semiárido já mostrou que sabe como fazer. Cabe agora ao Estado, à cooperação internacional e à sociedade reconhecer que o futuro sustentável do Brasil passa, inevitavelmente, pela Caatinga.


*Cidoval Morais de Sousa é professor e Pesquisador da Universidade Estadual da Paraíba (DECOM, PPGDR e PPGECEM), Secretário Regional (PB) da SBPC e membro do Centro Internacional Celso Furtado. Pesquisador visitante do IE/Unicamp e colaborador do PPGCTS (UFSCar).

Foto de capa: Reprodução

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